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M Rodrigues Lapa - Estilistica Da Lingua Portuguesa

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POR EXPRESSO DESEJO DOS EDITORES, ESTA OBRA É NUMERADA E RUBRICADA PELO AUTOR

M. RODRIGUES Lapa

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA

PORTUGUESA

11.a EDIÇÃO

REVISTA PELO AUTOR

Composição e impressão COIMBRA EDITORA, LDA

1984

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O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

1. Palavras reais e instrumentos gramaticais. - Consideremos este pequeno trecho literário

de Trindade Coelho, em Os Meus Amores:

«A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o horizonte

começava de carminar-se ao de leve.»

Se observarmos o papel que as diferentes palavras desempenham no discurso, logo

verificamos que umas são mais importantes do que as outras. São as principais portadoras

da ideia ou do sentimento, traduzem a realidade com mais viveza, despertam enfim

imagens mais fortes. Claro que isso dependerá um pouco do observador; mas qualquer de

nós, por diferente que seja, verá naquele período literário as seguintes palavras ou

expressões principais, que vão agora impressas a itálico:

A esse tempo, no céu alto e lavado, a estrela-d’alva fenecera por fim, e o Horizonte

começava de carminar-se ao de leve.

Se quiséssemos levar mais longe a exploração, verificávamos que entre estes termos

principais se poderia fazer

ainda uma redução, omitindo os menos importantes e deixando ficar apenas aqueles em que

recai plenamente o sentido do trecho:

Céu... estrela... fenecera... horizonte... carminar-se.

Com um pouco de boa-vontade, conseguimos ainda apreender o significado da frase,

reduzida agora à sua expressão mais simples.

Vejamos as fases dessa operação simplificadora. Primeiramente despojámos o trecho de

artigos, preposições, conjumções, verbo auxiliar (começava), locuções adverbiais, excepto

uma (A esse tempo), que nos pareceu de algum valor expressivo e lógico. Por fim, querendo

levar a selecção ao maior apuro, só deixámos ficar substantivos e verbos.

Que se deve concluir de tudo isto? Que as palavras se encontram subordinadas a uma

escala de valores expressivos. Que há palavras reais, fumdamentais, que levam em si toda a

responsabilidade do sentido da frase, e que há instrumentos gramaticais, encarregados de

estabelecer a ligação entre as ideias. As palavras reais (também chamadas lexemas)

são o substantivo, o adjectivo, o verbo e, por vezes, o advérbio, o numeral e o pronome,

conforme o papel que desempenham no discurso. Os instrumentos gramaticais (também

chamados morfemas) são constituídos por todos os outros elementos de relação e precisão:

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artigos, preposições, conjumções e, por vezes, advérbios, numerais e pronomes. com

absoluto rigor, poder-se-ia dizer, como vimos, que lexemas são apenas os substantivos

e os verbos: o substantivo designando o agente da acção, o verbo exprimindo a própria

acção. com efeito, a ligação do agente com o acto realizado ou a realizar constitui a forma

mais simples, mais primitiva do pensamento. Exemplo: Rei ordena, Deus pumirá, etc.

Na vida prática, esta divisão em lexemas e morfemas tem várias aplicações. O carácter

vertiginoso da nossa

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civilização impõe-nos a economia das palavras para se não perder tempo... e dinheiro. Na

vida dos negócios há por vezes necessidade de fazer condensações enérgicas, limitando as

palavras ao máximo, sem quebra de clareza do pensamento. O homem de acção, o político,

o chefe civil ou militar não arredondam a frase para dar ordens. As palavras reais têm neles

um carácter incisivo, quase dispensam os instrumentos gramaticais. Um dia, o escritor

português D. Francisco Manuel de Melo, antigo soldado, escreveu a um jovem parente,

que partia para a guerra. O seu estilo adquiriu então o laconismo, a concisão disciplinada

duma ordem militar:

«Ide com Nosso Senhor. Lembrai-vos sempre dele e de quem sois. Falai verdade.

Pergumtai pouco. Jogai menos. Segui os bons; obedecei aos maiores. Não vos esqueçais de

mim. E sede embora Plínio Júnior; que, se tudo isto fizerdes, ainda sereis mais. Deus vos

leve, defenda e traga. Torre, sábado.»

Há porém na vida social uma esfera de actividade, em que a destrinça entre lexemas e

morfemas adquire particular importância: referimo-nos à técnica do telegrama. O telegrama

terá de encerrar o maior laconismo - as palavras custam dinheiro! - dentro da maior força

expressiva : faz pois avultar a palavra real à custa do instrumento gramatical. Um exemplo

tirado de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queiroz:

«Capítulos romance recebidos. Leitura feita amigos. Entusiasmo! Verdadeira obra-prima! Abraço!»

Este telegrama contém tudo quanto é fumdamental, e só tem substantivos, um adjectivo

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«Recebi os capítulos do teu romance. Fez-se uma leitura aos nossos amigos. Foi enorme o

entusiasmo, e todos o classificaram de verdadeira obra-prima. Envio-te um grande abraço».

Ficaria talvez mais completo, porventura mais elegante; mas nada adiantava ao sentido

fumdamental, e o autor deste desenvolvimento pagaria quase o triplo da taxa que pagaria,

se o mandasse sob forma abreviada, verdadeiramente telegráfica.

Sendo o Português, por natureza, descomedido em palavras, como todos os povos do sul, a

Direcção dos Correios, no seu interesse, pôs um travão ao chorrilho de frases que enchiam

os simples cartões de visita, preceituando um máximo de cinco palavras (morfemas e

lexemas) para essas fórmulas de cortesia, como sejam agradecimentos e felicitações. Não

há dúvida que a ordem embaraçou muita gente; mas teve pelo menos a vantagem de chamar

a atenção para o valor das palavras. Agora, quando quisermos responder a um cartão de

boas-festas, teremos de nos cingir a uma frase destas, em que há apenas um morfema:

FULANO...

retribui, agradecido, os amáveis cumprimentos.

Isto não quer dizer, evidentemente, que preconizemos o estilo telegráfico para as redacções

dos nossos leitores. De modo nenhum; mas faz-lhes sentir a importância dos vocábulos e

adverte-os de um perigo: a multiplicação inútil das palavras que nada acrescentam ao

sentido. No bom

estilo não se diz nem de mais nem de menos; diz-se o que é preciso,

na medida exacta do que se pensa e sente, com vigor e com clareza. E, pecar por pecar,

antes pecar por sobriedade do que por inútil sobrecarga de palavras.

2. A fantasia das palavras. - As palavras reais distinguem-se, como vimos, pela sua força

expressiva. Despertam a imagem das coisas mais energicamente; e essa imagem viva

ilumina o pensamento, dispensando outros acessórios de que se serve a frase logicamente

constituída.

As palavras suscitam em nós as imagens das coisas a que se referem; mas como essas

coisas podem revestir vários aspectos, cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto

pessoal, aquele que particularmente lhe interessa.

Por exemplo, a palavra sino pode evocar diferentes imagens, conforme as pessoas que a

ouvirem: o campónio terá uma representação sonora; outro, o filho do sineiro, sentirá na

palavra o movimento do puxar da corda e do voltear do sino (imagem motriz); enfim, o

serralheiro terá a representação visual do objecto. A estes três tipos de imagens, sonora,

motriz, visual, outras se poderiam talvez ainda acrescentar.

Já se tem afirmado que numa simples palavra se pode resumir todo o universo. Quer isto

dizer que um vocábulo pode suscitar uma infinidade de imagens e ideias que abranjam

todos os domínios do pensamento e da vida. Vejamos, por exemplo, a pequenina palavra

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lar. Poderá apresentar-nos a imagem concreta da casa, do seu conforto ou desconforto

material, ou ainda a noção espiritual, sentimental, do lugar onde vive a família. A primeira

representação pode repartir-se em várias imagens subsidiárias: a construção da casa, a sua

situação, a paisagem em redor, a luz ou sombra de que é banhada, etc. A segunda

representação levar-nos-á a considerar: o nosso nascimento, os afectos ou desafectos da

nossa infância, a nossa educação, a harmonia ou desarmonia entre os membros da família,

etc. E estas representações familiares poderão ainda suscitar, por associação, sentimentos

de carácter social: o desabrigo das pessoas que vivem em barracas, a miséria dos que não

têm eira nem beira, etc.

