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O emprego dos tempos e modos É dos pontos mais delicados da sintaxe portuguesa o

Aqui, a oração de pronome relativo (que interessem) vale por um adjectivo: interessantes É por isso que em gramática essas orações são designadas pelo nome de «adjectivas», e é por

M RODRIGUES LAPA

3. O emprego dos tempos e modos É dos pontos mais delicados da sintaxe portuguesa o

emprego dos tempos e modos dos verbos. Aqui, só nos cumpre tratar, de maneira prática, as questões fumdamentais que dependem não propriamente da Gramática mas da Estilística. Como princípio geral para o emprego dos tempos, seja dito desde já que o nosso espírito tende a tomar presentes, vividos actualmente, os factos que se deram no passado ou sucederão no futuro. A nossa imaginação e o nosso sentimento procuram referir tudo ao presente. Um exemplo: «Morreu o rei; o príncipe vai ao palácio e exige logo dos cortesãos o juramento de fidelidade». Por um verbo no perfeito (morreu) indicamos que se trata de um f acto passado; logo depois, para melhor o vermos, aproximamos de nós o passado e consideramo-lo presente; assim se justifica o emprego de vai e exige, em vez de foi e exigiu, como seria mais lógico. A este presente do passado costuma chamar-se «presente histórico». Temos boa amostra desse processo, que procura traduzir, de um modo pitoresco, o movimento e a vida, neste passo de Fr. Luís de Sousa: «No mesmo ponto que o piedoso prelado teve informação do que se passava, sem meter tempo em meio, deixou tudo:

sai de casa e põe-se a caminho para ir confessar a ferida».

Vejamos agora um caso do futuro considerado como presente: «Amanhã chega o teu primo José;

vais à estação esperá-lo». A fantasia e o sentimento aproximam de nós o facto futuro e incerto; a

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toma-o coisa certa - nem por sombras se admite que haja algum estorvo para a vinda desejada do primo José. Logicamente, aquela frase deveria ser assim redigida: «Amanhã chegará o teu primo José; irás à estação esperá-lo». Como vemos, a linguagem viva zomba da lógica, porque nela constantemente se exercem as forças da imaginação e do sentimento, que constituem, por assim dizer, os elementos primordiais do nosso ser.

Pelo que respeita aos modos, também a língua prefere aqueles que exprimem segurança e não incerteza da parte de quem fala. Na língua, como na vida, raro se deixa o certo pelo duvidoso. Este princípio geral vê-lo-emos aplicado mais adiante, com o modo do conjumtivo.

4. O perfeito e o mais-que-perfeito. - Em rigor, estes dois tempos não se devem confumdir. O primeiro serve para exprimir a acção passada, o segumdo a acção anterior a outra que já passou. Exemplos:

1. O mendigo chegou, faminto e cansado.

2. O mendigo chegou; já tinha andado seis léguas. 3. Todos se espantaram de que tivesse resistido tanto.

No primeiro exemplo indicamos um facto absolutamente passado, por meio do perfeito chegou. No segumdo, representamos duas acções nitidamente diferenciadas no tempo: primeiro, o mendigo andou seis léguas, e só depois chegou a determinado ponto. No terceiro, aparecem igualmente diferenciados os dois tempos da narrativa; mas, em vez do modo do indicativo, empregou-se o do conjuntivo, porque a acção agora é imaginada por alguém e não simplesmente indicada, como no segumdo exemplo.

Quando se trata porém de períodos longos, em que a sucessão dos tempos se não desenha com nitidez, o emprego dessas duas formas do perfeito leva por vezes a hesitações e

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até a erros. Veja-se este trecho de um autor dos nossos dias:

«Padre Anselmo escapuliu-se, tão encolhido como entrara. O arquitecto ficara estupefacto. É certo que ele tomara todas as precauções e que a discrição do guarda fora adquirida bem cara.»

