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Por vezes a cidade concentra na mesma moldura os seus variados registos históricos, a distinta traça nos edifícios, um desvio na esquadria das praças, o esmero ou a pobreza que denotam a estima pelo lugar: tratam-se de palimpsestos

urbanos, expressão em que nos apropriamos do conceito de Genette8, caóticos na forma urbana e ricos de significa-

do, como camadas de matéria de onde se descolam ordens de poder, sonhos, ciclos económicos e de vida, expressões identitárias de modos de ser e viver a cidade, em retratos fiéis a um tempo que pode ser interpretado:

Nos dois bairros são visíveis sinais recentes da renovação arqui- tectónica das casas, que foram dando origem às marcas mais ou menos ostensivas da individualidade dos seus proprietários. Nas duas encostas encontram-se também vestígios dos bairros de construções modestas da população mais empobrecida, de tra- çado mais ‘orgânico’, e cujas ‘ruas particulares’ ostentam ainda a marca da precariedade da vida dos que ali ainda moram,…, Junto a estes bairros encontram-se nas duas encostas algumas hortas espontâneas, cuidadas pelos seus moradores.

Estes espaços são potenciais palimpsestos urbanos, ou objectos de trabalho colaborativo. Como Smith e Pap- palepore (2015) demonstraram através do seu estudo numa das zonas limítrofes de Londres, é a qualidade vul- gar que atrai os visitantes em contraste com outras áreas da cidade, estilizadas e artificialmente inventadas.

Será interessante neste diálogo pensar que ele é circular e se move entre as diferentes partes interessadas na cidade: artistas, público local e visitantes, governos, habitantes, num jogo que se afirma a partir de modos de vida, às vezes críti- cos com as políticas da cidade e as suas transformações e outras vezes encontrando-se em harmonia com ela. Existe o óbvio reconhecer de um sentido ou motivação orientados por valores no comportamento dos artistas. Estes criam, na sua ligação ao território, um organismo vivo onde as ideias se concretizam em relações e situações partilhadas, fazen- do diluir a diferença entre centro, margem, periferia, con- struindo entre o urbano os polos de um possível comum.

A sua motivação é ética porque a sua abordagem é flexível e não apriorística: visa estar com as pessoas e encontrar em conjunto respostas a problemas urbanos, sociais de onde ou com os quais poderão retirar inspiração estética, mas procu- rando encontrar um sentido na vivência comum da cidade.

Segundo Rachels (2004), a ética, enquanto discussão do modo como havemos de viver, i.e. do sentido e da razão das nossas acções, integra um conjunto de princípios, ou valores morais, que carecem de reflexão. Estas questões poderão ser melhor enquadradas se remetidas para pers- pectivas dentro da ética que justificam o sentido da decisão moral. Deste modo, à actividade do artista poderia ser con- ferido um sentido deontológico no âmbito kantiano: a de promover a acção em função do dever de garantir o respei- to e a dignidade do próximo. Assim como poderia remeter para o campo teleológico, fazendo corresponder a noção de bem à visão utilitarista na arguição final de Stuart Mill, que promoverá um estado de coisas tornando possível a felici- dade a uma maioria tão vasta quanto possível.

Para a compreensão do entendimento do que poderá ser a colaboração, recorremos à ética das virtudes na pro- posta de Aristóteles (2009), e segundo a sua ética nico- maqueia publicada cerca de 325 a.c., tomando-a como par- te de uma teoria geral da ética, e de onde o cuidado com o outro através da afectividade não está ausente. Aristóteles considerava a virtude como um traço de carácter baseado no agir natural: corresponderá ao justo conhecimento de si mesmo (hoje diríamos desenvolvimento pessoal) permitindo ao sujeito atingir um estado de felicidade. A virtude treina-se pela participação pública, pela ligação à comunidade, pela capacidade de ouvir a voz do outro, permitindo encontrar o justo meio sendo consciente dos extremos, entre o conhecimento do excesso e do defeito.

