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1. PANORAMA DAS IDEIAS DE MÁRIO PEDROSA

2.3 OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A escolha do título “Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte” para sua tese revela claramente algumas das propostas teóricas por ele defendidas. A escolha das palavras não é despropositada, e nos permite esboçar alguns apontamentos sobre as teorias abordadas no estudo. O título apresenta a idéia da “natureza da forma”, o qual logo de início, revela sua vinculação com a psicologia da forma, ou a chamada Escola da Gestalt. Este ramo da psicologia se ocupa do fenômeno da percepção, ou seja, dedica-se à compreensão do processo de percepção a partir do contato dos órgãos sensitivos humanos com um objeto. No caso específico desta abordagem, a problemática recai sobre o objeto ou fenômeno artístico e empreende uma investigação a fim de compreender como a estrutura fisiológica cerebral humana percebe e assimila as atribuições desta produção diferenciada, que é a arte.

Estes estudos são também chamados de Gestálticos uma vez que a tradução da palavra

“Gestalt” do alemão é geralmente traduzido como forma, muito embora, alguns teóricos

apontem que a palavra abarque um sentido mais amplo relacionado à estrutura, figura, podendo ser definida como uma integração de partes em oposição à soma de partes. A própria definição da palavra designa a tese fundamental desta escola39. Esta escola se assenta e consolida seu esquema interpretativo, a partir de críticas contra as teses estabelecidas pela psicologia clássica, também chamada de associacionista, ou atomista, que apresentava esquemas insuficientes para explicar os processos perceptivos. Segundo a psicologia tradicional, a percepção da forma era compreendida como resultado da soma de sensações

em artigo de jornal datado de 12 de janeiro de 1951, sem a indicação do nome do Periódico, intitulado “Na Faculdade de Arquitetura- O crítico Mário Pedrosa defenderá tese hoje” pertencente à coleção Arquivo Mário Pedrosa da Biblioteca Nacional/RJ.

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FRACCAROLI, Caetano. A percepção da forma e sua relação com o fenômeno artístico: O problema visto através da Gestalt. Aula nº 30-Plástica III, Setor de publicações, FAU-USP, 1952. O autor organiza esta coletânea para aulas ministradas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na qual desenvolve a mesma problemática da percepção estética. Seu estudo apresenta, de modo sintético e didático, o tema da gestalt e suas implicações no campo da arte. O próprio autor assinala ser este um campo de interesse crescente no período da década de 1950, campo este também explorado por Mário Pedrosa com grande interesse.

isoladas. Á partir do modelo da percepção visual, a teoria associacionista descreve que a luz incide na retina e se propaga da mesma forma ao cérebro, indo estimular pontos isolados do córtex cerebral. A forma seria então gerada em um momento posterior por um processo de associação dessas estimulações isoladas (FRACCAROLI, 1952). Para atribuir um sentido e significação à forma percebida, o cérebro recorreria às experiências armazenadas na memória para designar-lhe um significado, de acordo com as experiências já assimiladas anteriormente. De acordo com a psicologia tradicional, o cérebro recorre à experiência e à memória para realizar a associação do significado da forma percebida.

Este esquema interpretativo, no entanto, não se estendia a todas as situações visuais. Um exemplo desta insuficiência está relacionado ao fenômeno da ilusão de ótica, que opera segundo um padrão visual que não existe de fato, e, portanto, a construção do signo não encontraria correspondente na experiência e na memória. O que provocava o questionamento da psicologia clássica era o fato de a imagem que provoca a ilusão óptica estar sempre relacionada a um conjunto de elementos, nunca podendo ser percebida em um ponto isolado. Partindo desta inquietação, a escola da gestalt propõe a teoria de que a percepção se dá pela relação recíproca das várias partes dentro do todo. Dedicando-se ao método empírico, os gestaltistas vão desenvolver teses que visam explicar como funciona o esquema cerebral.

