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2. RECONHECENDO O SONO DO REAL

2.2 Vigiemos para que a Totalidade não se converta em ideia

Ainda que, de modo geral, podemos dizer que, no mundo Ocidental e Ocidentalizado, estamos imantados a um real despedaçado e infinitamente dividido, um retorno à Grécia antiga nos mostra que a totalidade exercia um papel essencial no modo de existência que ali se desenvolvia.

Para entendermos isso, examinemos que papel tinha naquele universo a noção de medição. Hoje, tendemos a conceber essa noção como um

68 procedimento de mensurar algo a partir de unidades padronizadas exteriores a coisa medida. Esse sentido não estava ausente na época, porém, não era o sentido mais essencial que essa noção continha.

Quando algo ia além de sua medida adequada isso não significava que não estava apenas em conformidade com algum padrão externo do que era correto e, sim, era muito mais, significava que estava sem harmonia por dentro, ou seja, que estava pronto para perder-se da totalidade e se romper em fragmentos (Bohm, 2008: p.35).

Interessante notar que a Presença da Totalidade como o elemento que possibilita o equilíbrio e a harmonia das partes é o que essa “medição interna” busca resguardar. Perdida a Presença dessa Totalidade, que pela sua força, mistério e vigor opera impessoalmente a harmonia das partes, incorre-se no enfraquecimento e desagregação do ser que passa a se ver apartado de si12.

Manter então tal Presença Viva no seu processo de existência era a importância que conduzia as pessoas a uma boa saúde e a uma vida harmônica e feliz. Essa era a “medida interna” adequada para uma boa fluência vital do ser, nos seus distintos aspectos. Inclusive, a raiz latina da qual se origina a palavra medir é a mesma que engendra a palavra curar – mederi. Da onde se infere que, curar é reconduzir o ser a esta medida, através da qual lhe é devolvida a Presença Viva da Totalidade. E, seguindo a visão e a proporção que a Presença da Totalidade estabelece, está-lo-á em saúde e harmonia com todas as partes.

Porém, com o correr do tempo, essa noção de medida começou gradualmente a perder a sua sutileza e a não mais alcançar o nível de realidade que alcançava. Tornou-se uma noção movida de maneira mecânica e automática, sem que o ser conduzisse sua atenção à realidade profunda que fundamentava sua importância.

12 Tal como Osíris no Antigo Egito, que foi cortado em inúmeros pedaços por seu irmão e espalhado por toda parte. É, aliás, o Mistério de Ísis que reúne todos os seus pedaços e com um sopro lhe conduz a uma Nova Vida.

69 Os homens começaram a aprender tais noções de medida de maneira mecânica, ao concordar com os ensinamentos de seus idosos ou mestres, e não criativamente, por meio de um sentimento ou compreensão do significado profundo da razão ou da proporção que estavam aprendendo (Bohm, 2008: p.36).

É aí que a Presença Viva que animava toda essa noção começa a se perder, até que o que restará é a noção de medida padrão a ser imposta de fora para dentro; uma medida estabelecida por convenção humana para regular a vida física, social e mental, que, aliás, vigora ainda hoje em nosso mundo.

A medida que era justa relação com a Presença da Totalidade Infindável foi tragada ao nível dos fragmentos, perdendo o poder e eficácia que exercia. Se antes estabelecia equilíbrio e proporção na relação imediata com a totalidade, agora, suspenso o acesso a tal percepção, cede e toma como parâmetros o reino dos indivíduos e o modo de pensamento que nele é vigente.

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Manter a percepção direta da imensidão que alivia, alimenta, equilibra e sustenta. Manter a abertura da clareira que liberta e dá ampla respiração a todas as coisas, ofertando a tais coisas o sopro sem origem ou fim que serve de fundamento e sustentação; um sopro que remonta a intimidade imemorial de cada coisa, que desfaz tudo o que há na presença dessa intimidade imemorial; dessa presença que coloca em xeque o (pré-posto) fato de que somos indivíduos, de que somos humanos, de que somos qualquer ente que se possa definir e destacar, visto que tal presença nos laceia e desata (assim como a um nó), dissolve-nos e deságua em íntima continuidade com tudo.

Se a noção de medida tinha em sua eficácia justamente a manutenção da atenção nessa abertura que integra o interior ao exterior e o fragmento ao seu Fluxo formativo e dissolutivo, eis que o essencial desta noção se perdeu, predominando apenas seu sentido exterior e utilitário. E como vimos, a perda

70 desta experiência fundante e informal do real nos conduz a tomarmos o mundo das repartições como referência fundamental de nosso modo de existência, destacando nossa consciência e atenção do Fluxo Impessoal que nos vivifica e do qual, enquanto indivíduos, somos expressões imersas.

A Presença Viva da Totalidade é o que deve ser resguardado. O pensamento do regime individual não deve se apossar desse âmbito, reconhecendo que é dele que provém, que é uma individuação desse Espaço Aberto e que só retornará a ele voltando no caminho inverso que fez, invertendo a direção de seu fluxo, do aparecimento para o desaparecimento. Tal presença deve ser zelada para que não seja encoberta pelo exercício separatista da consciência individual. Deve-se manter como zona nua de significância, espaço onde o pensamento simbólico e descontínuo não toca, a fim de que sua vitalidade e resplandecência contínua possa atuar e vivificar suas manifestações no plano individual, traçando a linha ontológica que religa tal plano a seu alfa e seu ômega, habilitando o Infinito como Vida a ser vivida.