Aquele mais-que-perfeito ficara não se justifica bem ali, usurpando o lugar do perfeito -ficou. Seria legítimo empregar ficara, se o arquitecto se tivesse espantado antes de o padre se ter escapulido; mas é precisamente o contrário que quer significar o autor. O uso de ficara dá-nos a impressão de que o autor, em vez de narrar objectivamente a acção, está a contá-la indirectamente a outrem. Vejamos, sobre isto, um exemplo:

- Fui regar a horta do Chico Gamelas; mas as travessas do poço estavam podres, e eu caí, bati com a cabeça numa pedra e estive vai-não-vai a afogar-me. Por sorte andava por ali o Firmino, que acudiu aos gritos e me tirou do poço.»

Experimentemos pôr este dito do José Dias em discurso indirecto. Temos o seguinte resultado: «O José Dias contou-lhe então que fora regar a horta do Chico Gamelas; mas as travessas do poço estavam podres, e ele caíra, batera com a cabeça numa pedra e estivera vai-não-vai a afogar-se. Por sorte andava por ali o Firmino, que acudira aos gritos e o tirara do poço».

Gramaticalmente, está impecável: todo o sucesso que se reproduza em discurso indirecto deve levar os verbos no mais-que-perfeito, porque há a noção de dois tempos passados: aquele em que fala ou medita a personagem, e o

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outro, anterior, em que se passam os factos que refere. Quando porém a narração é longa, a diferença dos tempos como que desaparece, e as duas formas podem ser empregadas. Assim, no trecho anterior, já podíamos escrever, no último período: «Por sorte andava por ali o Firmino, que

acudiu aos gritos e o tirou do poço». O emprego do mais-que-perfeito dá de princípio a noção dos

dois tempos passados, depois já se dispensa, por não ser fácil para quem conta e para quem ouve ou lê manter essa diferenciação cronológica: tudo tende a esbater-se num mesmo tempo passado. Há contudo escritores que mantêm fidelidade ao uso do mais-que-perfeito mesmo nas narrações compridas. Um deles é Ferreira de Castro. É sabido o cuidado com que ele marca nos seus romances, até por meio de sinais gráficos, o uso do discurso indirecto e semidirecto.

Os escritores antigos da Idade Média e do Classicismo empregavam muitas vezes o perfeito em vez do mais-que-perfeito, como se vê deste passo de Fernão Lopes: «taes i ouve que pensarom que eram alguus que nom veerom ao saimento»; e destoutro de João de Barros: «e por honra de sua ida lhe mandou Vasco da Gama entregar todolos mouros que tomou no zambuco». Onde se vê claramente que veerom está por tiinham viindo e tomou por tomara. O escritor moderno é mais rigoroso e sabe discriminar com maior clareza os tempos do passado.

Contudo, a falta de cuidado ou um sentimento confuso das leis da língua tem levado algums escritores a empregarem inadvertidamente o mais-que-perfeito, em lugar do perfeito. O contrário não seria tão desastrado, pois, como vimos, este último pode fazer as vezes do primeiro. E o que acontece neste bocado de prosa de José Lins do Rego:

«O seu editor viera prestar contas e Paulo o pusera para fora de casa. O homem se queixara na livraria: - O doutor Mafra estava meio fora de si. Parecia maluco. Pois

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fora levar-lhe o dinheiro das três edições do seu livro e ele me recebera como um inimigo. Devia

ser a morte do irmão.» (Água-mãe, 4.a cd., 195).

Nos tempos sublinhados do discurso directo conviria pôr o perfeito em lugar do mais-que-perfeito, que ali se não justifica; foi por contágio do discurso indirecto que o grande romancista foi levado a usar tal tempo.

Quando isto se dá em escritores da envergadura do autor de Fogo morto, natural é que se dê em romancistas de menor categoria. Veja-se este trecho dum autor dos nossos dias, em que o mais-que- perfeito toma indevidamente o lugar do perfeito:

«O primeiro movimento de Irene traduziu-se ein sacudir a mão de seu filho, como a querê-lo furtar à vista daquele homem. Mas logo se deteve, alquebrada. O fotógrafo, por um esforço heróico, balbuciara: - É V. Ex.a que quer tirar o retrato ? Irene, muito pálida, calara-se. Depois dissera:

Álvaro Pestana, o fotógrafo, curvara-se e murmurara: ’ - Faz favor de se sentar!»

