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Respondendo à urgência de trabalhar colaborativamente, Pickels (2017) aponta esta tendência nas produções de teatro e dança como sendo um meio para partilhar expe- riencias íntimas e cimentar um sentido de bem social co- mum. Nesta leitura, tratar-se-ia de uma forma de contra- -resposta ao espírito de neo-liberalismo, da privação de di- rei-tos e excesso de atenção ao mundo financeiro, oferecen- do-nos a ilusão de vivermos juntos, levando em considera- ção a expressão pessoal: ”Para além do seu efeito analgésico,

a participação nas artes tem o mérito de nos lembrar o que sig- nifica ter uma opinião e nos envolvermos diretamente, mesmo sendo de uma maneira puramente formal” (p. 60).

Na mesma linha de sentido, Greiner (2017) aponta com eficácia o mecanismo de recuperação do munus em projetos performativos que buscam a vitalização do sen- tido de comunidade, sendo pensados para lugares espe- cíficos e restaurando “a aptidão performativa da abertura

radical ao outro” (p. 188). Greiner pretende afirmar a di-

mensão política do trabalho artístico e, numa lógica que apelida de “microativismos de afetos”, fornece exemplos de propostas no Brasil, como o projecto 100 casas proposto pelo coreógrafo Marcelo Evelim5. Procurando apoiar estas

experiências como modos de construir conhecimento e pensamento, Greiner afirma que não é suficiente ques- tionar processos de criação mas, antes, fortalecer os pro- cessos de partilha.

A consequência é a descoberta da pluralidade e da multiplicidade humanas, como no exemplo da coreógrafa Lia Rodrigues (2010) ao expressar a necessidade de fi- xar a sua companhia de dança em 2003 para a Favela da Maré, no Rio de Janeiro, como uma posição política para incluir um enorme segmento populacional da população,

trabalhando a partir da ideia do “estar junto” numa práti- ca de criação colectiva, resolvendo em permanência os de- safios que a situação impõe.

Será a arte relacional, assim como o espírito dos cria- dores, moldada por um apelo ao político? Num texto de Bishop (2017), em que a autora retoma as concepções de Rancière em Malaise dans l’ esthétique (2004), a instân- cia política também é consentida na obra de arte, já que o domínio estético é denotado como uma forma autónoma de vida, numa aproximação kantiana que ausenta o juízo estético da razão moral e do entendimento. Esta liberdade possibilitaria a análise política “dado que a indecibilidade

da experiência estética implica um questionamento do modo como o mundo está organizado, e, por consequência, a possibi- lidade de mudar ou de redistribuir esse mesmo mundo” (p. 80).

Assim, para Rancière, a relação entre estética e política dá- -se como partilha do sensível e as mundividências suscitadas

pela arte relacional, decorrendo dentro ou fora de uma sala de espectáculos, seriam reparadoras do laço social perdido.

Contudo, é um facto que a dimensão política e inter- ventiva é destacada com alguma prioridade entre teóricos e agentes que se movem nas artes performativas, preo- cupados com o momento de crise que se vive nas demo- cracias ocidentais e que por isso, fazem por evidenciar e nutrir outros modos de participação. O académico Jan Sowa (2016) recorda, como padrão sociopolítico de fundo à arte relacional, o movimento de ocupações, o impacto dos orçamentos participativos na população, a emancipa- ção do cidadão e a crítica à democracia parlamentar: a arte de ocupação tem ressonância na comunidade artística6,

através de casos que são mostrados com a ocupação de teatros que iriam ser privatizados (Teatro Valle em Roma e Embros, em Atenas) ou a relação entre artistas nova- iorquinos e a ocupação da Liberty Plaza que inspirou à

redação do artigo “The artistic Mode of Revolution: From

Gentrification to Occupation”, publicado no jornal de arte on-line E-flux em 2012, ou ainda o caso dos activistas ocu-

pantes convidados a participar na sétima Bienal de Arte Contemporânea de Berlim, em 2012.

A componente política é também destacada já que esta ênfase na partilha poderá comprometer a própria natureza da proposta artística, referindo-nos aqui criticamente à instrumentalização da ética na leitura da arte relacional segundo os argumentos de Rancière (2004): posição que deixaria escapar o entendimento estético da experiência ao insistir apenas numa leitura anticapitalista (ou antineoli- beral) e em registar a nobreza de intenções dos interveni- entes. Por outras palavras, se há aspiração a alcançar um bem social, devem os projectos ser meramente julgados por resultados instrumentais ou poderá chamar-se-lhes ainda arte e configurar-lhes algum valor estético?

