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A gíria Chama-se gíria, como vimos, ao conjumto de expressões de tipo popular, usuais na

pouquíssimos ficaram.

O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

3. A gíria Chama-se gíria, como vimos, ao conjumto de expressões de tipo popular, usuais na

linguagem corrente e despretensiosa, e sobretudo frequentes nas esferas menos cultas da população. É reparável, nas pessoas de bom-tom, empregarem termos de gíria; mas, como há diferentes graus de gíria, admite-se geralmente o uso da mais inocente no trato quotidiano e familiar. É, como se vê do primeiro exemplo que apresentamos no capítulo anterior, um meio expressivo, cheio de

vivacidade, bem adequado à linguagem falada, saltitante e dinâmica.

A gíria pode oferecer contudo outras modalidades e abranger a linguagem de certos meios especiais: colégios, prisões, oficinas, casernas, ambientes fadistas, etc. Quando assim é, chama-se

propriamente calão. O calão é pois, de certo modo, a gíria com carácter mais reservado, mais secreto; ao passo que a gíria propriamente dita não passa de uma forma exagerada da linguagem familiar.

Nem sempre é fácil distinguir a gíria do calão. Veja-se o trecho seguinte tirado de A Ronda da Noite do escritor Bourbon e Meneses, em que abumdam essas duas formas de linguagem:

«José Francisco pôs na orelha a ponta do último brejeiro, inclinou para a nuca o chapéu já sem forma, e, tomando um dos copos, em frente do Plácido, que empumhava o outro, fez o brinde sacramental : - Lá vai à sua, sor Plácido!

O Plácido parecia outro: até já tinha as mãos finas, que nem um fidalgo. De vez em quando aparecia ali pelo carvoeiro, que, pelos modos, também era da corda, e, como ele, tinha muita aceitação nos democráticos. Mas na «Brasileira» é que era vê-lo, a discutir

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política. E tinha importância! Então não o toscara lá, uma vez, com um militar graúdo, desses que trazem peles no casabeque, galões largos na manga, coronel ou major, com toda a certeza ? Pois então! Lembrando- se disto, baixou um pouco a voz, por mor de dois tipos que estavam jogando o liques, e interrogou:

- Ó sor Plácido, é verdade que arrebenta hoje uma fita? Então, o Plácido, depois de indicar com um trejeito os jogadores

- «rapazes fixes, cá dos nossos»! - explicou, muito ufano: Os íalassas tinham tudo preparado para sair. Mas a rapaziada dos grupos sabia tudo. Era em casa duma condessa que reumia o «comité» dos monárquicos. Um cabo da marinha, o Daniel - isso é que era um cara direita! -fizera-se c’os traidores, até pusera bentinhos no pescoço e cantara tudo à rapaziada dos grupos. Eles tinham a coisa bem preparada, isso tinham! No quartel do 16 até já estava uma bandeira azul e branca, toda de seda, para ser «alvorada» logo que a fita

arrebentasse... Ah! mas os grupos não estavam a dormir! Eles até sabiam quem é que tinha bordado a bandeira! Uma tipa, toda beatona, amiga dum papa-hóstias da Sé...

- Sempre quero ver se desta vez se faz a limpeza! Ponham-se com paliativos...

O Plácido protestou com veemência. Não, desta vez, acabava-se-Ihe com a raça! Quem viesse com águas

mornas, truca! arreava-se-lhe logo! Tudo quanto fosse jesuíta havia de ser corrido dos empregos. E esta era

uma grande medida, porque havia para aí muito republicano à brocha. E citava: Olha o Vicente marceneiro, um «sacraficado»! O Clemente, - coitado! - que levou um tiro em Monsanto e anda prai aos paus... E outros».

O trecho está todo salpicado de gíria e calão lisboeta, que são geralmente as palavras e locuções impressas em itálico. Entre aspas colocámos o galicismo «comité» e os termos «alvorada» e «sacraficado», que são propriamente adulterações fonéticas, em uso na linguagem popular. Os restantes casos pertencem à gíria; e é indispensável conhecê-la, se quisermos penetrar o significado perfeito do trecho. Para uso dos nossos leitores que habitam em lugares onde não chegou o

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alastrando por todo o País, aqui damos um pequeno vocabulário referente ao trecho: 1. brejeiro: cigarro forte. Outros termos sinónimos de gíria: paivante, pandilha. 2. sor: senhor. É contracção popular de «senhor».