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É neste sentido que se diz que numa palavra se podem conter todos os fenómenos da vida. O seu poder evocador não conhece limites.

Vemos pois que, em volta de cada palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente, palavras mais evocadoras do que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja conhecer a fumdo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objecto a que se referem com a maior frescura e vivacidade possível.

Vamos dar o resultado de uma série de experiências feitas por outros e feitas por nós em pessoas da nossa família. Mais uma vez se insiste no carácter puramente pessoal de tais provas. O resultado poderá variar conforme as pessoas. Designamos por A, B, C, D os indivíduos que se submeteram às experiências. Ao ouvir as palavras que se seguem, produziram-se nesses indivíduos as seguintes imagens, simples ou complexas. A primeira é a imagem mais forte, espontânea.

a) Chave:

A: imagem visual (uma chave grande de metal amarelo). B: » auditiva (o ruído do abrir da porta). C : » visual (vê sobretudo a parte superior, redonda). D: » » + imagem, táctil (sente a chave nos dedos).

b) Chuva:

A: imagem visual (poeira escura levantada) + imagem olfactiva (cheiro da terra). B: imagem térmica (arrepio de frio).

C: » visual (cordas de água) + imagem auditiva (ruído abafado de chuva no chão). D: o mesmo complexo de imagens que em C.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 11

c) Avião:

A: imagem visual (vê um avião no écran dum cinema). B: » » (vê um selo de correio aéreo: é um filatelista). C: » » + imagem auditiva (ruído do motor).

d) Gás:

A: imagem visual (vê um fumo acinzentado).

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imagem olfactiva (cheiro a gás). C : imagem auditiva (escapar ruidoso do gás). D: » visual (chama azulada) + imagem olfactiva (cheiro do gás).

e) Veludo:

A: imagem visual (cor preta).

B: » » » » + imagem táctil (sente-o nas pontas

dos dedos). C: imagem visual (cor preta) + imagem táctil (sente-o nas mãos).

f) Serpente:

A: imagem visual (vê só a cabeça e língua, com malhas redondas de cores várias, sobretudo amarelo e verde).

B: imagem visual (corpo inteiro) + imagem motriz (o rastejar). C: » motriz e auditiva (movimento e ruído) + imagem visual.

g) Limão:

A: imagem visual (forma e cor amarela).

B: » gustativa (sente o gosto ácido do limão) + imagem visual

(vê a árvore com o fruto). C: imagem visual + imagem gustativa + imagem táctil.

Escolhemos de preferência substantivos, como despertadores da fantasia por aludirem com mais viveza ao objecto; mas é bom de ver que os verbos (por ex. bater, abrir, picar, etc.) e adjectivos (por ex. áspero, doce, fino, etc.),

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M. RODRIGUES LAPA

pelo seu carácter mais ou menos concreto, também podem sugerir imagens.

3. A para fantasia. - Se observarmos o resultado das experiências acima exposto, vemos que

predominam largamente as imagens visuais, como é próprio de objectos materiais; e que

estas, como é natural em coisas tangíveis, andam não raro ligadas a imagens tácteis. Vemos

ainda mais: a imagem alude geralmente ao objecto, representa-o directamente, em um ou

outro dos seus aspectos. Há porém excepções, e essas oferecem grande interesse. Por vezes,

a fantasia transcende para além do objecto e dá representações que pouca ou nenhuma

relação têm já com ele. Vimos acima um curioso exemplo deste fenómeno, a que se chama

parafantasia: ao ouvir a palavra avião, a B representou-se-Ihe um selo de correio aéreo; ao

ouvir chave, não viu logo o objecto, imaginou ouvir abrir uma porta.

Mais algums casos de parafantasia: E, quando ouve a Fulano proferir a palavra maçã vê a

macieira com folhas, sem maçãs; em vento vê terra; em sino vê o adro duma capela; em

seda, vê o bicho e fios em baba. F, quando ouve o vocábulo vento, tem logo a imagem ora

de um barco, ora de um moinho. G, à palavra música, tem a imagem de um baile; em leite,

vê a tijela do leite; em ponte, ouve um comboio atravessando a ponte; à palavra maçã, vê

um livro de aritmética, onde havia algums pequenos problemas sobre maçãs.

Repare-se nesta particularidade: umas vezes vê-se a árvore em vez do fruto, a terra em vez

do vento que a agita, a causa (bicho-da-seda) em vez do efeito, o continente (tigela) em vez

do conteúdo (leite). É a explicação dum fenómeno que tem aplicação literária e é conhecido

pelo nome de linguagem figurada.

As palavras abstractas, como é natural, não sugerem tantas representações. Todavia, a sua

forma sonora, jumta ao

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 13

seu sentido, gera por vezes uma imagem de cor. Para Ramalho Ortigão, saudade era uma

palavra azul, rancor uma palavra vermelha. É aquilo a que se chama audição colorida: a

correspondência imaginada entre o som e a cor. A estas correspondências, a estas inter

penetrações dos vários sentidos, que assumem aspectos extraordinariamente interessantes,

dá-se o nome geral e científico de sinestesias. Desempenham papel importante na literatura

e são conhecidas desde o século xvm, pelo menos. Foi Filinto Elísio quem, nesse tempo,

chamou a atenção para a cor dos vocábulos. Um dia, um senhor impertinente, dado à ironia,

encontrou numa ode do poeta uma dessas sinestesias e disse-lhe, com um risinho:

- Pois a alegria é loura? Tão alva e loura como a morte é pálida.

Ao que o escritor retorquiu imediatamente:

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- V. Ex.a é que me parece loura no caso...

Para se entender o trocadilho, é necessário dizer que loura tinha, na época, o sentido de

«parvo», «palerma».

Claro que nem todos produzirão com igual frescura e presteza as imagens que andam

ligadas às palavras. Quando os anos aumentam e a inteligência se desenvolve, as imagens

das coisas vão enfraquecendo, tomam-se por assim dizer desbotadas. As palavras

dificilmente despertam já a fantasia. Nessa altura, para avivar o poder da imaginação, o

homem tem ainda o recurso da obra de arte, cujo segredo consiste na sábia escolha dos

meios de expressão, com que se chamam novamente à luz essas imagens meio apagadas.

4. Valery Larbaud e o vocabulário português. - O notável escritor francês Valery Larbaud,

espírito cosmopolita, meteu-se a aprender português, da primeira vez que esteve entre nós.

Encheu-se de simpatia pela nossa terra, pela doçura da nossa gente, e quis aprender a língua

para melhor

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M. RODRIGUES LAPA

surpreender a nossa alma. Aprendeu-a, como ele dizia, com o esforço apaixonado com que

se obtém o amor duma mulher. E contou-nos, de modo encantador, a sua experiência do

vocabulário português. É sem dúvida interessante observar as reacções dum estrangeiro

superiormente culto, como Larbaud, perante as palavras mais correntes da nossa língua.

Vamos dar o resultado das suas impressões, publicadas no Divertimento filológico.

O escritor francês, no primeiro contacto com a língua escrita e falada, sentiu logo a doçura

e a graça de certos vocábulos:

1. Só. A palavra exprime, na sua concisão desesperada, o extremo da solidão e do

abandono. Quando se lhe acrescenta o diminutivo -zinho, Larbaud nota que o sufixo não é

apenas lógico, exprime ainda admiravelmente a atitude do espírito dobrado sobre si próprio,

na solidão.

2. RAPARIGA. O escritor compara o vocábulo português aos correspondentes espanhóis e

italiano: rapaza, muchacha, ragazza; todos sugerem o ruído alegre de estudantas, saindo da

escola, na rua, às gargalhadas: mas rapariga faz mais ruído que qualquer dessas palavras.

