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1. PANORAMA DAS IDEIAS DE MÁRIO PEDROSA

1.8 A ARTE ABSTRATA PANORAMA DAS IDÉIAS

Mário Pedrosa concebe a arte abstrata como um projeto pensado e concebido a partir da evolução da arte moderna. Tal estética não é fruto de um impulso criador descompensado, mas é antes uma arte racionalmente sistematizada que acompanhou os pressupostos da ciência moderna, e que consolidou e cristalizou uma nova forma de ver e sentir o mundo e seus conteúdos.

Ao referir-se à análise de Wölfflin sobre a arte abstrata, aponta que este apresenta a visão de uma arte resultante da pura imaginação plástica que segue o espírito de uma cultura de época. Não somente este, mas vários estetas e historiadores da arte não conseguiram ultrapassar as barreiras da pura visualidade e adentrar na proposta abstrata enquanto um novo conceito de espaço bidimensional para a dinâmica das cores puras. Como um produto

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Tais interesses e retomada dos estudos gestálticos podem ser observados em um caderno de anotações pertencente à Pedrosa que corresponde ao período em que esteve nos EUA. Estas anotações remetem-se a reflexões e citações de conferências que assistiu sobre o assunto e uma série de textos fichados que tratam da questão da psicologia da forma. Segundo depoimentos proferidos pela Profª Anita Marcondes Cabral, ela assinala que neste período nos EUA houve uma série de conferências sobre o tema da Gestalt, que estava em pleno desenvolvimento e que Wertheimer foi referência de ponta neste momento. Tais depoimentos são citados pela Profª Lisbeth Rebollo Gonçalves em seu livro Aldo Bonadei- O percurso de um pintor, onde evidencia o desenvolvimento destes estudos também entre os artistas brasileiros. Bonadei e muitos outros artistas da época se aproximaram às teorias da gestalt a partir de conferências ministradas pela própria Profª Anita Marcondes na Biblioteca Municipal de São Paulo, quando a pesquisadora regressou ao Brasil. De igual modo, quando Pedrosa regressa ao Brasil, seus esforços foram concentrados na tese de 1949 “Da Natureza Afetiva da Forma na Obra

de Arte” onde articula a relação das teses gestálticas com a arte. Algumas cópias das páginas do caderno, com

histórico, a arte responde aos anseios das conjecturas de sua época. Neste sentido, o campo

artístico deve igualmente corresponder à “todas as novas descobertas do mundo visível,”27 (PEDROSA,1996, p.254) que infundiram a arte um novo rumo para suas premissas, uma vez que não se fazia mais necessária a representação do mundo como reprodução do real.

A arte fora ainda influenciada, em sua base epistemológica, pelas teses do universo da psicologia que invadiram o campo artístico e projetaram neste uma nova relação com a

realidade e entre os próprios elementos constitutivos da arte “na medida em que a cor se tornou um meio de expressão para o psíquico, para a alma.” (PEDROSA, 1996)

O desenvolvimento da área da psicologia influenciou a produção cultural do século XX em todos os seus âmbitos. O conceito de inconsciente minou a idéia do racionalismo puro e libertou a cultura dos compromissos da razão positivista e pode abrir-se aos enlevos da criação e da imaginação. No campo artístico, não fora diferente e a arte de então, dedicou-se à questões afins, em detrimento daquela vinculada à reprodução mimética. Liberta deste compromisso, a arte ganha autonomia e pode envolver-se com as propostas levantadas pela estética moderna.

A arte moderna, no entanto, nasce de uma inquietação sobre as problemáticas da luz e da cor e ao desenvolvê-las em suas múltiplas abordagens, chegou-se à dissecação total da pintura em seus elementos constituintes, a saber: ponto, linha, superfície, enquanto

composição estrutural e a cor pura, enquanto componente “espiritual” que agrega à

composição a sua própria lógica pois “as cores se regem por uma dinâmica que lhes é peculiar” (Ibid., p. 255) independente da vontade e do projeto do artista. A este cabe a potência criativa e intelectiva de articular e compor a obra, segundo as propriedades intrínsecas desta dinâmica das cores. A partir destas idéias, evidencia-se a influência da psicologia da forma sobre a fundamentação teórica da arte abstrata na concepção de Mário Pedrosa. O crítico não entende o projeto abstrato como pura imaginação plástica como o fizera Wölfflin, mas o compreende como uma construção que responde às características

