• Nenhum resultado encontrado

O pronome indefinido A própria denominação diz o suficiente sobre o tom de imprecisão e misteriosa vaguidão que caracterizam este pronome Os grandes escritores têm ainda o poder de

Aqui, a oração de pronome relativo (que interessem) vale por um adjectivo: interessantes É por isso que em gramática essas orações são designadas pelo nome de «adjectivas», e é por

M RODRIGUES LAPA

10. O pronome indefinido A própria denominação diz o suficiente sobre o tom de imprecisão e misteriosa vaguidão que caracterizam este pronome Os grandes escritores têm ainda o poder de

fugir aos consagrados esquemas gramaticais e, pelo uso de locuções, acentuarem o indefinido das coisas e das circumstâncias. É, por isso mesmo, uma expressão altamente adequada à poesia. Veja- se este pequeno trecho de Machado de Assis:

«Lua cheia, água quieta, vozes confusas e esparsas, algum tílburi a passo ou a trote, segumdo ia vazio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca». (Esaú e Jacó, ed. de 1955, pág. 142).

Que quer dizer aqui tal ou qual? O caso é delicado e presta-se a dúvida: justamente a

indeterminação, a indefinição que pretende sugerir o autor. Sentimos porém que há nessa locução pronominal duas notações, pelo menos: uma de tempo («De vez em quando soprava uma brisa fresca») outra de qualidade e intensidade («A brisa era suavemente fresca»). De um modo condensado, hoje talvez um pouco rígido, o escritor brasileiro soube expressar o fluir vago, delicioso e poético da aragem numa bela noite de luar.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 173

A dúvida estilística mais importante que suscita hoje o pronome indefinido é o seu emprego e colocação em frases negativas. Nos primeiros tempos da língua, para esses casos usava-se o indefinido negativo nenhum, antecedendo o substantivo. Exemplo: «Não há nenhuma cousa de que sinta receio». É ainda hoje a forma popular e corrente. Como havia na frase duas negações

(não e nenhuma) constituindo pleonasmo, os escritores, amigos da lógica e do que supumham ser

elegância, começaram a favorecer o emprego de algum na frase negativa. E assim a frase foi modificada: «Não há alguma cousa de que sinta receio». Já no século xiv aparecem construções deste tipo em textos literários. Por exemplo, no Orto do Esposo escreve-se: «Nom lhe fazem

algum embargo». - «A alma nom acha cumprimento em algua cousa». Em breve se verificou

que o pronome precedendo o substantivo acentuava por demais a ideia afirmativa. Pôs-se depois, e conseguiu-se com esta deslocação um bom efeito expressivo: «Não há cousa alguma de que sinta receio».

Aqui temos, em termos simples, como se deu a evolução. O emprego de nenhum tem carácter popular, o de algum, carácter moderno e literário. É bom usar os dois, conforme as circumstâncias e segumdo as preferências de momento. A língua é muito rica em meios expressivos.

Saibamos empregá-los todos, a seu tempo, para dar variedade ao que escrevemos. Os puristas têm a ruim tendência para considerarem uma só forma correcta. Se nos convencermos do contrário, é meio caminho andado para chegarmos a escrever bem. E tiremos de tudo isto esta conclusão segura: a Estilística, preconizando a liberdade criadora, está muitas vezes em conflito com as regras

O VERBO

1. O verbo substantivo. - É bem conhecido de todos que certos substantivos, como o jantar, o dever, o agente, o ouvinte, o guisado, o cozido, etc., são formas verbais cristalizadas. Perdeu-se a noção do acto verbal; aquelas palavras são tidas como verdadeiros substantivos, sujeitando-se pois às regras que governam esta espécie de vocábulos. Esses antigos infinitivos e particípios têm, como qualquer substantivo, o seu plural: os jantares, três ouvintes, dois cozidos.

Há porém casos em que a língua pode substantivar o infinitivo, sem que essa forma perca a sua natureza verbal. Vejamos este exemplo, que constitui um curioso provérbio popular: «Até ao lavar dos cestos é vindima». Aqui, lavar, sendo morfologicamente um substantivo, pois está precedido do artigo definido o, conserva o seu dinamismo verbal e corresponde mais ou menos a esta fórmula: «Até que se lavem}). Poderíamos substituir a forma infinitiva por um nome: - Até à lavagem; mas, se repararmos bem, a frase perde em energia e movimento: o simples substantivo não exprime tão bem o acto de «lavar».

Os nossos escritores clássicos usaram largamente do infinito nominal. Veja-se esta frase de Vieira: «O polvo, com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura.» Não podemos deixar de reconhecer a força, o pitoresco e o condensado desta expressão. O escritor moderno não escreve assim; parece assustá-lo o emprego da negativa e do adjectivo

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 175

demonstrativo antes do infinito. Se hoje quiséssemos exprimir aquela ideia, diríamos de qualquer destas maneiras:

1. O polvo, pelo facto de não ter osso nem espinha, parece a própria brandura. 2. O polvo, faltando-lhe osso e espinha, parece a própria brandura.

3. O polvo, por ter falta de osso e espinha, parece a própria brandura. 4. O polvo, com aquela falta de osso e espinha, parece a própria brandura.