No português do Brasil, já desde o século xvni, ao que parece, o vocábulo foi tomando

coloração pejorativa. Houve contudo resistência literária a essa deturpação. Num romance

de Aluízio Azevedo, O Cortiço, ainda é usado no puro sentido português. Em Lima

Barreto (Clara dos Anjos, l.a ed., pág. 179) dá-se o mesmo. Érico Veríssimo,

representando a última defesa da formosa palavra, em consonância certamente com seu

falar regional, emprega-a no bom sentido (Olhai os lírios do campo, 18.a ed.: «Chamou a

secretária, uma rapariga magra, de ar cansado», pág. 136).

3. GAROTA. Também é bonita a palavra e própria para as raparigas do povo duma

grande cidade. Diz Larbaud

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 15

com graça que, se casasse com uma portuguesa, lhe chamaria garota, num impulso de terna

familiaridade, de amorosa falta de respeito.

4. RAINHA. A palavra tem na sua forma sonora e gráfica o quer que seja de exótico: traz

no vestido um perfume da Ásia.

5. MENINA. O termo é encantador, com um ar antigo, afidalgado. Já um outro estrangeiro,

o alemão Link, que visitou Portugal nos fins do século xvm, dizia que a expressão minha

menina era a mais doce que se encontrava em qualquer língua.

6. BONECA. O escritor deu-se ao cuidado de evocar os termos que significam boneca em

outras línguas europeias e encontrou mais beleza: em primeiro lugar no vocábulo italiano

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bámbola, logo a seguir nas palavras portuguesa e espanhola- boneca e mumeca, que

competiam em formosura expressiva.

7. MEDONHO. A palavra impressionou vivamente Larbaud. Há qualquer coisa de

repugnante, infame e horroroso nesta palavra, que nos comunica o seu estremecimento, a

sua náusea.

8. BEIRA-MAR. Para o escritor francês era uma das palavras mais poéticas do seu

conhecimento: vasta, sonora, grandiosa, oceânica.

9. SAUDADE. Larbaud define a impressão que lhe dá a famosíssima palavra: um céu

nublado entre distantes zonas luminosas.

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M. RODRIGUES LAPA

Outras palavras que o impressionaram agradavelmente: namorar, namoro; doente, doença;

voo, dor, cor, carvalho, orvalho, cotovia, imenso, devagar, janota, ficar, poupar, meigo,

brinco, brincadeira,

Todos aqueles que aprendem uma língua nova recebem impressões desta natureza: o

sentido conhecido ou entrevisto da palavra conspira com a imagem sonora e dá-nos uma

espécie de ilusão. Os escritores que lidam muito com os vocábulos estão particularmente

sujeitos a estas ilusões. Têm a tendência para considerarem a palavra em si própria, bela

por si mesma, liberta das prisões da frase, que lhe fixam um sentido e lhe diminuem o

poder de fantasia. Os que se dedicam à arte de escrever trazem na memória um armazém de

termos expressivos. Para esses a palavra existe em estado puro, cheia de ressonâncias e

mistérios. E é sempre útil, como dissemos, pensar e sentir de novo as palavras,

isoladamente, na curiosa contemplação das imagens que despertam.

5. A palavra-frase. - Porém, logo a seguir, deverá fazer-se, como correctivo, o

exercício contrário. Verdadeiramente, o vocábulo isolado não existe senão para os artistas.

A palavra existe como parte de um todo, incorporada no contexto, e aí adquire o seu

significado especial. Entregue a si própria, já o vimos, assume os mais diversos aspectos,

carrega-se de tons variados, segumdo o indivíduo que a ouve ou profere. Aprisionada na

escrita, limitada e esclarecida pelos outros elementos do discurso, a palavra recebe de cada

vez e momentaneamente a sua verdadeira significação. Um exemplo: Quando dizemos ou

ouvimos: Que RAPARIGA! - o vocábulo final, por assim dizer isolado, desperta vivamente

a imaginação, como se o pronunciássemos ou ouvíssemos sozinho. Por isso vemos nesse

termo as mais variadas representações : podemos considerar as qualidades morais da moça,

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 17

a sua honestidade, a sua coragem, etc., ou as qualidades físicas, a formosura, a graça do

andar, etc.

Também nesta frase: A RAPARIGA que vês trabalha na fábrica

o vocábulo nos parece mais desbotado de colorido,

menos capaz de dar imagens, mas certamente mais preciso no seu significado, devido aos

elementos em que está inserido.

6. A significação das palavras. - Consideremos esta palavra corrente - cabeça. O primeiro

sentido que acode, estando a palavra isolada, é o seu sentido mais geral, a sua significação

física e primitiva: a cabeça é a parte superior do corpo humano. Um linguista não deixará

de registar com satisfação o facto: há certa lógica em que o sentido actual do vocábulo não

divirja do que tinha há mais de mil anos. Mas, se a palavra mantém um significado preciso,

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que lhe dá o mais frequente emprego, adquiriu também, com o uso, uma série de sentidos

subsidiários, que diferem mais ou menos do sentido etimológico: etimologia é o estudo da

origem das palavras, a fixação da forma e do sentido primitivos. Vejamos essas diversas

significações, registando apenas as que são mais usuais:

1. A cabeça é a parte superior do corpo.

2. Toda a gente o louva: é uma grande cabeça.

3. Sabia de cabeça todos os versos do poema. Ele vinha à cabeça de todos os concorrentes.

Essa vila é a cabeça da comarca.

6. Pagaram dez tostões por cabeça.

7. Feriu-se na cabeça do dedo.

8. O cabeça da conspiração foi aprisionado.

9. Isso não tem pés nem cabeça.

10. Deu-lhe agora na cabeça fazer versos.

11. Cada cabeça, cada sentença.

12. Então, perdeu por completo a cabeça.

2 - Estilística

3. 4. 5.

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M. RODRIGUES LAPA

Se quiséssemos averiguar o significado da palavra nos vários contextos em que está metida,

teríamos este resultado:

1.

2.

3.

4.

5.

6.

7.

8.

9.

10.

11.

12.

Sentido principal: parte superior do corpo.

talento, inteligência.

_____ de memória, de cor.

à frente, na parte superior. capital.

indivíduo, pessoa. extremidade, ponta. chefe, pessoa principal. sentido claro.

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homem, personalidade. razão, serenidade.

Como se originaram as várias significações da palavra ? Partiu-se do sentido original e

viu-se na cabeça a parte superior, a extremidade, o ponto principal dum corpo; ou então

encarou-se o facto pelo seu lado intelectual e viu-se na cabeça a sede do pensamento e da

imaginação. Daqui se originou toda essa vegetação de significações diversas, a que se dá o

nome de polissemia, e que é estudada numa disciplina filológica chamada Semântica.

Como vemos, e aqui melhor do que em outro lado, a palavra só adquiriu o seu verdadeiro

sentido quando engastada na frase. Só há verdadeiramente no discurso a palavra-frase. Por

isso os bons dicionários trazem os vários matizes de significação dos vocábulos inseridos

no seu devido contexto, isto é, têm um exemplo para cada variedade semântica. Sem isso,

não prestarão bons serviços. Em muitos dos nossos dicionários não aparecerá o quadro que

damos acima, a propósito de cabeça. E algums nem sequer trazem a locução, tão corrente,

perder a cabeça, por ser considerada, aliás sem razão, um galicismo.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 19

Em conclusão: poderemos afirmar que há tantas palavras quantas as significações. Em

gramática, chamam-se homónimas as palavras que têm forma igual, mas se distanciam pelo

sentido. Exemplo: pena tem pelo menos, quatro significados:

a) A pena admirável daquele escritor; b) O pássaro deixou cair uma pena; c) Foi condenado

a pena maior; d) É pena que não vás!

O sentido diverso é dado, já pela natural evolução das palavras, já porque nos dois

primeiros casos o vocábulo tem uma origem (do latim pinna) e nos dois últimos tem outra

(do latim poena). Em cabeça todos os exemplos têm a mesma origem; mas o resultado vem

a ser o mesmo: aqueles doze casos citados são tidos por quem fala ou escreve como

palavras de sentido diferente.

