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2 REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS E

2.4 Da Itália ao Brasil: experiências iniciais acerca da Reforma Psiquiátrica

2.4.3 Articulação Nacional de Luta Antimanicomial: em foco, os movimentos sociais

O Movimento de Luta Antimanicomial, maior expressão da luta pela Reforma Psiquiátrica, não se justapõe à Reforma Sanitária no que concerne à sua formação político- social. Surge nos anos de 1980 e na origem de suas discussões estavam os interesses de um conjunto de categorias profissionais vinculadas à assistência prestada nos hospitais públicos psiquiátricos (AMARANTE, 1995).

No projeto da Reforma Sanitária, a aglutinação dos mais diversos segmentos da sociedade em torno de um projeto contra-hegemônico de saúde contestava o modelo de sociedade instituída, transcendendo os marcos corporativistas (TEIXEIRA, 2011).

A transição que se realizava da ditadura à redemocratização no país nesse período manteve as mesmas políticas econômicas que o regime conseguira implantar, utilizando estratégias repressoras e autoritárias (BÓRON, 1995).

As transformações em curso que se operavam com a força das mobilizações sociais por todo o país, sob o protagonismo desses dois importantes movimentos, colidiam com a implementação de políticas neoliberais nos contextos regional e mundial.

Como sujeito político de importância fundamental para a concretização de uma Política Nacional de Saúde Mental, a Luta Antimanicomial foi marcada por diferentes fatos políticos que se traduziam em um conjunto de denúncias ao manicômio e às reivindicações da classe médica por melhores condições de trabalho e por assistência à população.

A primeira crise no sistema público de saúde mental ocorre em 1978, desencadeada por uma série de manifestos que oscilava entre a urgência de um projeto de transformação psiquiátrica e uma pauta de reivindicações de interesses corporativos (AMARANTE, 1995). Seu estopim foi a deflagração de uma greve protagonizada por profissionais que atendiam nos grandes hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro vinculados à Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) 23, resultando na demissão em massa de profissionais e estagiários. As

denúncias, formuladas por três médicos bolsistas, revelavam as atrocidades cometidas dentro dessas instituições, angariando a adesão de profissionais de outras unidades, além do apoio imediato do Movimento de Renovação Médica (REME) e do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES)24.

A princípio, foi a conjunção das forças dos trabalhadores em saúde mental, especificamente médicos e residentes, que deu origem ao Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). Como movimento social, o MTSM ganha importância no processo da Reforma Psiquiátrica por conseguir reunir diferentes setores da sociedade e organizações políticas representativas dos trabalhadores, usuários/usuárias e familiares dos serviços de psiquiatria, avançando com as denúncias contra os hospitais psiquiátricos públicos, que funcionavam como “redutos dos marginalizados” (AMARANTE, 1995, p. 55).

A pauta de reivindicações, proposta inicialmente e organizada em espaços não institucionais em que se reuniam os trabalhadores, traduzia os anseios trabalhistas pela regularização do vínculo empregatício dos bolsistas e pela redução da carga horária excessiva, além de traduzir as denúncias das precárias condições institucionais e de trabalho, que ganharam destaque com a cobertura da imprensa. No bojo desse movimento, já se construía uma crítica contumaz ao saber psiquiátrico no que se refere ao uso do eletrochoque e à cronificação do manicômio, além da publicização das constantes violações aos direitos humanos que ocorriam no interior dessas instituições: “agressões, estupros, trabalho escravo e mortes não esclarecidas” (AMARANTE, 1995, p. 52).

O ano de 1979 se torna um marco referencial no que tange à conjunção de forças sociais em defesa de um sistema público de saúde mental em bases democráticas e do fortalecimento das instituições representativas dos trabalhadores e das demais organizações articuladas aos movimentos sociais. No curso daquele ano, muitos acontecimentos

23 Órgão do Ministério da Saúde que formulava as políticas de saúde mental em 1978 e teve sua atuação questionada e

enfrentada por um grupo de profissionais e estagiários que deflagraram uma greve nas quatro unidades da DINSAM no Rio de Janeiro.

