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Os compostos literários e científicos Afora estes compostos orgânicos, que se formam com a prata-da-casa, a língua possui ainda meios extraordinários de composição de palavras, que lhe

realidade lin-

3. Os compostos literários e científicos Afora estes compostos orgânicos, que se formam com a prata-da-casa, a língua possui ainda meios extraordinários de composição de palavras, que lhe

fornecem o latim e o grego. A esses antigos idiomas vai buscar um sem-número de elementos, com que fabrica novas palavras, por justaposição. Vejamos algums casos, tirados ou imitados do latim:

agridoce, altissonante, alvinitente, artimanha, aurifulgente, barbirruivo, boquiaberto, cabisbaixo, carnívoro, curvilíneo, florilégio, floricultura, fratricídio, grandíloquo, herbívoro, lanifício, noctívago, petrificar, rarefazer, silvicultura, velocípede, ventríloquo, vermífugo, etc.

A maior parte destes vocábulos são bem conhecidos e de fácil compreensão. O processo de justaposição é quase sempre o mesmo: os dois nomes são ligados um ao outro pela vogal i. Contudo, não são palavras da linguagem corrente, exceptuada uma ou outra, mais em voga:

artimanha, cabisbaixo, carnívoro, lanifício. Não há dúvida, portanto, que estes compostos

alatinados são sentidos por nós como palavras de uso especial e não corrente. Os compostos formados por via do grego têm carácter ainda mais restrito, técnico e científico, como vamos ver:

aristocracia, autómato, braquicéfalo, cacofonia, cromografia, democracia, estenografia, filosofia, iconoclasta, megalomania, neurastenia, paquiderme, pirilampo, pirotécnico, plutocracia,

taquigrafia.

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Tivemos o cuidado de escolher, entre todos os compostos gregos, os mais usuais. Ainda assim, é manifesto que se trata de formação literária, não popular. Se palavras como autómato, democracia,

filosofia, pirilampo, já são do domínio corrente, isso deve-se ao seu frequente emprego na vida

actual; mas sempre estas palavras são tidas como não familiares.

Dirá o leitor: - Mas, então, é necessário saber grego e latim para conhecer o português? Não é, felizmente. Os dicionários usuais trazem a etimologia das palavras; de modo que os compostos literários são divididos e explicados nos seus elementos de formação. Por exemplo, em democracia são ainda perfeitamente sensíveis os dois termos: demos, povo, e kratia, poder, governo - isto é, «governo exercido pelo povo». O primeiro elemento entra em outras palavras de carácter científico, como demografia, demopsicologia; o segumdo em aristocracia, plutocracia.

As boas gramáticas darão ao estudioso a significação dos elementos formativos das palavras compostas e derivadas, de origem latina e grega. O Dicionário de afixos e desinências do professor brasileiro Carlos Gois traz tudo isso por ordem alfabética; mas nada vale como a prática e o uso consciencioso do dicionário. A experiência habilitará a compreender esses elementos greco-latinos, sem precisão de saber as respectivas línguas.

nenhuma importância para o estilo. Tirado da sua esfera, que é geralmente a erudição e a ciência, o palavrão técnico dificilmente convém numa página de literatura. É uma construção mais ou menos artificial; não desperta nem o sentimento nem a fantasia, que são, como temos dito, os principais domínios da Estilística.

Contudo, um escritor do século xvm, Filinto Elísio, julgou dar relevo ao seu estilo, forjando compostos à custa

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do grego e do latim. Como era homem de mau gosto, saíram-lhe coisas arrevesadas como estas, que a língua justamente repudiou: «septí-cole Roma», «flamívomo alento», «regos frugíferos», «ebri-

festante sumo», «ali-poiente cisne», etc.

4. A composição abstracta. - Os compostos correntes, formados pelo povo, ou adoptados francamente por ele, têm, por via de regra, carácter concreto. O povo não sabe lidar com

abstracções e tende sempre a dar forma concreta às suas ideias. Já os literatos tendem mais para o abstracto, perdendo de vista muitas vezes as realidades concretas. Sobre o modelo popular de

couve-flor imaginaram poder criar compostos abstractos, como amor-orgulho, beleza-novidade, beleza-espanto, parada-orgulho, vida-espírito, viãa-beleza, elegância-fio-de-prumo, etc. Estes

exemplos são tirados do escritor Antero de Figueiredo, em cujo estilo se nota particular tendência para o composto abstracto.

Sob o aspecto formal, a composição não levanta reparos; mas é discutível o efeito que produzem semelhantes criações; o que diz bem com palavras concretas, já não tem a mesma virtude com palavras abstractas. Vejamos dois exemplos:

1. Amamos com amor-orgulho o que é propriamente nosso.

2. Sou admiração ante a beleza-espanto dos formidáveis desfiladeiros.

A maneira usual de escrever não é esta. Diríamos normalmente: Amamos com orgulhoso amor... -Fico admirado ante a beleza espantosa. E não é difícil notar que o emprego do adjectivo dá mais viveza e mais cor à imagem. O artista pretendeu dar maior intensidade à expressão; mas a

justaposição dos dois abstractos não o ajudou. Essa aliança diminui, ao contrário, a força expressiva do composto. Em

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couve-flor os olhos da imaginação pousam no objecto, vêem a couve e a flor. Em amor-orgulho a

umião dos abstractos, longe de fortalecer, empalidece a imagem, gerando uma confusão entre os dois termos. Dois substantivos abstractos são dificilmente conciliáveis: prejudicam-se um ao outro, deixando inerte a fantasia.