7. O instinto etimológico. - A exploração do sentido originário das palavras faz parte, como

dissemos, duma disciplina chamada etimologia. Essa operação é de indiscutível

importância para a ciência da linguagem e até para a história das civilizações, porque à

origem das palavras podem prender-se factos históricos e sociais de grande interesse. Mas

uma coisa é ciência, outra coisa estilo. Quando escrevemos ou falamos, pouco ou nada nos

importa o sentido passado dos vocábulos, a sua história; só apreendemos da palavra aquilo

que é actual. E demais, esse sentido etimológico, se fosse aproveitado, lançaria uma

extraordinária confusão sobre os fenómenos da linguagem.

Algums exemplos vão elucidar o leitor. Suponhamos que alguém, conhecedor do grego,

escrevia: «O povo italiano é um povo hipócrita.i> Queria ele dizer com a sua, fumdado na

etimologia ( = actor), que os italianos são naturalmente actores, gostam da exibição

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M. RODRIGUES LAPA

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 21

pior l a ser incomodado pelas autoridades consulares ou diplomáticas italianas, por ofensas

a um país estrangeiro.

Outro exemplo: Quando apelidamos alguém de marechal, ligamos à palavra uma altíssima

significação honorífica: o ponto mais alto da hierarquia militar. O etimologista, enfronhado

em seus estudos, vê as coisas de outro modo: sem perder de vista o significado actual, sobe

à origem e observa com um sorriso que a palavra, em seus começos, queria apenas dizer

isto, bem modesto por certo: encarregado da cavalariça!

Finalmente, consideremos a palavra coitado, tão portuguesa, tão representativa do nosso

brando modo de ser. Quando a proferimos, aludimos a alguém que é pobre, ou infeliz, a

quem a vida não corre bem. Pois a palavra, na sua origem, no tempo dos trovadores,

aplicava-se especialmente ao namorado que curtia dores por sua dama. Vão lá pensar hoje

nisso, quando se avista um mendigo andrajoso, a quem se diz, dando esmola: Coitado, tome

lá!

Vemos pois que as palavras têm um curioso romance histórico. É instrutivo conhecê-lo,

sem dúvida; mas numca devemos esquecer a obrigação em que estamos de empregar a

palavra no seu sentido actual. O motivo por que os filólogos, os gramáticos, os homens

muito eruditos escrevem mal é geralmente este: não têm presente e fresco o sentimento da

língua de hoje. As palavras evocam-lhes representações passadas, conformes à sua

etimologia. De modo que, quando escrevem, é um passeio constante pelos domínios da

antiguidade. A sua maneira de escrever traz por isso mesmo um cheiro a bafio. É um estilo

pretensioso e avelhentado, muito em voga nas academias.

Contudo, para uma coisa é útil o conhecimento da etimologia e da história das palavras:

para a leitura inteligente dos autores antigos. Quando Fr. Luís de Sousa escreve: «Da

imbecilidade de sua natureza não desconfiava, porque conhecia suas forças» - notamos que

imbecilidade está ali no

sentido etimológico, latino: «fraqueza». Seria erróneo atribuir à expressão o significado

actual: «parvoíce». Quando um outro grande clássico, D. Francisco Manuel de Melo,

escreve a respeito das suas Cartas familiares: «por todas cintila o queixume, apesar da

modéstia, que procura embaraçá-lo e desmenti-lo» - teremos de atribuir a modéstia o

significado antigo de «medida», «temperança no sofrimento», «resignação».

Os bons dicionários deveriam trazer todas estas significações, mas por vezes falham. E as

edições dos Clássicos deveriam ser cuidadosamente anotadas e apontar estas variações

semânticas. Se assim fosse, o leitor poderia efectivamente compreender os nossos autores

antigos, apreciá-los e aproveitá-los no que têm de aproveitável, sem perigo de assimilar um

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2.

O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS

No capítulo anterior vimos como uma palavra muda de significação, conforme os diferentes

contextos em que anda agrupada. Vamos ver agora como um conceito, uma ideia, admite

várias palavras para se exprimir conforme os seus variados aspectos.

1. Pluralidade dos meios de expressão. -Perguntemos, por exemplo, a um amigo o que

significa a palavra inteligente. Logo nos responderá, sem hesitar, procurando explicar o

termo por outros vocábulos ou locuções de sentido semelhante : •-• É o mesmo que

esportes, hábil, entendedor das coisas, que as compreende bem, que lhes penetra o sentido,

que tem olho, etc. Claro que cada uma destas expressões tem o seu valor, mas todas se

agrupam no espírito em volta da ideia geral, que as compreende a todas: inteligência.

Portanto, quem escreve e quem fala tem à sua disposição, para traduzir exactamente o

pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que acodem ao espírito,

para as necessidades de expressão. Quando se evoca uma delas, sucede geralmente como

quando se colhem cerejas: vêm as outras atrás. A estas palavras ou modos de dizer, ligados

entre si por uma noção comum, dá-se o nome de sinónimos.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 23

Estamos vendo a extraordinária importância do seu estudo e da sua prática para a técnica da

redacção. com efeito, a arte de escrever repousa essencialmente na escolha do termo justo

para a expressão das nossas ideias e dos nossos sentimentos. Por outras palavras: só

escreveremos bem, quando, na série sinonímica, escolhermos a palavra ou o grupo de

palavras que melhor se ajustam àquilo que queremos exprimir. É nessa escolha que reside,

em grande parte, o segredo do estilo.

2. Há ou não sinónimos ? - Se entendermos por sinónimos as palavras que têm sentido

semelhante, parecido, é evidente que existem sinónimos. Agora, se considerarmos, como

fazia supor a gramática antiga,, que sinónimos são as palavras que têm o mesmo sentido,

em breve nos convenceremos de que isso é impossível. Podem uma mesma ideia, um

mesmo acto, um mesmo objecto ter nomes diferentes; esses nomes não são, não podem ser

exactamente equivalentes, como não são nem podem ser equivalentes as folhas da mesma

árvore. Poder-se-á objectar com isto: há nomes de plantas, utensílios, produtos vários, que

adquirem diferente nomenclatura, conforme as terras do País. Por exemplo, para designar

as agulhas do pinheiro em Portugal: caruma, sarna, branza, bicos, picos, etc. É certo; mas

por isso mesmo que se repartem por terras diferentes, cada sítio ou região adopta um só

vocábulo em prejuízo dos outros, geralmente desconhecidos.

A mesma coisa designa-se geralmente por uma só palavra, em certa região e em certo meio.

Pode, ao princípio, dar-se o caso de duas ou mais palavras designarem o mesmo objecto. E

um momento fugaz; logo o espírito reage para destruir o perigoso equilíbrio, introduzindo

(21)

As formas divergentes. -A este respeito, é omito elucidativo o tratamento dado pela língua

às formas chamadas

(22)

24

M. RODRIGUES LAPA

divergentes. Chamam-se formas divergentes as palavras oriundas de um mesmo termo

(latim, árabe, grego, etc.), que se diferençaram depois, por motivo da evolução fonética.

Estão neste caso, entre outras: aveia - avena; areia - arena; bola - bula; cadeira - cátedra;

caldo - cálido; cheio-pleno; chorão - florão; catar - captar; crosta - crusta; delgado

- delicado; ensosso - insulso; inteiro - íntegro; lagoa

- lacuma; meigo - mágico; ração - razão; solteiro - solitário; traição - tradição, etc.

Admitindo que estas palavras tivessem sido algum tempo sinónimas - não o seriam, porque

uma reinava nos meios cultos, outra nos meios populares - logo se diferençaram de diversa

maneira, como se está vendo. Em algums casos, o termo literário adoptou um sentido

especializado, ex.: arena, cátedra, crusta, íntegro. Noutros casos foi o termo popular que se

desviou do sentido originário, ex.: bola, chorão, catar, meigo, ração, solteiro.

