• Nenhum resultado encontrado

O substantivo Já temos visto que o substantivo pouco difere do adjectivo; no fumdo, são dois

realidade lin-

O ARTIGO E OS NOMES

8. O substantivo Já temos visto que o substantivo pouco difere do adjectivo; no fumdo, são dois

aspectos duma mesma realidade linguística. A própria origem do nome tem

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 125

mais de adjectivo do que de substantivo. com efeito, ao princípio, todos os seres foram designados por uma qualidade fumdamental que os caracterizava. Esse processo, usado na formação dos substantivos, vê-se ainda hoje nas alcumhas pessoais: o (José) Manco, o (Manuel) Canhoto, etc. Para designar um curso de água podem considerar-se duas noções fumdamentais: o próprio derivar da água, e nesse caso o objecto chamar-se-á corrente, torrente, cachoeira, etc., ou, visto de mais longe, o aspecto sinuoso das margens, das ribas, e nesse caso dar-lhe-emos o nome de rio, regato,

ribeiro, etc. Isto seria na origem: hoje, a palavra rio suscita não apenas uma qualidade, mas a

imagem total do objecto: o correr da água e o aspecto das margens. Primitivamente, aludindo a uma qualidade do objecto, era uma espécie de adjectivo; por fim, sugerindo-o integralmente, tomou-se verdadeiramente substantivo.

Hoje, como que voltámos à primitiva concepção. A língua actual, de cumho impressionista, avulta a qualidade acima do objecto, faz da qualidade o próprio objecto. É assim que dizemos «o rubro das papoilas», «o idiota do rapaz», substantivando os adjectivos. E é ainda por esta tendência que dizemos «uma beleza de criança», «uma maravilha de seara», pondo o substantivo qualificante à frente do qualificado. Eis um trecho de Fialho de Almeida, como abonação literária do processo, aliás muito em voga na língua corrente: «Paço era vivo, com uma dessas caras picantes de Sevilha,

numa sinfonia de notas peroladas».

Claro que os poetas modernistas não fazem caso da velha distinção entre substantivo e adjectivo. Um dos maiores, certamente o maior, Fernando Pessoa, escreveu:

126

M. RODRIGUES LAPA

Não se sabe aqui qual o nome que fumciona como adjectivo, e esta imprecisão acrescenta o mistério da sugestão poética. Já noutros versos do mesmo autor se emprega claramente o substantivo em lugar do adjectivo: «com que ânsia tão raiva / quero aquele outrora!»

9. Abstractos e concretos. - São abstractos os nomes que aludem às acções, aos estados, às propriedades: levantamento, silêncio, rapidez, etc. Dizem-se concretos aqueles que se referem à substância: papel, pedra, montanha, etc. Os primeiros escapam à experiência dos nossos sentidos; os segumdos são seres materiais, sobre que se podem exercer esses mesmos sentidos. Isto, em teoria; na realidade as coisas são mais complicadas. É que certos conceitos abstractos podem ter uma face concreta e, ao contrário, muitos nomes concretos se podem empregar em sentido abstracto.

O nome beleza é, não há dúvida, uma palavra abstracta; mas se, ao pronumciá-lo ou ao escrevê-lo, eu tenho nos olhos a imagem de um retrato, ou de um mármore como o da Vénus de Milo, o substantivo adquire para mim um valor concreto. Era aliás o que faziam os antigos gregos e romanos: as ideias abstractas, tais como a beleza, o destino, a morte, etc., eram para eles de certo modo concretas, porque, ao pensá-las, tinham nos olhos as figuras da sua mitologia. Assim, para um romano, a noção de beleza andava ligada à visão duma estátua de Vénus, a morte sugeria-lhe um sem-número de imagens concretas: as Parcas tecendo o fio da vida, os reinos infernais de Plutão, etc.