Relembrando certos princípios que Aristóteles abor- da na realização da virtude, constatamos que há também

alguma intersecção com valores caracterizados por uma fenomenologia da acção: responsabilidade, honestidade, respeito e compromisso. Procuraremos ilustrar com exem- plos de intervenções em arte relacional por alguns dos colec- tivos que operam na cidade e que foram consultados duran- te o nosso estudo. O princípio da responsabilidade poderá ser traduzido na capacidade de dar a resposta adequada tomando voluntariosamente conta de uma dada situação. A actuação responsável do “Frame Colectivo” é esclarecida no seu manifesto. O grupo desenha intervenções com o in- tuito de questionar micropolíticas urbanas dominantes em prol de uma cidadania activa através de colaborações inter- disciplinares em que a arquitectura e a performatividade são nucleares. Exemplos de actividade são o “Pátio Aberto”, um programa cultural com o conceito de curadoria partici- pativa, em que ao longo de 4 dias, 400 pessoas de várias idades e estractos sociais da Colina de Santana assistiram a concertos, participaram em ateliers de costura, cerâmica e conserto de electrodomésticos. Ou o “Pátio ambulante”, materializado num carro de bombeiros antigo, vermelhão, que se instala pela cidade ocupando os caminhantes e visi- tantes com propostas educativas. A “oficina de carpintaria ao ar livre” foi outra actividade integrada no “Festival Todos- -Caminhada de Culturas” em 2015. A responsabilidade que se manifesta na capacidade em esboçar, planear e intervir com habilidade face a problemas, gizar estratégias de inter- venção replicáveis em espaço público. Outro evento, ao qual se associou a coreógrafa e bailarina Margarida Bettencourt, foi a preparação de um banquete performativo para pensar a comida como acto ético e político, questionar as relações de poder que emanam da alimentação. A comida servida neste banquete proveio de desperdícios recolhidos numa respiga pela cidade, nas 48h anteriores ao evento: “Viver- mos num mundo em que se pode produzir um banquete com desperdícios, e isso dá que pensar”.

Por meio da honestidade exerce-se a capacidade de se mostrar tal e qual se é. Como no trabalho com a rua e os seus habitantes promovido regularmente pelo “c.e.m – centro em movimento” e ilustrado originalmente na caminhada-performance ocorrida na mudança de insta- lações da Praça da Alegria para a Rua dos Fanqueiros em 2003: confrontada com a obrigação de abandonar as suas instalações, a equipa e os alunos desceram parte da baixa de Lisboa transportando a mobília e os pertences até ao novo espaço numa procissão de honestidade. A desco- berta da rua, sendo uma casualidade, levou a um traba- lho cujo principal motivo é o conhecimento da cidade, através do contacto autêntico (no sentido aristotélico da honestidade) sobre a condição dos habitantes da cidade. Trabalhos como o “manual de estar”, praticando a arte de “estarcom” pela cidade, ou o “festival pedras: em que mundo queremos viver?” que percorre freguesias urban- as com distintos graus de turistificação, como a Mouraria a Penha de França:

Uma senhora toda vestida de amarelo canário com o cabelo amarelo canário e um saco de cada lado encandeia-me. Quase não vejo 3 turistas a palrar…aqui quase não há turistas… ou talvez seja a vivência de lisboa lá de baixo onde se tropeça em máquinas fotográficas e gente a andar de bicicleta com um saco de plástico na cabeça e ajuntamentos que param no meio da estrada para comentar uma esquina pitoresca… aqui ainda cheira a aldeia. (AAVV, 2018, p. 96)

Uma vez estando na rua, o artista deixa que o encon- tro surja, com as suas vicissitudes:

Passa um sr. que havia recusado recuado do bom dia e dessa vez brinca comigo, pergunta se estou sentado por estar cansado e até sugere trazer-me uma mesa para escrever. (AAVV, 2018, p. 96)