3. ser da corda: pertencer ao mesmo grupo, compartilhar das mesmas ideias. 4. toscar: ver, avistar.

5. graúdo: de alta posição. 6. por mor de: por causa de. 7. tipo: indivíduo, sujeito.

8. fita: perturbação da ordem, motim, revolução. 9. fixe: seguro, de confiança.

10. talassa: homem de convicções monárquicas. 11. sair: romper as hostilidades, sair para a revolução.

12. cara direita: rapaz bom, firme. Sinónimo de gíria: cara-umhaca.

13. fazer-se com: meter-se com, insinuar-se como agente provocador. Em gíria ainda tem outro significado

- fazer a corte, ter relações amorosas: «O magala andava feito com a sopeira».

cantar: contar, denumciar.

papa-hóstias: beato, muito frequentador da igreja. fazer a limpeza: pôr no são, fazer a depuração. acabar-se-lhe com a raça: destruir, aniquilar para

sempre.

vir com águas mornas: aconselhar a clemência, a

brandura.

à brocha: em dificuldades. Sinónimo de gíria: 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. à rasca.

22. andar aos paus: andar desempregado, em miserável situação.

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Se considerarmos com atenção este vocabulário, logo vemos que não há fronteiras perfeitamente definidas entre a língua corrente, a gíria e o calão. Todas elas se compenetram, mais ou menos. Como termos correntes poderíamos separar: graúdo, tipo, sair, cara direita, fazer a limpeza,

acabar-se com a raça, vir com águas mornas. As expressões sor e por mor de são propriamente

resultantes duma contracção fonética: senhor = sor; por amor de == por mor de. A segumda, pelo menos, deve ser originária da província. Como gíria poderíamos talvez separar: brejeiro,

toscar, fita, fixe, talassa, fazer-se com, papa-hóstias, arrear, corrido, à brocha. No calão

propriamente dito, como linguagem mais especializada, poderíamos incluir: ser da corda, cantar,

andar aos paus, que parece pertencerem à língua dos vadios, fadistas e ladrões. Mas, como

dissemos, não se podem traçar limites absolutamente seguros.

A língua giriática está ainda por recolher e estudar com profumdidade. Alberto Bessa publicou em 1901 um vocabulário, a que deu o título de A gíria portuguesa. Presta serviços, embora esteja esgotado; mas é curioso ver o quanto a gíria tem variado de então para cá. Fenómeno de linguagem, e de linguagem vivíssima, está em transformação constante. Um exemplo: o termo

trouxa é usado em gíria actual com o significado de «parvo, simplório». Está muito espalhado por

todo o Portugal: os soldados que estão ums meses na capital se encarregam de levar essa linguagem para as suas remotas aldeias. Pois Alberto Bessa regista a palavra como calão de gatumo, com o significado exclusivo de «cabeça». De então para cá o vocábulo adquiriu valor diferente, como se está vendo. Foi possivelmente a imagem do pobre provinciano, que chega a Lisboa de trouxa às costas e com ar aparvalhado, que criou a nova significação da palavra. Ela já está

devidamente arquivada, com o seu sentido actual, no mais completo repositório de gíria portuguesa moderna, que é o Dicionário de calão (1959), da autoria de Albino Lapa.

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Por conseguinte, o conhecimento da gíria é indispensável para quem escreve e para quem lê. Quem escreve não pode representar um carroceiro ou um simples homem do povo falando como um marquês. Os homens têm a linguagem do seu meio, da sua profissão. Dize-me como falas, dir-te-ei o lugar que ocupas na sociedade. Por outro lado, o leitor que desconheça o vocabulário giriático pode encontrar sérias dificuldades na interpretação de livros que conduzam aos meios sociais em que se fala essa linguagem. O romance moderno realista procura justamente dar ao vivo o falar das suas personagens, reforçando com isso a evocação do ambiente.

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