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Reabilitação Psicossocial – “restituição, construção e reconstrução de direitos políticos

3 REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL A PARTIR

3.7 Reabilitação Psicossocial – “restituição, construção e reconstrução de direitos políticos

políticos e sociais”

Na perspectiva teórica assumida por este estudo, a reabilitação psicossocial consiste em um processo contínuo de transformação da sociedade, que, instaurado no campo da saúde mental, deve privilegiar como dimensões de tratamento a vida comunitária e o sujeito em sofrimento psíquico integrado às diversas instâncias que o reinscrevem na vida social. A reabilitação psicossocial implica a abertura de múltiplos espaços que requerem negociação entre os serviços propostos para assistência em saúde mental, os sujeitos com transtornos mentais, suas famílias e o entorno comunitário, formando, assim, uma emaranhada rede de relações em que circulam poderes reciprocamente contraditórios (BABINSKI; HIRDES, 2004).

A RAPS constitui o âmago desse conjunto de serviços, atores e tecnologias, que, incrustados aos contextos microssociais, podem questionar o paradigma vigente codificado na forma em que essas instâncias se articulam e se ocupam da doença mental ou, sob a perspectiva psicossocial, acolhem a existência do sofrimento mental como condição indissociável da vida do sujeito.

A organização dessa rede de saúde mental pode evidenciar as idiossincrasias de um novo modelo de assistência que preconiza a liberdade, a autonomia e a participação de todos os sujeitos com experiência de sofrimento psíquico. No entanto, vivenciar episódios de crises psíquicas resulta quase sempre em danos que interferem primordialmente nas instâncias relacionais dos usuários, subtraindo destes a possibilidade de convívio social. O adoecimento psíquico conjuga quase sempre o afastamento gradual e por vezes definitivo do sujeito com transtorno mental dos seus espaços de sociabilidade, tais como: restrição no acesso e permanência no trabalho, retraimento das redes familiares e sociais como consequência do

preconceito que paira sobre a doença mental e seu espectro de produtora de violência e agressividade, entre outras.

Posta dessa forma, a RAPS pode sinalizar para um processo de reabilitação psicossocial em curso que expressa às consequências de uma sociedade marcadamente desigual. As experiências de uma pessoa com transtorno mental que busca sua inserção nas áreas de afirmação social pode significar efetivas restrições no plano de desenvolvimento pessoal e social. Hirdes (2009), ao tratar da questão da cidadania e da inserção social das pessoas vulnerabilizadas pelo adoecimento psíquico, ressalta que, no Brasil, grande parte dessas pessoas está situada na “zona de desfiliação”, o que significa encontrá-las sem trabalho e vivendo sob a condição de isolamento social.

A experiência da não inclusão para os que são acometidos por transtornos mentais, quase sempre, está atrelada a um julgamento médico e/ou jurídico. O ato de interdição civil, baseado em pareceres médicos e dispositivos de lei, transforma em incapacidade para todos os atos da vida, toda desordem decorrente do que se designa “atos de loucura”, agravados por contextos sociais pobres e desiguais. As sanções legais e institucionais atualizam a tipificação da doença mental validando seu objeto: o louco infrator, a mulher medicalizada por sofrer violência de gênero, o adolescente em conflito com a lei, o desempregado que encontra no uso do álcool, crack e outras drogas a justificativa de seu fracasso social. Observa-se, nessas circunstâncias, a presença viva do manicômio, que se dissemina em práticas instrumentalizadas pela segregação, pela negação de direitos e violência.

Passetti (2012) expõe sua crítica aos serviços comunitários abertos de assistência à saúde mental, iniciativas que repercutiram no mundo através da Resolução 46/119 da Organização Mundial da Saúde (OMS), que ressaltava o direito a não discriminação das pessoas com doenças mentais e a serem assistidas em meios abertos.