Há ainda, e esse recentíssímo, um outro tipo de composição, criado para explicar o sentido de certos termos mais ou menos misteriosos; desenvolve-se, pois, numa perífrase mais ou menos longa. Essa composição está representada no escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Veja-se este exemplo, em que a palavra destino, anteriormente referida, é depois desenrolada numa longa explicação que lhe determina exactamente os contomos: «Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida - de- todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer». (Sagarana, 5.a ed., pág. 123).

Note-se que há uma tendência, criada pela técnica e pelo jornalismo, para a formação de compostos, em que um dos elementos é mais ou menos abstracto: escola-modelo, navio-chefe, camioneta-

ainda assim, os dois últimos são de gosto duvidoso e parecem mais uma criação de momento, arriscada a não vingar. Há na língua, ocultamente, um sentimento de proporção e beleza, nem sempre infalível, mas que condena todas as inovações que vão de encontro ao seu génio. Curioso, a esse respeito, é o caso do composto - navio-mãe para designar o navio portador dos mantimentos. A composição, aparentemente absurda, explica-se por uma imagem, que nos representa a mãe a dar de comer aos filhos. É por isso que se não diz navio-pai. Esta justaposição do masculino e feminino vem de longe, pois já nos princípios do século xvii se chamava galeão-capitânia ao navio principal duma frota.

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5. Os prefixos. - Outra maneira de formar palavras: coloca-se-lhes antes certos morfemas, a que se dá o nome de prefixos, destinados a modificar mais ou menos a significação primitiva. Antigamente, as palavras formadas por meio de prefixos entravam na categoria de palavras compostas, porque se via nessas partículas, com, contra, ante, etc., verdadeiros vocábulos, justapostos a outros. Logo,

compadecer, contradita, alentejano, antepassado, eram de direito considerados como termos

compostos. Como porém há prefixos com autonomia mais discutível - dês, ais, in, ré, etc., já hoje algums gramáticos consideram estas palavras, assim formadas, como derivadas por prefixação. As outras, formadas com auxílio de sufixos, partículas que se colocam depois, são derivadas por sufixação. O caso não tem a menor importância para o fim que pretendemos.

O que importa é verificar a alteração semântica introduzida pelo prefixo, e ver se o vocábulo tem uma ou mais umidades. Assim, tomemos, por exemplo, a palavra desgraça. O termo comporta uma umidade de pensamento, sugere uma única imagem. O prefixo dês- passa despercebido, é como se pertencesse à primitiva palavra. Um erudito, é claro, vê as coisas de outro modo: decompõe a expressão dês + graça e explica, subindo às origens: «é a situação miserável de alguém que se encontra sem a graça de Deus». Vê pois duas umidades de pensamento no vocábulo: a ideia sugerida por graça (sentido mais ou menos religioso) e outra, negativa, suscitada pelo prefixo dês. Este instinto de decomposição, ou instinto etimológico, é já nosso conhecido e existe forçosamente em todo aquele que se entrega ao estudo e observação das palavras O trocadilho entre o simples e o composto, de que já falámos (sentir - consentir, vencer - convencer), não é mais que um dos aspectos dessa mesma tendência. Até onde chega esse instinto, num escritor de génio, poderá ver-se deste pequeno

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trecho de Camilo, alusivo a ums retratos de pouca naturalidade:

«Os retratos, que o poeta legendário denominou transumptos, são verdadeiramente sumptos - «tomados», trans - «além do verossímil humano. São más caras aquelas!» (Dispersos, in, 215). Camilo decompôs a palavra nos seus dois elementos latinos, transumptos, e com eles fez o jogo do seu espírito.

Outro exemplo deste mesmo instinto de decomposição é-nos dado nesta frase de Teixeira-Gomes: «Ah! eu compadeço a dor das sereias!...»

O verbo compadecer é reflexo. De modo que deveríamos dizer: «Ah! eu compadeço-me da dor das sereias...» Mas o escritor sentiu a composição do verbo, desdobrou-o em duas umidades semânticas e criou um novo modo de expressão, traduzindo de forma abreviada esta noção complicada: «eu

padeço jumtamente com as sereias a sua dor».

Outro exemplo ainda: Ferreira de Castro escreveu feitos impares (= extraordinários). Em vez do usual impares, esdrúxulo, que evoca uma operação aritmética, usou a palavra como grave, o que dá

realce ao prefixo negativo in- e à palavra pares. Isso só foi possível pelo desdobramento dos

elementos constitutivos da expressão. O mesmo se deu com o adjectivo ímpio, que muitos escritores preferiram ler ímpio. O processo lembra o de Filinto Elísio, no século xvm, o qual, para acentuar mais a ideia de negação, escrevia: in-consolado, separando por hífen o prefixo da palavra, a fim de lhe dar maior relevo.

Aos escritores de talento ou génio são permitidas estas liberdades de criação; o aprendiz de estilo terá de se limitar a um papel mais modesto e desenvolver as suas aptidões

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dentro das realidades do idioma, sem alterar o valor das palavras, consagrado pelo uso. Mesmo dentro desta esfera terá inúmeras possibilidades de realizar a sua personalidade, sem atrevimentos excessivos, que o poderiam prejudicar.

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