Nada nos custará reconhecer que, a este respeito, a língua clássica levava vantagem à actual, e que é talvez para lamentar que perdêssemos esse modo de expressão, que o galego aliás ainda conserva, com a audácia expressiva de usar o infinito na forma pronominal:

«Dispuxo que o agardaran ali hastra o primeiro derretêrese da neve.» (R. Otero Pedrayo, O

senhorita da Reboraina, 115).

Aqui, o infinito como que se incorpou com aquele e paragógico, para fazer as vezes de substantivo. Não há dúvida que o português do Brasil e Portugal, enfreado pela Gramática, ainda não chegou a este apuro de expressão. Ainda hoje, porém, sempre que o escritor quer representar o movimento, a acção contínua, usa o infinito substantivado, como neste passo de Eça de Queiroz: «pobre e

subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturan. Se nos déssemos ao trabalho, inútil, de substituirmos os verbos pelos substantivos cognatos (isto é, da mesma família, da mesma raiz), arranjaríamos solicitação, adulação, rastejamento, mas ver-nos-íamos

M. RODRIGUES LAPA

na linguagem usual. Não iríamos improvisar desastradamente, como fazem algums desajeitados, um

vergamento ou vergação, um aturamento ou aturação, que não têm uso corrente na língua. Mas,

ainda que fossem permitidos, não substituiriam de modo nenhum o vigoroso e expressivo emprego do verbo substantivo, que tão bem sabe representar a mobilidade e continuidade da acção.

A incompreensão deste facto tem levado a despropósitos, tanto mais lamentáveis quanto é certo tratar-se de actos oficiais. Nos letreiros da polícia portuguesa de trânsito já se lê: «É proibido o

atravessamento pelas placas centrais». Como não podiam escrever travessia (aliás, empregado por

Graça Aranha, em travessia da mata), porque o nome evoca coisas do mar, inventaram aquele monstrozinho. Não lembrou ao digno fumcionário policial qualquer coisa como isto, de muito melhor gosto e estilo: «É proibido atravessar (ou passar) pelas placas centrais».

Esta formação de substantivos em -mento vem de longe. Já nos livros do infante D. Pedro e de Fernão Lopes, no século xv, encontramos encaminhamento, regamento, satisfazimento, tapamento,

perdimento, apanhamento, desterramento, falamento, avisamento, etc. Nenhuma dessas derivações

perdurou, por demasiado longas e contrárias ao génio da língua, que prefere, como se vc, as formas curtas: rega, apanha, desterro, etc. Contudo, Monteiro Lobato teve a coragem de propor formações como atrapalhamento, maravilhamento, empolgamento (Negrinha, 264-266).

Temos pois que, além do seu valor estilístico, a substantivação do infinitivo é uma necessidade imposta à língua pela sua falta de nomes derivados.

Vejamos ainda esta frase dum autor contemporâneo: «Não atires à face desse pobre cantor das ruas o fechar desapiedado da tua janela.» Hoje vai-se dizendo fecho entre nós; mas essa forma tem um inconveniente: exprime não só o alto de fechar mas ainda o próprio instrumento, a fechadura.

ESTILÍSTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA 177

Por isso, no Brasil se adoptou sem dificuldade o termo fechamento, como se vê em Raul Pompéia: «portas votadas a. fechamento para sempre» (O Ateneu, pág, 72). Poderemos recorrer, é certo, a um termo sinónimo - o encerramento; mas, como já dissemos num capítulo anterior, uma forma diferente importa sempre significado mais ou menos diferente, e a palavra derivada não pode cabalmente traduzir a acção expressa pelo infinito do verbo. Esta forma, não há dúvida nenhuma, é um poderoso recurso de estilo.

Os românticos, e muito em especial Herculano, tiveram por ela verdadeira predilecção. Na verdade, se o infinito traduz a mobilidade, nada melhor do que essa forma para exprimir a agitação, a inquietude da alma romântica. Eis algums exemplos, colhidos no autor do Enrico: «Parecia envolto em fumdo pensar». - «Quem me responde por ele é o seu dormir profumdo». - «Então resta o

fugir». - «Naquele rosto apenas se conhecia o viver no profumdar das duas r ugas frontais». - «Ele

bem sabia que se seguia o morrer».

Fernando Pessoa, o grande poeta modernista, também usou largamente dessa forma, em

condensações atrevidas, que são o desespero do gramático: «Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme». -«Abrem mãos brandas janelas secretas / e há ramos de violetas caindo / de haver uma noite de primavera lá fora / sobre o eu estar de olhos fechados...» «Alegra-me ouvir a chuva,

porque ela é o templo estar aceso». Não é usual a pluralização do verbo substantivo. Contudo, de quando em quando, aparece, como nestes exemplos : «era um homem de teres»; «ter os seus dares e

tomares com alguém». Aqui porém já o sentido verbal aparece menos nítido; a fumção verbal

cristalizou e arrefeceu em substantivo. O mesmo se não dá neste passo dum jovem romancista de nossos dias: «Na eira vai uma tempestade de fricções e estalidos, rodopiares e bateres, gritos e cansaços». Aqui já o infinito readquiriu a sua fumção verbal; mas poderia, talvez sem desvantagem, tomar a forma do singular, pre-

M. RODRIGUES LAPA

cedido do artigo indefinido: um rodopiar e bater. É certo porém que o plural toma mais concreta, mais pitoresca a representação.

Outline

Documentos relacionados