Pelo que diz respeito à intensidade das diferenças entre os dois sentidos, observamos que a

divergência vai do mínimo ao máximo. Em cheio-pleno, a diferença é insignificante,

podendo até dizer-se que as duas palavras acusam o mesmo sentido. Simplesmente, uma é

usada na linguagem corrente (cheio), outra na linguagem literária - e não sempre (pleno).

Esta última tem um ar falso, pretensioso, que, por isso mesmo, é do agrado dos

principiantes. Enfim, são termos usados em circumstâncias diferentes e basta esse facto

para os tomar desiguais.

Através de variantes intermediárias, as formas divergentes alcançaram o máximo de desvio

semântico (isto é, de sentido) em traição - tradição. É quase incrível que uma mesma

palavra pudesse ter gerado acepções tão diversas; mas o caso deu-se, como vamos ver.

Tradição foi um velho termo de carácter jurídico, cujo significado era: «entrega,

transmissão de qualquer coisa a outrem.» Na passagem do latim para o português, o

vocábulo perdeu aquele d entre

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

vogais e começou de significar outra coisa: «a entrega, a transmissão dum segredo íntimo,

militar, político, ou duma fortaleza, vila, etc.». Vê-se pois como da simples ideia

fumdamental de «entrega», «transmissão», se engendrou o significado moral de «traição»,

«infidelidade», «deslealdade». Traição poderia definir-se como «entrega desleal».

Tradição também seguiu o seu rumo, também tomou um sentido moral. Passou a significar

«a transmissão de factos históricos, sistemas, lendas, etc., de idade em idade, sem prova

autêntica ou escrita, provindo da transmissão oral ou de hábitos inveterados». Copiamos a

definição dada por Cândido de Figueiredo no Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.

Como vemos, e não obstante uma complicada evolução semântica, lá está bem visível ainda

a ideia originária de «transmissão».

(23)

investigadores da linguagem e do estilo: «Dois fenómenos de expressão numca são

exactamente iguais». O leitor está vendo as consequências deste princípio. Não se pode ir

ao dicionário escolher mais ou menos à toa os significados, como fazem geralmente os

principiantes. O facto dá origem a verdadeiros contra-sensos. Cada palavra, em dado

momento, é portadora de um sentido, que adquire especial relevo no contexto. Não pode

pois baralhar-se com as outras. A arte do estilo consiste em escolher, nesses grandes

armazéns de palavras que são os dicionários, os termos justos, que hão de dar forma e cor

aos nossos pensamentos.

3. Como nascem os sinónimos. - É bom de ver que

nem todos os conceitos se prestam de igual modo à produção de sinónimos. De um modo

geral, as palavras concretas prestam-se menos às variações sinonímicas. Se procurarmos no

dicionário os equivalentes de tinteiro, água, chave, calças, porta, veremos que estes termos

não têm propriamente sinónimos. Os dicionaristas contentam-se com a sua definição

(24)

26

M. RODRIGUES’LAPA

por meio de perífrases e acrescentam algumas locuções em que a palavra tem cabimento, com um sentido mais ou menos diferente. Por exemplo, para tinteiro, o Pequeno Dicionário apresenta apenas isto: «Pequeno vaso para conter tinta de escrever. Utensílio de escritório com um ou mais vasos para tinta de escrever.» Realmente o vocábulo não se presta a mais; identifica-se por si próprio, conhece-se pela própria representação que sugere, sempre a mesma: um recipiente para tinta.

Outras palavras há, concretas embora, que implicam variadas formas, que vão do termo técnico, científico, até às expressões mais baixas da gíria popular: apêndice nasal

- nariz - penca - ventas; - abdómen - ventre - barriga -pança, etc. Vemos pois que há noções pobres e noções ricas, na linguagem; umas contentam-se com uma só palavra, outras, sugerindo novas representações em tomo do objecto ou da ideia primitiva, geram uma família numerosa de sinónimos.

Compreende-se que um dos principais geradores de sinónimos seja a variedade do emprego da mesma coisa, segundo os diferentes meios sociais. Para prova disso, dá-se geralmente este exemplo: o dinheiro recebido em troca da prestação de serviços tem variadíssimas designações, conforme a escala social da pessoa que o recebe: honorários, ordenado, mensalidade, soldo, pré, salário, féria, etc. Seria extremamente reparável e incorrecto dizer-se:

1. O major recebeu o pré.

2. O salário do ministro é grande.

É que as palavras evocam os meios sociais em que são geralmente empregadas, e não se pode confundir o seu uso, sem nos expormos a graves mal-entendidos. O termo pré lembra logo o ambiente militar dos soldados e sargentos, salário sugere uma classe especial: a dos pequenos serviçais.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

27

Isto é, as palavras e os sinónimos, são um espelho da sociedade: também se dividem em classes. No campo diz-se: comer uma tigela de CALDO ; na cidade: comer um prato de SOPA. Vem. a dar na mesma; mas o caldo sugere o campónio, a sopa é própria do homem da cidade.

4. O eufemismo. - Este mesmo sentimento das conveniências sociais leva-nos muitas vezes a

atenuar a dureza e a franqueza de certas expressões, que evocam imagens grosseiras ou

desagradáveis. Certos termos que exprimem a morte, o furto, a embriaguez, a idiotia, a mentira, etc., requerem eufemismos, isto é, meios expressivos que adoçam a brutalidade ou a inconveniência social desses termos. Para o homem, nada mais terrível do que a morte. Pois bem, na vida social, o vocábulo que define a ideia pura - morrer, é suavizado pelos seguintes eufemismos: falecer, expirar,

decidir, acabar, perecer, ir para o céu, finar-se, fechar os olhos, entregar a alma a Deus, passar-se,

etc. Tudo expressões que procuram atenuar a fealdade do horrível transe. E quando se anuncia no jornal a morte de alguém, pessoa católica e de bom-tom, a sua família não escreve, seca e

(25)

O emprego do eufemismo também caracteriza certas camadas sociais. A um homem da plebe que comete um fui to, as gazetas não hesitam em exprobrar ao ladrão, ao gatumo, o roubo que praticou; mas se um homem da alta sociedade cometeu o mesmo crime, então os redactores adoçam

servilmente a frase e escrevem: desvio de fumdos, fraude, alcance, etc. O povo observou perfeitamente esta injustiça e fez sobre ela um provérbio admirável: «Quem rouba um pão, é

ladrão; quem rouba um milhão, é barão».

Um homem do povo não se embriaga; isso é próprio da gente fina; o plebeu embebeda-se, e, empregando termos de gíria popular, toma a carraspana, o pifão, o pileque, fica

(26)

28

M. RODRIGUES LAPA

grosso, colhe a trompa (gíria galega), etc. Se num salão aristocrático se ouvissem estes

nomes, as senhoras corariam de indignação; se numa viela de Alfama, em Lisboa, alguém

pronunciasse o vocábulo embriagar, era apupado e escarnecido- caso verdadeiramente o

entendessem.

O conselheiro Acácio, a famosa caricatura de Eça de Queiroz, conhecia bem o valor do

eufemismo e empregava-o constantemente. Diz dele o escritor: «Numca usava palavras

triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir». Até os ladrões

entre si usam o eufemismo, como aquele ratoneiro duma novela de Castelao, que suavizou

o termo roubar em apanhar: «Certa noite de caminho propuxo Barrote que fossen apanhar

uas galinhas».

- Os dous de sempre, l.a ed., pág. 60.

Pode portanto dizer-se que há na linguagem uma dissimulação, uma espécie de hipocrisia -

o reflexo de todas as atenuações, transigências e desigualdades que a vida social, como está

constituída, nos impõe.

5. As séries sinonímicas. - Vejamos agora praticamente o problema da significação dos

sinónimos, os seus matizes diferenciais. Para estudar os sinónimos temos os dicionários

vulgares, que trazem, após a definição, os vocábulos ou expressões equivalentes; mas como

as palavras adquirem no contexto as significações mais diversas, segue-se que a consulta

dos dicionários correntes não serve para o estudo dos sinónimos. O facto de esses

dicionários não trazerem o vocábulo inserido na frase ainda agrava a questão, tomando a

consulta perigosa para o principiante.