É manifesto que nos termos em itálico conviria empregar o perfeito e não o mais-que-perfeito, pois a narrativa progride sem retrocesso nem sobreposição de planos - prova de que aos jovens

romancistas falta uma técnica não apenas gramatical mas estilística.

Há porém casos complicados, como este de Camilo, que escreveu: «Dissera o Sá de Miranda que poetas tudo pumham em flores, e de frutos nada havia que esperar» - (Doze casamentos felizes, 8.a ed., pág. 73). Seria mais correcto Disse; mas aqui deve entender se: «Já tinha dito, em tempos, Sá de Miranda, antes de outros que disseram coisas semelhantes». Temos aqui um jogo subtil dos tempos: o mais remoto

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(mais-que-perfeito) e o mais recente (perfeito), que nem sequer é assinalado.

O uso indevido do mais-que-perfeito, sobre baralhar os tempos da narração, dá ao discurso um tom remoto e artificial. Essa impressão é ainda agravada pelo uso que os escritores fazem do mais-que- perfeito simples, que é hoje, salvo em algumas regiões do falar provinciano, uma forma banida da língua corrente, a qual só conhece a forma composta, muito mais expressiva, devido à presença do imperfeito e do particípio adjectivo. Deve porém advertir-se que, na língua do Classicismo, esse modo e tempo adquiriu matizes delicados de significação, que devemos ter presentes, se quisermos bem interpretar os respectivos autores. Veja-se, por exemplo, este formosíssimo soneto de Camões: Doces lembranças da passada glória, que me tirou Fortuma roubadora, deixai-me descansar em paz ua hora, que comigo ganhais pouca vitória.

5 Impressa tenho n’alma a larga história deste passado bem, que numca fora; ou fora e não

passara; mas, já agora, em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro de esquecido

10 de quem sempre devera ser lembrado, se lhe lembrara estado tão contente. Oh, quem tomar pudera a ser nascido:

soubera-me lograr do bem passado,

se conhecer soubera o mal presente! *

Evocação de um amor passado, que se obstinava a perdurar na memória, todo o soneto gira em tomo de subtis

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transposições de tempo e modo, que a língua clássica sabia exprimir pelo mais-que-perfeito simples. Damos o sentido (aproximado) dos diferentes passos do poema; e por aí se vê a extrema complexidade dessa forma verbal:

6, que numca fora = que oxalá numca tivesse existido;

7, ou fora e não passara = ou, a ter existido, numca tivesse passado;

10, devera = deveria;

11, se lhe lembrara = se lhe lembrasse; 12, pudera = pudesse;

14, soubera = soubesse.

5. O imperfeito. - O perfeito marca de modo absoluto o fenómeno passado, sem relação com o

presente nem com a pessoa que fala. É um tempo objectivo, sereno, próprio do historiador que narra as coisas sucedidas. Exemplo: «O príncipe morreu na guerra; deixou três filhos ainda

meninos, que foram criados desveladamente pela princesa». Modifiquemos agora o período neste sentido: «O príncipe morreu na guerra ; deixava três filhos ainda meninos, que eram agora todo o cuidado da princesa». A primeira oração ainda representa friamente o passado; as duas outras receberam agora um tom diferente: como que nos transportamos ao passado, pela fantasia e pelo sentimento, e vivemos duradoiramente os sucessos. Enfim, temos um pé no presente, outro no passado. Mais um exemplo: «Chegámos ao cume do monte. Foi então um pasmo: em toda a volta

erguiam-se outeiros verdejantes; regatos prateados e luzentes serpenteavam pelas encostas».