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PEDROSA, Mário. Fundamentos da Arte Abstrata. In: Forma e Percepção Estética: Textos escolhidos II (org. Otília Arantes). São Paulo, EDUSP, 1996. p. 254. Neste ensaio de 1953, Pedrosa argumenta claramente sobre a sua compreensão da arte abstrata. Seus conceitos colocam em evidência o papel fundamental das teses da gestalt na constituição deste novo espaço pictórico. Assinala que os movimentos modernos cubistas a partir de Cézanne, perceberam a energia dinâmica da cor e das linhas de força da obra, mas que foram se perdendo em convulsões pictóricas por falta de um padrão que lhes impelisse ordem. A partir destas pesquisas, a psicologia se interessa pelas formas de apreensões visuais e descobre as leis inerentes aos objetos e cores na relação entre eles. Com estes parâmetros teóricos delineados, a arte abstrata pode encaminhar-se para uma produção equilibrada e cientificamente pensada. Nesse âmbito, encontram-se as produções de Kandinsky e Mondrian, entendidos por Pedrosa, como o expoente máximo das realizações abstratas de cunho construtivo.

inerentes das próprias formas e cores e que segue a “ordem cromática necessária” nas relações de força do quadro.

A própria evolução da arte moderna se deu, porque os artistas perceberam que “as cores viviam num mundo próprio”, que obedeciam outro sistema de leis do que aqueles

estipulados pelos cânones acadêmicos. As técnicas renascentistas do claro-escuro, sfumatto e composição em degradês compunham uma área de transição entre as cores, que anulavam as relações cromáticas entre elas. Na arte abstrata, no entanto, a cor assume papel fundamental na composição e suas relações reordenam toda a modelação de profundidade e de espaço.

Neste sentido, Pedrosa afirma que o espaço nesta estética passa a ser “conceitual em lugar de perceptivo”. Diante destas novas relações compositivas na dinâmica do quadro, a dissolução

do objeto é somente uma consequência, uma vez que a modulação do objeto diretamente pelas cores, reduz, em última instância, o objeto às suas linhas elementares. Foi este o exercício alcançado por Mondrian em suas composições de estudos sobre as árvores, que em suas investigações, chega à simplificação de tão somente linhas e cores.

Em todas as revoluções científicas, primeiro observa-se a prática, a realidade e depois com o intuito de organizá-la e fundamenta-la, soma-se a teoria. A revolução epistemológica do campo artístico seguiu esta mesma lógica. Primeiro os artistas apresentaram e desenvolveram suas inquietações plásticas acerca do uso das cores puras que de certa forma alteraram as relações de equilíbrio dinâmico do espaço pictórico. Em decorrência destas relações visuais, surge um ramo da psicologia que se interessará pela percepção visual e dos mecanismos de como nossa visão é afetada pelos objetos. Tal área será denominada psicologia da forma e será uma abordagem cientificista que acrescentará à arte a sistematização das relações pictóricas que faltavam à produção dos artistas. Esta ciência, também conhecida como teoria da gestalt (forma em alemão), será a fundamentação teórica que explicita de maneira racional e consciente as propriedades existentes nas relações entre os objetos. Esta área da ciência organizou o conhecimento que os artistas abstratos puderam exprimir em forma de arte segundo tais leis:

Os planos e as linhas, as zonas de cor, os perfis ou os pedaços de figura ou de objetos ordenados na tela se aproximam ou se afastam sob os fatores óticos perceptivos da distância ou da vizinhança, da simetria, do contraste ou da semelhança, da direção ou do movimento, num jogo permanente de combinações formais, independentemente de qualquer subordinação ao objeto ou ao assunto-tema do quadro. (Ibid,p.258)

A revolução do espaço pictórico alcança consciência com Kandinsky e com Mondrian. O artista russo racionaliza a interação entre as cores; o holandês racionaliza o espaço pictórico e restabelece o equilíbrio perdido pela dissolução do objeto. Ambos, fundamentados pela teoria da forma, alcançam organizar as idéias e propostas levantadas como problemática pelos impressionistas, pós-impressionistas, fauvistas e expressionistas, que diagnosticaram e problematizaram as questões das tensões do espaço pictórico, mas não souberam como resolve-las. Considerando as investigações e conquistas plásticas de Kandinsky e Mondrian, que Pedrosa os elege como figuras icônicas no processo de desenvolvimento e maturação da arte abstrata, pois ambos estavam munidos pelas mesmas teorias da forma e vislumbravam com clareza as leis que organizam as formas e cores no espaço bidimensional. Estes artistas então, foram os mais capacitados para apresentar uma resolução aos problemas levantados pelos primeiros modernistas. Não porque fossem melhores, mas porque dispunham de ferramentas científicas que racionalizara os esquemas compositivos e poderia imprimir ordem e equilíbrio às propostas convulsionadas das primeiras investigações modernas.

Não por pouco, que os artistas abstratos se interessarão pelo estudo das teses da gestalt, como uma maneira de melhor compreender as relações pictóricas e dinâmicas do quadro, a fim de melhor combiná-las em suas composições, e o próprio interesse de Pedrosa advém da necessidade de compreender estas premissas artísticas da estética abstrata, para conhecê-las e ter condições de avaliá-las e elucida-las ao público em suas formulações críticas.