Um exemplo: Procuremos no Pequeno Dicionário, de Cândido de Figueiredo, a rubrica

deixar. Vemos que a palavra tem as seguintes significações: separar-se de; lançar de si;

largar, pôr de lado; abandonar; permitir; cessar; resistir; adiar; ceder; omitir. Note-se, de

passagem, que resistir é erro tipográfico, em vez de desistir. Assim vem na l.a

edi-ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 29

cão do Novo Dicionário do mesmo autor. Os modernos revisores dos dois dicionários não

deram pelo erro, que assim se foi radicando e passando a outros, estando contudo já

corrigido na 10.a edição.

Reparando para o sentido daqueles diferentes termos, verifica-se que existem várias séries

de significações, digamos, várias séries sinonímicas, isto é, grupos de palavras

subordinadas a um sentido comum:

(27)

3. Deixar, cessar, desistir; 6. Deixar, omitir.

Isto é, verdadeiramente a palavra deixar, tal como a encontramos nos pequenos dicionários,

admite em si seis séries sinonímicas pelo menos. Se procurarmos num dicionário grande,

admitirá muitas mais. Note-se que se há séries nitidamente diferenciadas como a l.a e a 6.a,

a 6.a e a 2.a, a 3.a e a 2.a, já não sucede o mesmo com a l.a e a 5.a Entre ceder e largar

pode haver uma relação de significado, e entre desistir (3.a), adiar (4.a) e largar (l.a)

também não será muito difícil achar uma ideia comum, se nos aplicarmos a isso.

Por consequência, os dicionários correntes não são um instrumento cómodo para a pesquisa

dos sinónimos, porque baralham as séries e não enquadram o termo no seu contexto, onde

alcança a verdadeira significação. Para remediar esse mal fizeram-se os dicionários de

sinónimos. Aí aparece efectivamente a série, e dentro da série o sinonimista

engenha-se em descobrir as diferenças de sentido.

O dicionário de sinónimos mais celebrizado que temos é o velho Dicionário dos sinónimos,

poético e de epítetos da língua portuguesa de Roquete e Fonseca. Tem tido muitas edições

em Portugal e Brasil. É um instrumento antiquado, incompleto, que padece dos defeitos de

toda essa

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30

M. RODRIGUES LAPA

espécie de tratados: a preocupação da etimologia e do uso clássico da língua, sem ter em

conta o seu uso corrente, popular. É uma construção artificial, de reduzido valor, e que não

é útil meter nas mãos de principiantes. Mal por mal, antes os dicionários comums. Muito

melhor do que ele temos agora o Dicionário de Sinónimos de Antenor Nascentes, que pode

prestar bons serviços ao estudioso, quando manuseado com discernimento e sem espírito de

rigor sistemático.

6. Valor sentimental e intelectual das palavras. - Em

presença das coisas, o nosso espírito reage da seguinte maneira: ou as percebe ou as sente.

Quase sempre estas duas operações, a percepção e o sentimento andam ligadas, mas, por

via de regra, em proporções diferentes. Praticamente há objectos que despertam mais a

nossa inteligência, outros que chocam mais a nossa sensibilidade. Assim também as

palavras: umas têm uma dominante afectiva, outras uma dominante intelectual. Vejamos

um exemplo:

1. O lavrador deixou a casa e encaminhou-se para o trabalho.

2. Os filhos, cheios de fome, abandonaram a casa paterna.

Ligados por um conceito comum, «a separação», aqueles dois verbos deixar e abandonar

não têm o mesmo valor. No primeiro caso, a separação fez-se normalmente, sem

sobressalto afectivo; tarefa de todos os dias, feita a frio, mal iria ao lavrador se, de cada vez

que deixava a casa, se pusesse a chorar de saudade ou de mágoa. No segumdo caso, o verbo

abandonar está já penetrado de sentimento, tem uma sobrecarga afectiva que não tinha o

outro: os filhos deixaram a casa paterna com desespero, com dor e raiva. Há

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

31

pessoas - os puristas da língua - que se erguem ainda hoje contra o emprego do verbo

abandonar, por ser um galicismo. É certo que o vocábulo nos veio do francês, mas há

séculos que é usado na língua, e corresponde, como acabámos de ver, a uma necessidade de

expressão. Deixar não significa o mesmo que abandonar. É isto que os puristas não vêem.

Logo, numa série de sinónimos há palavras que exprimem sobretudo uma ideia, outras que

exprimem sobretudo um sentimento. É tarefa delicada, por vezes, a discriminação destes

dois elementos; não raro, é até impossível fazer essa distinção; mas esse esforço é

indispensável a quem queira escrever bem. Vamos dar normas e exemplos, que auxiliarão o

interessado nesse trabalho.

7. O termo identificador. - Vejamos estas frases:

(29)

c) Simples e linda, a noiva saía da igreja.

a Laura trazia um bonito vestido de seda azul.

Temos aqui uma série sinonímica, que poderíamos aumentar consideravelmente. Belo,

formosa, linda, bonito são palavras realmente umidas por um idêntico sentido. Aquela que

reumir o conceito comum a todas as outras, que puder substituir-se a todas elas sem grande

prejuízo de significação, é chamada em Estilística o termo identificador. A esse termo

fumdamental, que traduz a ideia pura, condensada, se referem todos os outros. É pois da

maior conveniência saber fixar sempre numa série o termo identificador, trabalho aliás não

muito difícil, porque o termo identificador é, por via de regra, o termo geral, o mais

(30)

32

M. RODRIGUES LAPA

Não é, efectivamente, muito custoso determinar nesta série uma noção fumdamental: - o

conceito de beleza, que abrange todos os outros: formosura, lindeza e boniteza. Se

quiséssemos, poderíamos substituir os adjectivos das alíneas b), c), d) pelo termo

identificador: o sentido não sofria prejuízo de maior, embora ficasse mais desbotado, menos

expressivo:

b) Eram duas raparigas, qual delas a mais bela.

c) Simples e bela, a noiva saía da igreja.

d) Trazia um belo vestido de seda azul.

Se quisermos fazer o mesmo com os outros exemplos, vemos que o sentido já não fica tão

bem; e teríamos até um efeito cómico, se disséssemos: «O lutador ergueu-se, bonito como

uma estátua». Por consequência, é defeito empregar umiformemente, em todos os casos, o

termo mais geral; e maior defeito é ainda baralhar o emprego das palavras dentro da série

sinonímica. Os principiantes são naturalmente inclinados a isso.

Procuremos agora definir o diferente significado dos elementos da série. Nem precisamos

de recorrer aos dicionários para não lançarmos confusão no nosso espírito. No primeiro

exemplo, belo sugere-nos a ideia de perfeição e de harmonia de formas, e também uma

certa confiança serena na própria força. No segundo exemplo, formosa evoca apenas a

perfeição da forma física. No terceiro exemplo, linda já se carrega dum forte matiz

sentimental; não é só beleza física, é também mimo, ternura, delicadeza da alma. Enfim,

bonito representa a ideia de beleza, diminuída, descida ao plano das coisas familiares. É

também um termo afectivo, mas mais de andar-por-casa. Quanto ao uso dos vocábulos,

notamos que belo é vagamente literário, embora represente

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 33

a ideia geral; formosa é vocábulo que só se emprega em literatura; lindo pertence à língua

corrente, e bonito propriamente à linguagem familiar, onde adquire, a par da ideia de

beleza, um certo matiz de bondade. Exemplo: «Os meninos bonitos não fazem coisas

dessas».

8. Diferenças quantitativas e qualitativas. - Consideremos esta frase: «O companheiro

tomou-se enfadonho, aborrecido, odioso». Aquela série de adjectivos está colocada

segundo uma ordem lógica, a própria lógica dos sentimentos: a aversão foi-se

desenvolvendo numa ordem crescente: primeiro, uma vaga antipatia, depois, um

pronumciado desafecto, por fim um ódio declarado. Claro que não poderíamos inverter a

ordem dos adjectivos, que têm valores quantitativos diferentes.

