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O arcaísmo Como temos visto, a criação linguística consiste principalmente em utilizar para

pouquíssimos ficaram.

4. O arcaísmo Como temos visto, a criação linguística consiste principalmente em utilizar para

novos fins o material existente. E como esse material anda arquivado nos dicionários, quem escreve tem à sua disposição uma quantidade grande de vocábulos com idêntico significado. Muitos desses vocábulos já morreram. Têm porém aos olhos de muitas pessoas certo encanto, o suave aroma das coisas velhas. Evocam um mumdo distante, e a imaginação ama por vezes refugiar-se nessa atmosfera do passado. Para o escritor que procura fazer ressurgir a vida de antigos tempos, essas

ressurreições do vocabulário são necessárias, porque, pelo seu poder fortemente evocativo, ajudam a dar a chamada «cor local».

Estas restaurações, obrigadas ou volumtárias, pouco importa, da linguagem antiga, são chamadas

arcaísmos. O seu estudo e a sua história são na verdade muito interessantes e altamente elucidativos

para o aprendiz de redacção, ao qual importa distinguir, na linguagem, entre o que é vivo e o que está morto.

Há na história de todas as línguas um período, naturalmente curto, em que, a par do vocábulo usual, ainda se

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não perdeu totalmente a consciência do termo velho, que vai desaparecendo. Efectivamente, as palavras não morrem de um golpe. Vão sendo pouco a pouco abandonadas, em benefício de termos novos, até que perecem e ficam sepultadas no seu cemitério próprio, que são os dicionários.

Mas sucede também que o arcaísmo pode iludir o seu destino e permanecer na língua com um sentido especial. Três exemplos desta especialização de sentido são os termos nojo, britar,

escudeiro. Nojo significava na linguagem antiga «pesar»; britar designava «partir», «quebrar»; escudeiro era o pajem que levava o escudo do fidalgo. As três palavras subsistem ainda hoje na

língua, nas seguintes locuções: «andar de nojo», isto é, «de luto»; «britar pedra»; enfim, escudeiro

é ou foi o criado de mesa de certas casas fidalgas da província; substituiu o escudo pela bandeja e

travessas, com que servia pacificamente os seus patrões.

Pode dizer-se que nojo e escudeiro estão a desaparecer, se é que já não desapareceram,

definitivamente do uso vivo da língua; a primeira já cedeu de há muito o lugar ao sinónimo luto, - tinha a desvantagem de poder estabelecer confusão com nojo = «repugnância»; a segumda, usada por Eça de Queiroz no seu romance A Cidade e as Serras (16.a ed., págs. 38, 45, 47, 57), limitada a certas casas nobres provincianas, não resistirá muito tempo à onda de modernismo, que tudo avassala, até mesmo os costumes da aristocracia; britar, a terceira, continuará possivelmente a dizer-se, enquanto houver britadores de pedra - o que não será por muito tempo, dado o emprego geral dos maquinismos a substituírem a mão do homem. São pois três palavras condenadas, mais ou menos moribumdas.

Apesar disto, os escritores têm arte de as fazer ressurgir nos livros, como dissemos. Se alguém pronumciasse, ao pé de nós: «O meu lápis 6riío«-se-me»; ou: «Sinto muito nojo pelo mal que lhe sucedeu», possivelmente riríamos às gargalhadas com a impertinência do arcaísmo. Já não rimos,

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porém, se acharmos os termos escritos, em lugar próprio, para darem a atmosfera do tempo antigo: «O nobre escudeiro, cheio de sanha e nojo, britou as portas do paço do rico-homem».

Nesta curta frase temos nada menos de seis arcaísmos, que a literatura alberga ainda, mas que a língua corrente repudiou já quase por completo.

No turbilhão lexical que é a língua de Aquilino Ribeiro, forjada de todos os elementos possíveis e tirada muitas vezes do velho fumdo popular, lá aparece o arcaísmo britar:

«Uma martelada imprudente cortou a corda, e três homens vieram britar-se nos abismos rochosos da torrente» (Volfrâmio, 166).