O lugar da loucura como enfermidade, agrupada a um conjunto maior das doenças e destinadas a espaços limites, ganha outra dimensão: está no próprio exterior como governo da saúde mental. Trata-se de uma operação sistêmica (um sistema aberto) orquestrada com as demais maneiras de controlar a céu aberto, que inclui os regimes de penas alternativas e políticas de tolerância zero para os chamados criminosos ou desencadeadores de pequenas incivilidades, e que dão contornos a novos mapas sobre a vida, não mais a de sujeito de direito, mas a do vivo [...]. (PASSETTI, 2012, p. 108).

Acrescenta às suas reflexões que há uma nova institucionalidade para normalização das capacidades e saúde mental de cada um. A parceria entre a sociedade civil e o Estado flexiona o que se convencionou designar como capacidade democrática de o indivíduo se

governar. Assim, o autor dirige sua crítica aos postulados que afirmam que todos são considerados normais, com necessidades de meios que aperfeiçoem essa condição. Refere sua percepção sobre uma governança que se faz no dentro e no fora institucional por meio da medicação acentuada e das mediações de contenção aos “insuportáveis” da atualidade: os deficitários; os perigosos tidos como os vulneráveis (ou miseráveis).

Tratar da ferida aberta deixada por registros simbólicos e corporais, com acento na morte física e social de muitos seres humanos submetidos à ordem imperativa das instituições asilares, parece não se tratar de tarefa fácil e realizável na contemporaneidade. A ruptura proposta nos princípios desinstitucionalizantes da Reforma Psiquiátrica esbarra nos muros e barreiras manicomiais que vão sendo tecidas no dentro/fora institucional.

O modelo substitutivo ao hospital psiquiátrico, regulamentado no Brasil como campo de assistência em saúde mental, resguarda características inspiradas no modelo italiano, como também possui uma homogeneidade quanto às diretrizes que orientam a implantação de serviços abertos, o financiamento, a abrangência populacional e a composição de suas equipes técnicas profissionais. Essa homogeneidade, no entanto, não se estende às peculiaridades regionais que marcam as diferenças nos territórios de saúde, implicando uma diversidade política e cultural nas realidades locais. Dessa forma, oferecer cuidados em rede de saúde mental às tribos indígenas que vivem no estado do Amazonas, região Norte do Brasil, deve configurar experiência culturalmente diversa da articulação de estratégias de cuidado organizadas para uma comunidade ribeirinha localizada em pleno centro urbano de uma cidade como Recife, localizada na região Nordeste do país.

No que diz respeito às práticas de reabilitação psicossocial, suas contribuições se dão em um campo conceitual pouco coeso, que provoca leituras e interpretações conflituosas em meio às controvérsias que se constroem entre um modelo clássico e excludente sustentado por diagnósticos, tratamento, medicação e readaptação; e as novas intervenções comunitárias que postulam a ideia de participação com o aumento do poder social do sujeito em retomar a vida pública e construir suas próprias respostas aos desafios postos em uma dimensão democrática, civilizatória (GUERRA, 2004).

Faz-se necessário refletir sobre o que Pitta (1996, p. 20) põe em relevo: “quem se define como sujeito das políticas e práticas reabilitadoras?”. Qual é o alcance do processo de reabilitação psicossocial em uma sociedade que tem sua organização social expressa pelo crescimento exponencial do trabalho precarizado, subcontratação pela via da terceirização que conjuga a exploração humana baseada com a lucratividade das empresas privadas, subtraindo direitos sociais, concedentes do status de cidadania?

Com base nessa conjuntura, haverá um lugar social para a população sobrante e cronificada dos hospitais psiquiátricos? E, sob a preconização de cuidados e promoção de cidadania organizada segundo os princípios desinstitucionalizantes de uma rede psicossocial, como articular iniciativas que oportunizem inserção social, singularização das demandas constantes na vida de cada um? Como efetivar o cumprimento dos direitos humanos na vida de milhares de sujeitos que vão se tornando desnecessários às margens de uma sociedade desigual e intolerante com os seus diferentes?

A experiência brasileira de reinserção social das pessoas com transtornos psíquicos pela via do cooperativismo é a inovação mais recente que foi criada pela Portaria Interministerial nº 353/2005, instituindo o Grupo de Trabalho, Saúde Mental e Economia Solidária. Os princípios norteadores para essa perspectiva são pautados na autogestão, valorização das experiências em base comunitária e participação democrática, inclusão em redes solidárias de produção, consumo consciente e realização de Fóruns de Economia Solidária (BRASIL, 2006).