(31)

«Não havia em todo aquele grande povo senão medo, desordem, terror e confusão».

Há nela duas séries sinonímicas, artisticamente entrelaçadas: a) medo - terror; b) desordem

-confusão. Se observarmos o efeito produzido pelos termos de uma e doutra, notaremos que

a impressão vai crescendo de intensidade. Na verdade, terror é um vocábulo mais intensivo

que medo, Confusão mais intensivo que desordem. Logo, quem sabe escrever não mistura

arbitrariamente os sinónimos. Suponhamos que inverteríamos naquela frase a ordem dos

termos sinonímicos:

«Não havia em todo aquele grande povo senão terror, confusão, medo e desordem».

Incorreríamos na censura de não saber escrever, pondo o termo intensivo antes do outro. O

efeito estilístico perder-se-ia totalmente.

Há casos ainda mais complicados, em que a disposição das palavras obedece a certas

exigências expressivas do discurso

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34

M. RODRIGUES LAPA

seguinte. Veja-se este passo de D. Francisco Manuel de Melo:

«Estar um cidadão em sua casa dormindo, regalado, seguro e quieto, em noite tempestuosa

de dezembro, e, a troco de uma pequena migalha de prata e ouro, estar o miserável

pescador lutando com a morte duas marés inteiras, para lhe trazer de madrugada o guloso

besugo ou o pintado salmonete!»

A ordem decrescente dos adjectivos justifica-se aqui pela antítese que se segue: l.a - noite

tempestuosa, miséria, desconforto; 2.a - luta contra a morte; 3.a-a azáfama, a canseira de

pescar duas marés inteiras e de lhe trazer o peixe a casa. Vemos pois que a ordem dos

vocábulos foi determinada apropriadamente pela ordem dos elementos seguintes que lhe

são opostos.

Enfim, repare-se nesta frase de Ferreira de Castro: «A vida só existia através do seu

desespero, do silêncio e dos remorsos; dos remorsos, do silêncio e do desespero». A

repetição dos mesmos elementos na ordem inversa procura dar, e dá realmente, um efeito

expressivo; um círculo vicioso, uma repetição constante de coisas, em que a alma se sentia

abafar. A linguagem popular conhece o processo, como se vê daquele dito chistoso: «ao

almoço me dão pêras, ao jantar pêras me dão, à merenda pão com pêras, à ceia pêras com

pão». O escritor não fez mais do que transpor para termos de arte um modo expressivo

empregado pelo povo.

Nem sempre, contudo, numa série de palavras de igual categoria, se trata de uma ordem

ascendente ou descendente. Exemplo disso, o seguinte verso das Cartas Chilenas (ix, 352),

a famosa sátira luso-brasileira do século xvm, da autoria de Tomás António Gonzaga:

Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.

Alude-se a soldados que não obedeciam às ordens dos juizes, desrespeitando e agredindo os

oficiais de justiça que

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

35

os iam prender. O primeiro editor, Luís Francisco da Veiga, entendeu alterar assim a ordem

dos termos: «resistem, gritam, ferem, prendem, matam». Estaria assim regularizada,

efectivamente, a ordem ascendente da série; mas o autor o que quis dizer foi isto, «matam

ou prendem», não se tratando pois, em toda a extensão, de uma ordem ascendente.

É de notar que as diferenças quantitativas podem ter um carácter meramente intelectual,

como uso - abuso, mar

(33)

o termo intensivo, tem uma dose maior de sentimento. No geral, o que predomina nas séries

é a intensidade afectiva; e é isso que verdadeiramente importa para a Estilística.

Isto, pelo que diz respeito aos caracteres quantitativos da expressão. Há porém uma noção

qualitativa que não tem menor importância. É sabido que, quando nos referimos às coisas,

actos, ideias, lhes damos um valor que eles em si podem não ter, mas que referimos quase

sempre a nós próprios. Por exemplo, vão três amigos ao teatro ver uma

- É escapatória. Acode o terceiro: - Acho uma coisa insípida. peça. Ao sair, exclama

um:-É admirável! Diz o outro: O primeiro referiu-se à peça de um modo «melhorativo», o

terceiro de um modo «pejorativo». O segumdo colocou-se em um meio-termo,

sofrivelmente neutral.

É assim o nosso poder de apreciação: tendemos para achar boas ou más as coisas, segumdo

nos causam prazer ou desgosto. E este facto necessariamente se há-de reflectir na

linguagem. Suponhamos que Fulano vê o seu figadal inimigo, vestido a primor e montado

num soberbo cavalo. Diz logo em tom de mofa para o vizinho: - Ali vai aquele pedante,

escarranchado na sua pileca! Deu um sentido pejorativo às suas representações (pedante

em vez de bem vestido, escarranchado por montado, pileca em lugar de cavalo), levado

pelo seu sentimento pessoal.

(34)

36

M. RODRIGUES LAPA

A língua está cheia destas expressões, que encerram numa série sinonímica valores

melhorativos ou pejorativos: leito - catre; lábio - beiço; religioso - beato; fino - manhoso;

económico - avarento, etc. É claro que as séries podem conter mais palavras, e várias delas

podem ter um sentido mais ou menos pejorativo. Exemplo: palácio - solar •-vivendacasa

-pardieiro - casebre-choupana-tugúrio-barraca.

A propósito justamente de casa escreveu Eça uma página cheia de graça, por ocasião da

visita que o Imperador do Brasil fez a Herculano em 1872. Os jornais noticiaram o caso e,

para acentuarem a honra prestada pelo soberano ao austero historiador, diminuíram a

habitação deste a proporções ínfimas, empregando pejorativos literários, que têm aqui um

efeito desnaturai e cómico:

«Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila. No que porém as opiniões radicalmente divergem é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português.

O Diário de Notícias diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano. O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que... O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao tugúrio de Herculano (ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na íebaida do ilustre historiador que...). Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc. Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao

abrigo desse que... Algums jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade foi ao albergue

daquele que... Outros contudo sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que... E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que...

Ora, no meio disto, uma cousa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente à

casa do Sr. Herculano!»- (Uma campanha alegre, n, 87-88).

9. Os efeitos evocativos. - Pelos exemplos apresentados até aqui, já temos visto que as

palavras sinónimas podem

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 37

evocar certas formas de vida e actividade, certos meios sociais.

Por exemplo, alguém diz para um doente: - Então, vai melhor dos seus achaques? Aquela

palavra não é a usual, em casos semelhantes. Costumamos dizer padecimentos, doenças,

sofrimentos. A expressão, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que

ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontrámos em livros antigos. Trata-se pois de

um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprego choca-nos, evocando logo em

nós um ambiente conservador e certa afectação literária. É a isto que se chama o «efeito por

evocação» das palavras.

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b) Às dez horas, o mariola esticava o pernil.

c) O estadista expirou com o pensamento no seu país.

d) Faleceu ontem o Sr. José dos Santos Abreu.

No primeiro exemplo, morreu é o termo usual e também o termo identificador, aquele que

traduz a ideia geral, menos expressiva, por assim dizer. No segundo exemplo, pasmamos do

atrevimento da expressão; sentimos imediatamente que esticar o pernil é um termo de gíria

popular, que evoca esferas inferiores da população. No terceiro exemplo, expirar

aparece-nos como um vocábulo literário, só usado aparece-nos livros. Enfim, no último exemplo, faleceu

dá-nos a impressão de um meio burocrático, jornalístico. A palavra, que tem carácter

eufemístico, é empregada em estilo correcto, cerimonioso e levemente afectado.

Uma das coisas que melhor denumciam o aprendiz de estilo é o desconhecimento desta lei

importante, que consiste em empregar as palavras que condigam com o ambiente

(36)

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M. RODRIGUES LAPA

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

39

psicológico ou social. Suponhamos esta frase: «Eurico, nas solidões do Calpe, não esquecia a mulher de quem gostara um dia». Aquele gostar introduz no discurso uma nota quase cómica, porque, sendo um termo familiar, de andar-por-casa, não se pode aplicar à paixão devoradora dum romântico tal como Eurico.