Já o primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, observava, em 1536, que o arcaísmo dava vontade de rir. Por isso, os autores o empregam não raro com fins vaga ou

Fialho de Almeida:

«Um, d’olhares mortiços, cujo gastrálgíco aspeito dizia um poeta desempregado».

Aquele aspeito, por «aspecto», dá-nos uma impressão de cómico, acentua o contraste entre a literatura e a vida, o sonho e a realidade.

Também Teixeira-Gomes pretende o mesmo efeito, ao empregar o arcaísmo terribil na seguinte frase: «Terribil foi, e perigosíssima, a luta em que se envolveram aqueles três animais». É possível ainda que, na mente do escritor, o adjectivo terribil equivalesse a um superlativo, andando

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por isso nele aliadas as noções de intensidade e de humorismo. É isto mesmo que se verifica nestes versos de Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta brasileiro: «Senhor! Senhor! / quem vos salvará / de vossa própria, de vossa terrlbil ’f estremendona / inkomumikhassão ?» (Impurezas do

branco, 2.» ed., pág. 7).

Érico Veríssimo, no seu romance Música ao longe (3.a ed., pág. 83) representa-nos Leocádio, um velho misterioso e ridículo, dizendo isto: «- As meninas andam loucas por mim; eu é que não lhes dou fiúza. - Clarissa arregalou os olhos. Fiúza! Mais uma palavra misteriosa. Seu Leocádio é uma delícia!» Aquele fiúza (= confiança) é uma velha palavra do português medieval, ainda usada em algums falares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. O escritor gaúcho soube tirar dela, pelo contraste das gerações, um belo efeito de mistério e de humorismo. Que o vocábulo também se usa no falar caipira de São Paulo parece provar-se por este passo do romance Briguela, do escritor David Antumes; mas aqui é usado sem matiz irónico: «pegou a mexer com as ideias, na fiúza de que uma delas servisse de candieiro para a sua dúvida» (págs. 67, 145). Já que falamos de arcaísmos paulistanos, convém averbar a forma imos, em lugar de vamos, no romance regionalista de João de Sousa Ferraz, Aguapés flutuam na ribeira, 3.a ed., 1977, pág. 127.

E, finalmente, Carlos Drummond de Andrade, ao tratar a figura de D. Quixote, usa intencional e humoristicamente outro arcaísmo, giolhos = joelhos, definindo deste modo o cavaleiro da triste figura, que pretendia ressuscitar os ideais da cavalaria andante: «De giolhos e olhos visionários / me sagro cavaleiro andante» (Impurezas do branco, 2.a ed., pág. 63).

O emprego do arcaísmo passou dos bons autores para os plumitivos de baixa categoria. «Como sói (= costuma) dizer o vulgo» é ainda hoje um cliché arcaizante, que se vê não raro na pena de jornalistas provincianos ou aprendizes

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de redacção. Adrede, quiçá com o sentido respectivamente de «propositadamente» e «talvez», também são usados em estilo pretensioso. Quando não empregados com sentido humorístico, revelam geralmente incultura e mau gosto por parte de quem os escreve.

Um caso curioso, não propriamente de incultura mas de muito mau gosto, foi o que se passou com dois escritores políticos do Liberalismo português, Manuel da Silva Passos e João Bernardo da Rocha. O primeiro escrevia o arcaísmo pêra em vez de para, o segumdo usava a forma poêr, ainda mais arcaica, em lugar de pôr. Por isso, foram postos a ridículo pelos seus adversários miguelistas, que lhes chamavam respectivamente «Pêra de ignorância presumçosa» e «João Poêr». - Apud Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, 6.» ed., i, 228.

É portanto conveniente ter especial cuidado com o emprego dos arcaísmos. Evocando um mumdo antigo, tendem a tomar ridículo o que se escreve e a pessoa que os utiliza. E isso é de algum modo justo, porque em estilo, como em tudo, somos obrigados a ser homens do nosso tempo. A prática e o bom gosto evitarão esses despropósitos.

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