Depois de mencionarmos o facto passado, com o auxílio do perfeito, queremos traduzir as impressões do caminhante, ao percorrer, um dia, esses lugares. Usamos o tempo da simpatia, que é o imperfeito.

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sos expressivos desta forma verbal, tão própria para o descritivo e para a narração. Os poetas e romancistas não são como os historiadores: encaram o passado como se fosse presente e tendem a viver nele com as forças da imaginação e do sentimento. Não são obrigados a uma rigorosa objectividade. De aí, a predilecção pelo «eterno imperfeito», como lhe chamaram.

Dir-se-á: se usar o imperfeito é viver no passado, por um esforço de simpatia, pode substituir-se naturalmente pelo presente histórico, ao qual está reservado o mesmo papel. Em parte, assim é: por isso, algums escritores modernos como, por exemplo, Joaquim Paço d’Arcos em Ansiedade, empregam o presente como tempo de narração: «Os camions penetram, com estrondo, no túnel da estrada. O portão volta a fechar-se. Ecoam tiros para as bandas de Alcântara. A revolução está na rua». Mas o presente histórico não faz mais do que aproximar de nós o passado, como uma lente que nos faz ver melhor os objectos distantes. O processo tem carácter visual; não se intromete nele, por via de regra, o sentimento nem a fantasia. No imperfeito estes factores intervêm em larga escala, e o próprio acto, vacilante entre o presente e o passado, carrega-se de misteriosa imprecisão e dá- nos uma como que impressão de interminável. Os dois tempos aparecem por vezes misturados, como neste passo de Eça de Queiroz:

«Onofre, encostado ao parapeito, embebido na frescura e na paz do luar, sentia, naquele silêncio universal, o bater cansado do seu coração. Mas mesmo esses instantes de repouso os dava ao Senhor,

- atribuindo somente à sua misericórdia o impulso que o arrancara dentre os homens e o lodo em que eles se debatem, o trouxera à pureza desta solidão, onde a eterna verdade se avista tão claramente, como aquela grande lua, lustrosa e consoladora» ( Últimas páginas,

6.a ed., pág. 194).

Estamos vendo o processo: o autor instalou-se no passado, partilhando os sentimentos de Onofre, mas sem quebrar

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por completo as ligações com o presente. Por isso empregou o imperfeito. Uma vez no passado, perdeu-se a consciência dos dois tempos, e tudo foi considerado actual. Daí o emprego do demonstrativo esta e do presente avista, que, em rigor, deviam ser substituídos por daquela e

avistava. No português do Brasil, o imperfeito, contraposto ao presente, pode até adquirir um

curioso significado de negação e dúvida, como neste passo de Érico Veríssimo: «Pensa que vai pescar um marido assim? Pescavas...})- (Clarissa,

3.a ed., 59). Em Portugal, num caso destes, diz-se antes: «É o pescas...» Compreende-se que a sugestão negativa resultou precisamente do choque entre um tempo claro como o presente e um tempo obscuro como é o imperfeito. Também no discurso chamado semidirecto o imperfeito desempenha papel importante. Já vimos, num capítulo anterior, em que consiste esse discurso, que serve para o monólogo interior e para reproduzir com viveza a fala das personagens. O autor põe-se na pele do orador, e ambos se encontram a contar o caso. Esta mistura estilística é obra do imperfeito. Veja-se este trecho, em que o parvo monumental que é o conselheiro Acácio é representado em dois discursos, o directo e o semidirecto. Trata-se do antigo Passeio lisboeta, ao domingo, que alguém dissera ser uma grande sensaboria:

« - Não serei tão severo, Sr. Brito! - Mas parecia-lhe que, com efeito, antigamente era uma digressão mais agradável. •- Em primeiro lugar - exclamou com muita convicção, endireitando-se - nada, mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada!

- Além disso, havia a questão dos preços... Ah! tinha estudado muito o assumto. Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas... Bem longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população... As suas ideias liberais eram bem conhecidas.

- Apelo para a Sr.a D. Luísa!-disse.-Mas, enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! E, enquanto a si, numca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das

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