Se as palavras evocam o meio social, claro está que não poderemos pôr na boca dum campónio que conta um acidente, uma expressão como esta: «Quando o pedregulho caiu, fiquei um momento

perturbado-». O que ele certamente diria era azoinado, aparvalhado, etc., palavras que

correspondem aos seus hábitos linguísticos.

Note-se ainda que há também tendência de quem fala para se aproximar do entendimento daquele que ouve. Um cavador foi agradecer a um doutor um acto de generosidade. O doutor não lhe diz, se souber falar: - Penhorou-me a sua amabilidade; repito, porém, nada tem que me agradecer. Isso diria a um seu igual, em estilo epistolar, literário. Ao pobre homem, para que ele compreendesse bem, diria mais ou menos isto: - Ó homem, muito obrigado pela sua atenção, mas nada tem que me agradecer, valha-o Deus!

10. Os dicionários analógicos. - Acabámos de ver palavras que apresentam vários aspectos duma mesma noção; mas é natural que cada um dos elementos duma série sinonímica sugira por seu turno outras palavras, com que tem ou pode ter certas afinidades. Entra em jogo a chamada associação de ideias, que desempenha um papel importante no mecanismo do nosso espírito e portanto na técnica da expressão.

Os vocábulos belo, amor, frio, morrer, são conceitos abstractos, que se identificam e esclarecem no nosso espírito por meio da noção contrária :feio, ódio, calor, viver. Estas palavras, que designam o contrário ou a face oposta das coisas ou ideias, chamam-se antónimas. Estão implícitas nos termos abstractos, como que fazem parte da sua definição. O povo diz com graça e com uma certa verdade: - Que vem a ser bonito? - É aquilo que não é feio. Fugindo da complicação das definições, sempre delicadas, define um termo pelo seu contrário. E procede com certa razão: a maneira mais prática de definirmos o belo e o feio é pô-los a par um do outro.

De modo que o princípio da analogia leva a considerar numa palavra em primeiro lugar o seu contrário; depois, todos os termos que se lhe ligam por associação de ideias. Para não sairmos da noção de belo, fixemos desde já o antónimo feio e vejamos os vocábulos e locuções mais correntes que se ligam aos dois termos:

BELO

Expressões substantivas: beleza, formosura, graça, encanto, atractivo, lindeza, boniteza, amabilidade,

elegância, boa aparência, boa parecença, perfeição, majestade, Adónis, Narciso, narcisismo, Vénus, Helena, garridice, louçania, querubim, gentileza, donaire, etc.

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mesmo um amor, - um primor etc_

Expressões adjectivas: belo lindo, bonito, gentil, garrido, esPecioso, loução, vistoso, bem

pro-FEIO

Expressões substantivas: fealdade, monstruosidade, enormidade, deformidade, desproporção, má aparência,

má catadura, suj idade, imumdície, Polifemo, Vulcano, Sileno, Quasímodo, diabo, bruxa chimpanzé, bode, sapo, osga, mostrengo, bicho, urso, macaco, estafermo, aleijão, etc.

Expressões vetbais: ser feio, ter má aparência,-má catadura, fazer caretas, ter a pele engelhada, ser um aleijão,

ser estropiado; deformar, aleijar, estropiar, sujar, lambuzar, borrar, besumtar, deturpar, sarapintar, enfarruscar, ser feio como um bode,-como o diabo, etc.

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M. RODRIGUES LAPA

amores, etc. rado, etc.

Se fizermos isto para todas as representações fumdamentais que possam arrastar outras

ideias e por consequência outras formas de expressão, teremos feito um «dicionário

analógico», ou «ideológico». São de grande benefício para o escritor, que por vezes procura

a expressão mais adequada. Tê-la-á à sua disposição nesses repertórios, quando bem

elaborados.

Só em 1936, apareceu um dicionário desses para a nossa

língua, com certo desenvolvimento. É o Dicionário analógico Aã língua portuguesa, do

P.e Carlos Spítzer (Porto Alegre, Livraria do Globo). Adopta uma sistematização muito

discutível e embaraçosa para o estudioso e inclui, sem discriminação, os idiotismos

portugueses e brasileiros, o que pode levar a algumas confusões. Mais claro, embora

menos completo, é o Vocabulário analógico saído um pouco antes, da autoria do lexicólogo

brasileiro Firmino Costa, o qual dá por vezes a abonação literária das expressões.

Ultimamente, em 1950, foi publicado também no Brasil, o Dicionário analógico, de

Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Padece dos mesmos defeitos, mas é talvez mais

prudente e criterioso na escolha de termos de idêntico significado.

As duas colunas sobre belo e feio foram em grande parte aproveitadas de Spitzer; mas não

incluímos algums termos nele contidos, por abusarem um pouco do conceito da analogia:

careca, calvo, bexigoso, vermelhaço, cabelo de fogo, desaire, etc. É evidente que, a

propósito de feio, se podem

ESTILÍSTICA DA UMGUA PORTUGUESA

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menos naturais,

íomfa nos bons diários

anato-gicos.

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O VOCABULÁRIO PORTUGUÊS in

1. História e fisionomia do vocabulário português.

-A grande maioria, poderemos dizer a quase totalidade das palavras usuais portuguesas, provém do latim; não daquele latim polido, empregado pelos escritores da Roma imperial, mas da língua plebeia das tabernas e alfurjas, falada por soldados, por colonos e pequenos mercadores. Foram estes elementos da população romana que introduziram a sua língua na Península Hispânica, nos momentos da invasão e da conquista. Era a língua dos vencedores: ficou sendo pouco a pouco a língua dos vencidos, porque trazia consigo o prestígio duma grande civilização. A língua

portuguesa, como afinal as outras línguas aparentadas, tem portanto, como se vê, uma origem bem humilde, caracteristicamente popular. Não nasceu em berço doirado.

Esse latim popular, que, mais tarde, por transformações de vária ordem, deu o português, era, como toda a linguagem plebeia, um instrumento de comunicação social, tosco, abreviado e sobretudo concreto. Usava um vocabulário em muitos pontos distinto do latim literário. Por exemplo, para designar «boca», dizia bucca e não ore; para «cavalo» dizia cábállu e não équu; para «casa» dizia

casa e não dómu; para «grande» dizia grande e não mágnu.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 43

Estamos vendo a importância deste facto: a escolha feita pelo latim vulgar ainda hoje vale para a língua comum. Efectivamente, em linguagem despretensiosa dizemos boca, cavalo, casa, grande; mas para os seus derivados já usamos ou podemos usar os termos literários: oral, equestre,

doméstico, magnitude.

Durante algum tempo foi essa língua a usual na Península; mas o conquistador, por meio de escolas, foi derramando logo na terra conquistada o conhecimento da cultura latina, dos seus grandes

escritores: de modo que, em breve, se deu um facto corrente em todos os idiomas: o lusitano começou a empregar duas línguas-uma, quando falava, outra, quando escrevia. Sempre que um povo se adianta na cultura, essa distinção é inevitável.

Veio depois a grande arremetida dos bárbaros germânicos. A Península é outra vez invadida e assolada. Mas os germanos possuíam uma civilização inferior; dominando pelas armas, deixaram intacta a velha cultura, imprimindo-lhe leves modificações, sobretudo no campo do direito. A língua continua a mesma; porém o vocabulário foi acrescido de um certo número de palavras, que

denumciavam as preocupações guerreiras dos conquistadores. Termos de guerra, sobretudo, ou coisas aparentadas com a guerra, foi quanto a língua adquiriu com a invasão dos germanos:

agasalhar, albergar, arreio, baluarte, banir, barriga, bradar, brandir, dardo, elmo, escaramuça, esgrimir, franco, galope, garbo, gastar, guerra, grinalda, luva, marchar, orgulho, raça, roubar, sala, tirar, trepar, etc.

Como vemos, a maioria destes vocábulos tem uma fisionomia acentuadamente militar. A

Referências

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