As ideias abstractas são susceptíveis, além disso, de manifestações concretas. Um indivíduo que tem sono, escabeceia, faz trejeitos, deita-se, ressona. Tanto basta para que o substantivo nos apareça menos abstracto, porque lhe andam ligadas estas manifestações corporais. O termo silêncio, sendo, como é, abstracto, se evoca em nós a noção contrária de ruído, o sossego das ramagens quietas, etc., toma-se por isso menos

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 127

abstracto. Isto é, a abstracção dos nomes é coisa relativa, porque depende em parte do poder de fantasia dos indivíduos. Pelo contrário, muitas vezes os nomes concretos podem ser tomados não no sentido material e objectivo que lhes é próprio, mas em sentido espiritual, tomando-se por isso abstractos. Os substantivos sol, braço, sangue, são concretos; mas podem ser empregados em sentido figurado, equivalendo a ideias abstractas. É o que se dá nos seguintes exemplos: 1. A filha única era para ele o sol da sua vida.

2. António era o braço direito do seu pai.

3. Sentiam-se umidos pelos laços poderosos do sangue.

É bem evidente aqui a transformação do termo concreto em abstracto: sol significa propriamente o «conforto espiritual», o «encanto»; braço o «apoio», o «sustentáculo»; sangue o «parentesco», a «estirpe familiar». É um processo da linguagem figurada, bem conhecido de todos. A estas transposições do concreto para o abstracto e vice-versa chamamos metonlmias.

1. Filho és, pai serás...

2. Chamou o filho e repreendeu-o.

No primeiro exemplo, como vimos já, o nome sem artigo alude mais à qualidade, à essência, do que ao próprio objecto. Logo, o substantivo tem valor abstracto. No segumdo exemplo, em virtude do artigo, estamos vendo corporalmente a pessoa; logo, filho é um nome concreto.

Os substantivos colectivos também podem ter uma face concreta, como vamos ver. Suponhamos, por exemplo, este nome: pinheiral. O vocábulo suscita em nós duas representações: a da quantidade global, - face abstracta; e a dos pinheiros, considerados mentalmente um por um, - face

128

M. RODRIGUES LAPA

concreta. Por outros termos: o colectivo possuí duas umidades semânticas, mais ou menos sensíveis, conforme os indivíduos: a ideia abstracta do todo e a visão concreta das partes.

Os adjectivos também podem ser mais ou menos concretos ou abstractos. Quando dizemos - «O tempo está/mco» temos uma sensação física de frescura; mas quando dizemos

- «uma lembrança fresca» - já o adjectivo, empregado em sentido figurado, de concreto passou a abstracto. É como se disséssemos «recente», «de pouco tempo».

A linguagem literária moderna faz largo uso do substantivo abstracto, em sentido mais ou menos concreto. É uma criação de estilo. Vejamos este período:

«E apenas Gonçalo empurrou timidamente a porta quase acuou no espanto e medo daquela aflição estridente, que se arremessava para ele e para a sua misericórdia».

Trata-se de uma pobre mulher que foi pedir pelo seu marido, a ferros na prisão. Não vemos o objecto, a mulher; só sentimos concretamente a sua dor, que parece ter braços para suplicar e pernas para andar. O termo misericórdia também está tomado em sentido menos abstracto; mas aflição é já qualquer coisa que se vê, porque se «arremessa», e se ouve, porque é «estridente».

O estilo moderno tem marcada predilecção por este processo, que consiste em pôr à frente o abstracto, o qual indica sem determinar e avulta a qualidade acima do próprio objecto. Veja-se este passo de Fialho de Almeida: «relvas picadas da vivacidade das corolas». Se escrevêssemos ao modo clássico «relvas picadas de corolas vivazes», poderíamos ser mais lógicos, mas éramos certamente menos expressivos. O abstracto, no esforço para se tomar concreto, adquire uma espécie de personalidade activa (a vivacidade das corolas picando as relvas).

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 129

10. O género e o número. - Pouco interesse tem para o nosso caso a determinação do género e do

Outline

Documentos relacionados