Em sua tese de 1949, Mário Pedrosa inicia seu argumento a partir destas considerações. Embora este panorama das ideias psicológicas não fique claro em seu estudo, o autor parte já de um embasamento consolidado da psicologia da forma e arrola seu argumento partindo da tese de que há uma estrutura intrínseca na forma em tudo o que vemos. Assim, diz o autor, que tais formas nos chegam pela visão por causa das estruturas elementares que lhe são inerentes e que são percebidas pela nossa fisiologia de apreensão visual. Desta maneira, Pedrosa quer trazer à arte, uma constatação da psicologia experimental, de que a estrutura elementar inerente à forma é um dado natural, lhe é intrínseco e não é um dado cultural, ou mesmo histórico. As características formais do objeto não estão fora dele, nas estruturas culturais das sociedades, mas são propriedades dos objetos. Para comprovar tal tese, Pedrosa se valerá de diversas citações de demonstrações experimentais, principalmente com animais e crianças, que evidenciaram os resultados que puderam encaminhar tal conclusão.

O aporte de pesquisas com animais e crianças foi necessário para observar experimentos que comprovassem a tese de estruturas elementares naturais das formas dos objetos. Tais procedimentos empíricos foram aplicados a estes dois grupos, pois constituem

amostragens de tipos vivos que não passaram ainda pelo processo “civilizatório”40

, entendido por Pedrosa e por estes teóricos, como condicionante a uma visão de mundo a partir de um ponto de vista cultural, situado em um tempo e um espaço. Uma vez que “as concepções que

temos sobre as coisas influem na própria percepção que temos delas”, os teóricos buscarão

excluir os conhecimentos adquiridos pelo processo civilizador, e querem observar a situação

fenomênica de uma “experiência primeira”, de um primeiro contato com determinados

objetos, sem a intermediação de idéias pré-concebidas. E querem, então, tomar nota das reações expressas diante das formas desconhecidas e assinalar constatações teóricas a partir das reações observadas nestes experimentos.

A tese do estudo não se detém, entretanto, na análise de fatos empíricos. Mário avança e articula um enredo que enlaça a relação da obra de arte com uma dimensão afetiva. Mas o que o autor quer dizer com esta dimensão afetiva? O que o afeto, ou a afeição tem a ver com a

percepção da obra de arte? Por que associa a “forma” na obra de arte com uma “natureza afetiva”?

A “natureza afetiva” de que fala o autor, não está relacionada diretamente a afetos, mas liga-se à maneira como a obra de arte nos afeta. A tese que Pedrosa defende é a de que a obra de arte tem qualidades intrínsecas, estruturas próprias que se apresentam ao espectador com sua força mesma, independente de conceitos e abstrações teóricas. O grau de afetação estética será determinado pelo envolvimento do espectador com a obra de arte, por ela mesma, e pela capacidade deste de absorver o que a forma do objeto artístico é capaz de oferecer-lhe, por sua própria natureza e por suas leis inerentes.

Esta linha se opõe à estética inspirada na psicologia idealista associacionista, “para a qual por detrás de uma obra de arte, de uma forma plástica, há sempre uma associação para significação intelectual que nos dará a chave para compreender a ‘beleza’ ali contida”. As leis

da psicologia da forma constataram que “os objetos têm por si mesmos um caráter próprio em

virtude de sua própria estrutura e são independentes de toda a experiência anterior do sujeito

que os percebe”, tal afirmação contrapõe-se à participação da memória na relação estética do