Um extrato de uma carta do poeta Alfred Tennyson a B.P. Blood pode ilustrar melhor essa última passagem.

Uma espécie de transe me ocorre com frequência desde a minha infância quando estou só. Isto geralmente acontece quando digo meu nome duas ou três vezes para mim mesmo, silenciosamente até que de repente, como se estivesse fora da intensidade da consciência da individualidade e esta parece dissolver-se e desvanecer no Ser sem limites. E isto não é um estado confuso, mas o mais claro entre os claros, o mais seguro entre os seguros, o mais extraordinário de todos e inexprimível em palavras, onde a morte seria uma impossibilidade, algo irrisório, e a perda da personalidade não parecia a extinção, mas apenas a verdadeira vida!13

Para nós, cobertos pelo manto da visão fragmentária do pensamento moderno ocidental, manto, aliás, em que só cabe um de cada vez, no qual a existência individual é a coluna de um templo de existências solitárias, em que a

71 ciência dos astros e da psiquê, por exemplo, não se tocam, onde a experimentação de um dentro e um fora se ramificam ao infinito; para nós, que, um dia, já tivemos como referência essa Presença irreferendável, mas que acabamos por perdê-la na fabricação de nossa própria teia, que, pesando sobre nós, rebaixou-nos do plano Aberto ao fechado, do infinito ao finito, do cósmico ao individual, é difícil até imaginar que tal Vida seja possível à nossa consciência. Há quem diga que a imagem presente nos mais variados povos de uma imemoriável e remota era dourada ou paraíso perdido seja justamente uma reminiscência de um tempo em que nossas vidas estavam unidas a tudo. Dessa forma, tal como alguém que perde algo em uma piscina, devemos mergulhar a fim de encontrar essa Presença cujo manto cobre a todos e se estende a perder de vista.

Já entre os orientais a coisa se passou um tanto diferente. De modo geral, a filosofia oriental não cede muita importância às medidas e às categorizações humanas sobre o real.

Ao contrário, na filosofia prevalecente no Oriente o Incomensurável (ou seja, o que não pode ser nomeado, descrito ou compreendido por nenhuma forma de razão) é considerado como realidade primária(...) Nessa visão toda estrutura e ordem das formas, proporções e razões que se apresentam à percepção comum são vistas como um tipo de véu cobrindo a realidade, que não pode ser notada pelos sentidos e da qual nada pode ser dito ou pensado (Bohm, 2008: p.38).

É como se o conhecimento, a significância, a medição e toda gama de manifestações surgidas do pensamento que separa uma coisa de outra atuassem de modo a confundir a atenção do ser desviando-o da Presença Indivisível do Real. É o domínio de maya. Em sânscrito, a palavra maya tem a mesma raiz que a palavra matra, que significa medição; maya, por sua vez, significa ilusão. Daí já se explicita o caráter ilusório da medida e de tudo que pode ser medido. Compreende-se também que o universo constituído de maya mais obscurece e torna-se fonte de falsos problemas do que clarifica e possibilita a experiência imediata do real. É por isso que, quanto à natureza viva do real, nada pode ser dito ou pensado, pois o que se ilustraria seria pertencente ao

72 domínio de maya. A maya pertence a miragem de que é possível um ente se destacar do Fluxo Indiviso da Vida. Todos os entes capturados pela percepção da separação estão enlaçados no registro de maya. Diz-se que tal percepção se encontra em estado de sonho, não- desperta em sua natureza mais essencial.

Novamente aqui é preciso colocar que o universo das formas individualizadas de maya não é ilusório em si; o é na medida em que referencia- se a si próprio, perdendo a relação com a Presença da qual surge e na qual se dissolve. Porém, devolvida essa percepção ao ser, maya toma o seu devido lugar, como manifestação da Indivisível Presença. Deste modo, ambos registros podem coexistir, no entanto, uma inversão foi realizada: o Real Ilimitado passa a ser o sujeito aberto que experimenta suas individualizações, sem prejuízo de sua inesgotável Vida. Aqui não existe mais um “eu” que se roga agente, mas o Aberto Ilimitado como operador das vastidões e das localidades. Eis o sentido da estar em Verdade ou de habitar a Realidade Primária.

Passamos por tais visões como modo de evidenciar que a experiência do Ilimitado se encontra presente tanto na fundação do pensamento oriental quanto no ocidental e que o descuido e a falta de atenção, ou a simples impossibilidade dos homens a manterem, fizeram com que o nível de percepção do real fosse pouco a pouco se esvaecendo, rebaixando tal experiência a nível individual, o que, por sua vez, conclama uma série de conflitos das mais diversas ordens: psíquicas, ecológicas, sociais, bélicas e por aí afora. Tudo porque onde o nascimento do real for constituído e fundamentado por inúmeros egos, haverá conflito e desarmonia, e a paz e concórdia não passarão de sonho ou reminiscência. Somente com a percepção desembaraçada do aparelho do ego, com a atenção estabelecida na Presença Indivisível de Real, é que se pode alcançar algo como paz, harmonia e concórdia. Então, vigiemos se estamos caminhando na direção da abertura e soltura de nossos territórios rumo à terra comum ou se estamos fortalecendo-os com cercas e muros com o objetivo de nos esquivar da visão que nos une.