24 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde é uma entidade nacional criada em 1976, cuja missão histórica é a luta pela

convergiram para a irreversível mudança paradigmática à qual o modelo psiquiátrico asilar deveria ser submetido, destacando-se a realização do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, que contou com a presença demarcadora para a Reforma Psiquiátrica brasileira de Franco Basaglia. O médico psiquiatra italiano, com sua denúncia pública, tocaria para sempre na ferida social produzida pela violência asilar no Brasil e, no mesmo período, a divulgação do documentário “Em nome da razão”, produzido pelo cineasta Helvécio Ratton na Colônia de Barbacena, citado por Arbex (2013, p. 219) como sendo o “golpe de misericórdia no modelo de psiquiatria exercido até então”. Por fim, a filiação ao Partido dos Trabalhadores, do então professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Paulo Delgado, que, em sua trajetória política, foi o mais importante legislador da Reforma Psiquiátrica no Brasil (MASSANARO, 2013).

As forças contra-hegemônicas da sociedade estavam reunidas em torno de uma experiência que cindia não apenas com a instituição total, o manicômio, mas com toda representação simbólica inscrita nas mais aviltantes formas de tratamento ofertado nesses espaços. É, sobretudo, por meio do engajamento de associações de familiares e de pessoas com longa história de internações psiquiátricas que o movimento amplia a importância da profunda ruptura que iria se consolidar no campo da saúde mental.

Duas experiências já se afirmavam no seio do movimento que iriam delinear seu caráter emancipador: a conjunção de atores que secularmente foram separados pela rigidez da ordem psiquiátrica e seu aparato instrumental e desumano – “grades, celas, excesso de medicação etc.” e a associação entre trabalhadores e pacientes, experimentando junto o protagonismo de uma “Sociedade Sem Manicômios” – lema que constrói a denúncia contra as violações, convocando toda a sociedade para reinventar suas práticas e saberes (SILVA, 2003, p. 94).

Para Silva (2003), o envolvimento desses atores e a existência de um movimento social com bases fundadas na pluralidade e democracia surgem como importante referência no desenvolvimento de uma aprendizagem social em que loucura e suposta normalidade podem ocupar espaços comuns de convivência.

O ano de 1992 marca os avanços de uma política inovadora do ponto de vista legislativo e social, no que diz respeito ao redirecionamento do modelo assistencial de saúde mental. Vários estados brasileiros iniciavam o processo de progressiva substituição dos leitos psiquiátricos sob a determinação das primeiras leis estaduais em direção ao modelo de rede integrada de saúde mental (BRASIL, 2005).

Em 1993, com a instituição da Luta Antimanicomial, ampliaram-se os espaços de aglutinação dos usuários/usuárias em Encontros Nacionais específicos, além da participação em espaços institucionais de entidades comunitárias. A inserção desses sujeitos em fóruns comuns para todos os integrantes do movimento se transformou em um campo inovador e político, comportando questões éticas, técnicas, que desvelavam as contradições de uma convivência entre sujeitos com experiências sociais e culturais tão adversas quanto solidárias na desconstrução do aparato manicomial que envolve práticas e saberes.

Esse momento histórico, com repercussão significativa no campo dos direitos humanos, logrou, com êxito, a sensibilização da sociedade e o início das lutas pela Reforma Psiquiátrica nos campos legislativos e normativos. Em 1989, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3.657/1989 no Congresso Nacional, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT/ MG), que propôs a regulamentação dos direitos da pessoa com transtorno mental e a extinção progressiva dos manicômios. Foram doze anos de tramitação para que a Lei fosse sancionada.

Sendo um substitutivo do Projeto de Lei original, a Lei Federal nº10.216/200, trouxe modificações importantes no texto normativo. Reconhecida por converter as práticas manicomiais em um projeto emancipatório para a experiência da loucura, preconiza o reconhecimento do sujeito com transtorno psíquico, através do seu acesso ao território social, bens, serviços e vida comunitária.

Quando da sua aprovação, enquanto projeto de lei na Câmara dos Deputados em 1990, a Reforma Psiquiátrica brasileira já havia iniciado suas primeiras experiências em São Paulo (1987) e Santos (1989). Inspirados pela experiência triestina, os novos serviços foram experiências pioneiras que contribuíram para a construção do paradigma de Atenção Psicossocial e como referência para elaboração da legislação (GULJOR, 2003).

Em 1991, o projeto de Lei da Câmara foi remetido e apreciado por dois relatores do Senado Federal e submetido à votação na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), em 1995, com parecer favorável. Porém, foi rejeitado por duas vezes pelo plenário, recebendo várias novas emendas até a sua aprovação em 1999; após doze anos de tramitação, foi sancionado como Lei Federal no ano de 2001 (ARBEX, 2013).