40 Termo usado pelo sociólogo alemão Norbert Elias, autor da obra O Processo Civilizador publicada em 1939

sobre as dinâmicas culturais e esforços de grupos sociais, para imprimir à sua época determinados costumes e regras que condicionam a sociedade a determinados valores morais e comportamentais. A obra tornou-se importante na Sociologia, pois em seu método de análise articula história, teoria social e psicanálise ao relacionar o conceito de civilidade com determinações sociais que condicionam esquemas comportamentais e cristalizam respostas psíquicas. Embora esta obra esteja vinculada aos comportamentos sociais e tampouco se refira às designações estéticas, o que nos vale neste ponto é a ideia de um condicionamento cultural a determinadas formas de pensamento construídas a partir de pré-estabelecidas maneiras de ver, perceber e sentir. No caso específico das pesquisas gestálticas, os cientistas valeram-se das categorias psíquicas de crianças e animais, pois estes estariam mais próximos do estado de natureza, pouco vinculados aos condicionamentos sociais e culturais de suas épocas.

indivíduo com o objeto de arte, e é contrária à idéia de que o sujeito observa na obra aquilo que lhe reverbera significação, ou que lhe ecoa uma situação semelhante de afetação emocional.

Pedrosa dedica grande parte de seu estudo à citação de demonstrações de vários cientistas para evidenciar como tal linha teórica pode falsear a significação que o espectador faz da obra de arte, pois à medida que o espectador projeta suas próprias experiências e julgamentos, priva-se da oportunidade de assimilar uma nova experiência que poderia ter sido proporcionada por aquela forma artística ainda desconhecida.

O contato com a nova forma é a via de possibilidade de alargamento das experiências sensoriais, e deve ser entendida como o mecanismo de uma nova experiência para a psique e não associada com o universo já conhecido e identificado da memória. Pedrosa afirma que

“não percebemos em uma situação apenas o que nos interessa, o que pode satisfazer uma

necessidade”, a impressão global dá-se também em situações despropositadas ou mesmo naquelas que não se incluem nas atividades pragmáticas do homem. Assim a percepção vai

além da consciência de uma escolha e “não segue um utilitarismo a serviço de uma adaptação biológica”, mas responde aos estímulos sensoriais com mecanismos estruturais.

A grande preocupação de Pedrosa é compreender como se dá a relação “afetiva”,

como opera a fisiologia de afetação da obra de arte sobre o espectador e o processo pelo qual este lhe atribui um significado. Sua preocupação dirige-se em conhecer os mecanismos que ligam esta forma à percepção humana, e de como os sentidos humanos, sobretudo a visão, a apreendem e formulam um entendimento para ela. O problema da forma para Pedrosa está relacionado mais ao espectro da apreensão do que ao universo da criação, diz o crítico:

“Quando se aborda o fenômeno artístico, a característica sensorial da pura percepção estética

indica que o problema fundamental, não é o de saber como os objetos são concebidos, mas

como nós os percebemos”. 41

(PEDROSA,1996, p.109) Portanto, a questão central para o autor, não é encontrar a natureza da forma na arte enquanto origem criativa, sua definição e características inerentes. A investigação do autor visa compreender não a origem da forma na obra de arte, ou de como ela é produzida como gênese artística, mas visa, sobretudo, traçar o mecanismo de como a organização percepcional humana apreende esta forma e incorpora esta nova experiência ao seu aparato cognitivo. O crítico se interessa por um esquema de leitura da forma da obra de arte e neste argumento que desenvolve não se ocupa com a dimensão criativa do artista, de como a forma é pensada e gestada por seu produtor ou criador. A

41 PEDROSA, Mário. Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte. In: Forma e Percepção Estética: Textos

preocupação do crítico, entretanto, reside na comunicação entre obra de arte e o espectador, e nesta relação, o foco de pesquisa de Pedrosa é identificar como opera a recepção da obra de arte pelo aparato perceptivo do espectador.

Pedrosa tangencia uma discussão que será arregimentada com maior força teórica ,posteriormente, nos anos 1970, quando se formula uma série de conceitos sobre a chamada Estética da Recepção, tendo um de seus expoentes teóricos no discurso de Hans Robert Jauss.42

2.4 A PSICOLOGIA DA FORMA VISTA POR MÁRIO PEDROSA: TEMAS INERENTES