Como modo de produção alternativo à economia capitalista, essas práticas devem apontar para a construção de sentidos para o trabalho que se diferenciam da concepção que vigorava nas “Colônias de Alienados”, em que os pacientes eram submetidos ao trabalho para recuperação das desordens mentais em condição assemelhada à escravidão.

Ainda incipientes como experiências do campo da saúde mental, as cooperativas provocam o debate acerca da possibilidade de “recuperação da contratualidade” das pessoas com transtornos psíquicos, o que pressupõe, para Pitta (1996), reconstituir a possibilidade de ser aceito afetivamente, compreendido através dos vínculos construídos pelo trabalho, em uma sociedade em que prevalecem a desfiliação e a fragilidade dos laços sociais.

A autora assinala a diferenciação que vai se constituindo como arcabouço conceitual de uma prática. A reabilitação, embora tenha surgido no bojo de concepções funcionalistas e individualistas nas práticas da assistência psiquiátrica, tem sido integrada às políticas oficiais de saúde mental, propiciando aos/às usuários/as e familiares, que experimentam o sofrimento psíquico nas fronteiras do dentro/fora que demarcam suas vidas, novos itinerários e validação do Outro.

Pitta (1996) ressalta que a reabilitação psicossocial é uma proposição ética e responsável para com a vida e o cuidado requerido para com as pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, suscetíveis de serem conformadas a uma rotina alienante, às práticas cerceadoras da liberdade e da autonomia e, quase sempre, materializadas por violações físicas e psicossociais.

Para ensejar a importância dos propósitos reabilitadores que orientam o novo modelo de atenção em saúde mental em contextos territoriais, desafiando uma ordem social que secundariza o humano e privilegia o econômico e o tecnológico como portais de desenvolvimento, a autora afirma: “Reabilitação Psicossocial é uma atitude estratégica, uma vontade política, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de cuidados para pessoas vulneráveis aos modos de sociabilidade habituais que necessitam cuidados igualmente complexos e delicados” (PITTA, 1996, p. 21).

A assistência em saúde mental atravessa um momento histórico em que os direitos das pessoas com transtornos mentais à proteção, ao tratamento digno e à vida comunitária, garantidos na Lei nº 10.216/2001 e afirmados em diversas declarações, emergem em uma sensibilidade social em que a dimensão humana desses direitos continua sendo negados. Os territórios de acessibilidade à vida local, onde o sujeito deve sustentar sua falta, “sua anormalidade e insuficiência humana”, atualiza-se em práticas compensatórias: um patamar sempre mínimo que sustenta o dano e as vulnerabilidades do sujeito “incapaz”. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) configura bem este contexto como mínimo social. Como direito, representa a possibilidade de reparação do dano decorrente da “incapacidade” desse sujeito de se incluir no mercado de trabalho e, para a família pobre, que requisita a incapacidade diagnosticada desse sujeito, representa o amparo social que permitirá uma sobrevivência mínima de todo o grupo familiar, igualmente excluído dos padrões de uma vida digna.

Instaura-se nessas configurações sociais do cotidiano o desafio que se impõe para um processo contínuo de reabilitação psicossocial: repensar a própria sociedade, seu ordenamento e as diretrizes das políticas que orientam um novo modelo de assistência psicossocial. Não é possível pensar novos serviços em uma rede de base comunitária articulada para o cuidado em saúde mental, se esta nova racionalidade estiver desarticulada da vida cotidiana e suas injunções – a violência, o mercado, as relações construídas pelos sujeitos para os enfrentamentos diários em seus contextos de vida. A demanda da população por respostas para o seu sofrimento ultrapassa a oferta de recursos técnico-assistenciais de uma Rede de Atenção Psicossocial. Contudo, é o movimento da vida em um território comunitário que pode se constituir como fundamento para a construção de princípios éticos e políticos que devem reger as mediações psicossociais de um trabalho em rede.