Na sua divagação sobre as contradições e os impass- es da arte é sabido que a resposta de Rancière, centrada no desenvolvimento da arte em direcção à esfera da políti- ca, se sucede à anterior proposta de Félix Guattari (1992), que Rancière recupera, e que está centrada na esfera da ética, propondo acompanhar as mutações sociais e auxili- ando experiências de indivíduos em relações microscópi- cas com comunidades a fim de restaurar um sentido de totalidade. Ou talvez, no fundo, e evocando Aristóteles (2009), a ética e a política sigam juntas, porque o treino ético do indivíduo é condicionado pelo modo como uma noção supra-individual e construída de governo, como o Estado, faz exercer as suas leis no espaço público.

No caso de Lisboa, as propostas de arte colaborativa que identificamos partem de autores que compartem lon- gos processos biográficos de pesquisa e criação, de auto- -conhecimento maturado, com discernimento da prática artística e dispondo de informação quanto a estratégias de

programação e de constituição das políticas da cidade e dos apoios às artes. Localizado o impasse entre o político e o ético enunciado por Rancière, a busca incessante por uma respos- ta que não poderá ser definitiva faz com que advoguemos a busca por um sentido tangível e onde o desenvolvimento das propostas se distribua pelas três áreas: estética, política e ética. Porque por vezes é o estético que primeiro emerge, na fusão heideggeriana entre o criador e o objecto de arte na cidade, criando um fenómeno vivo e temporal:

…sou a medida do movimento dos carros que passam. Estendo o braço e transporto o braço pelo vento do carro. / Ser poste / Gosto de sentir a coluna paralela às paredes da rua. Mas às vezes quero deitar no chão e ser paralelo ao pó / ou ser fantasma que veio de uma praia qualquer que se transformou em asfalto. / Entretanto o que apetece mesmo é sentir a barriga diante de um poste. Quase o toco. E sou quase o namorado do poste quando noto que a boca palpitou com a proximidade-distância. Que possamos demorar. (AAVV, 2018, p. 96)

Outras vezes o político, o estético e o ético intro- metem-se:

… enquanto acompanho o homem na damaia a continuar a pregar o tecto de uma casa que com certeza já está destinada a ser destruída, enquanto oiço a mulher cabo-verdiana de olhos cabo-verdianos a dizer que não encontra mais força para viver, e que não consegue entender porque uns fazem tanto mal a ou- tros… vejo também o ajuntar de corpos em cadeiras de plástico ou bancos de madeira partidos, vindos ao encontro do sol do fim do dia, bebendo a sua pinga, partilhando pastéis de atum, vejo o conviver… mesmo em situações absurdas de caos e de fim das vidas que viveram agora, existe esse movimento de ser humano, para quem é humano, ou para quem integra esta espécie de humano-humanos. (Neupphart, 2018, p. 123)

Ou, partindo ainda da terminologia aristotélica reto- mada por Agamben, embora remetendo para um sentido oposto à proposta do filósofo italiano7, diríamos estar pe-

rante propostas artísticas que se inscrevem num espaço/ momento intermediário ou suspenso entre a possibili- dade de serem simultaneamente praxis (porque acção) e

poiesis (porque criação).

Entre o lugar e o político, o lugar e a estética, o lugar e a ética estabelecem-se linhas de possibilidade através do contacto e da relação com as ruas e praças, entre danças, caminhadas, observações. Talvez o problema irresolúvel da arte relacional, quando analisada à luz da filosofia da arte, se dissipe numa prática do cuidado, que recupera a compaixão que favorece a humanidade. Uma prática de comunidade, de procura do comum, já anteriormente mencionada e que aqui fechamos recorrendo a Bauman (2006a) para quem a comunidade é um objectivo sempre buscado na tensão entre comunidade e individualidade, entre segurança e liberdade pessoal, trilhando o futuro das nossas sociedades:

“Se vier a existir uma comunidade o mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comu- nidade de interesse e de responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos.” (Bauman, 2006a, p. 134)

4. PALIMPSESTOS URBANOS, ARTISTAS