Frame Colectivo, Lisboa 23.01.2019 © Luísa Ferreira

O respeito manifesta-se na capacidade de expor as necessidades próprias e de conviver com outro aceitando também as suas. Embora seja um princípio comum e imprescindível à acção da arte relacional, um exemplo feliz é o trabalho educativo com comunidades, nome- adamente o trabalho com crianças no projecto da coreó- grafa Sílvia Real “E se tudo fosse amarelo” com o Teatro da Voz, em que esta confessa ter-se dado conta de in- úmeras ideias erradas que os adultos têm sobre aquilo que é adequado às crianças, desrespeitando as necessi- dades de um ser em formação. Outros projectos de for- mação artística conduzidos por estruturas como o “Fo- rum Dança”, “c.e.m –centro em movimento” e “EIRA” têm em comum a presença de 80% de participantes estrangeiros, habitualmente da América do Sul (Brasil, Uruguai) e da europa central, do sul e leste, fixando os turistas na capital durante meses. Estas estruturas inte- gram ainda na sua programação projectos mais territori- alizados, eventualmente associadas a juntas de freguesia, através de acções de desenvolvimento da sociedade e que tocam requisitos de responsabilidade social. Outros pro- jectos de âmbito geral como mostras informais, festivais internacionais como o Alkantara ou aulas regulares de dança são procurados assiduamente por turistas durante a sua estada em Lisboa. No caso do acolhimento de ar- tistas em residência, estas estruturas recebem criadores de geografias políticas muito tensas, como o Médio Ori- ente, dentro das quais o activismo artístico pode signi- ficar a detenção ou uma ameaça diária à sobrevivência. Em todos estes exemplos se aplica a importância de tra- balhar com o princípio do respeito mantendo uma ne- cessária abertura ao outro sem a qual não poderá haver a confiança básica nem o aprofundar do labor artístico.

No compromisso, ou auto-estima, vive-se a capaci- dade de sentir o seu próprio valor e envolvê-lo em actos

que, segundo Aristóteles, são despidos de egoísmo e poderão exigir algum auto-sacrifício, já que o amor que uma pessoa boa nutre por si própria leva-a a alcançar o bem da comunidade e dos que a rodeiam. O trabalho da encenadora Mónica Calle é um digno representante do compromisso, sobretudo com a mudança da sua compa- nhia (A Casa Conveniente) do Cais do Sodré para a zona J, em Chelas, em 2014, procurando atrair pessoas “não artistas” para as artes, num lugar ainda em construção e em condições fracturantes:

Podia ter recomeçado tudo sozinha, continuando o caminho de uma outra forma e feito outras escolhas. Mas escolhi assim… Vou começar mais uma vez ao frio no entulho, sem luz, sem água, tudo dificílimo. Mas continua a fazer sentido. E, portanto, continuo a acreditar.9

Trabalhando de portas abertas dentro do bairro, reuni- do um grupo que integra profissionais e amadores, congre- ga o talento dos habitantes que passam a integrar o elenco das suas peças, como o senhor guineense, de 40 anos, entu- siasta deste projecto e que partilha: “É uma ideia excelente para a comunidade. O projeto vai unir-nos porque andamos ‘desaproximados’. A Mónica vai trazer a comédia.”10

Através do exercício da colaboração, reflecte-se um território onde cabem os habitantes, os visitantes, os turis- tas, os que quiserem passar. Por vezes os encontros têm sentido crítico, mas permanece o desejo de reencontrar a cidade, nas suas ambiências distintas que conferem ao in- divíduo o possível reencontro consigo mesmo. Desta ami- zade pela cidade crescem os projectos de alimentar comu- nidades, o que na realidade é uma ideia fundacional de um dos pais da fenomenologia existencial, Martin Buber.

A transformação da vida social no homem é a pre- ocupação de Buber, favorecida no encontro dialógico

Eu-Tu, acção apresentada e defendida no seu livro mais importante, de 1923. A comunidade afigura-se uma plu- ralidade que assegura a singularidade de cada pessoa, sem subordinação à unificação: igualdade de condição de existência comum, o entre-dois, ou espaço interpessoal despojado de vantagens particulares, numa relação viva e recíproca. Buber não negava que o (seu) mundo actual estivesse em crise. E perante a actualidade de uma crise, apesar da crise, afirmava que era aí que a comunidade se deveria dar: como resposta de momento a uma questão de momento. Segundo observação de Newton von Zuben no posfácio ao breve ensaio “Observações sobre a ideia de Comunidade”, de 1931, nesta ideia buberiana “a comuni- dade não deve tornar-se um princípio; ela deve também, quando aparece, responder não a um conceito mas a uma situação. (1987, p.135).