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2 REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS E

2.4 Da Itália ao Brasil: experiências iniciais acerca da Reforma Psiquiátrica

2.4.1 Brasil: trajetórias da Reforma Psiquiátrica

Experiências distintas marcam, historicamente, as trajetórias do Brasil e da Itália na reformulação dos seus modelos de assistência em saúde mental. Se, em 1978, a Itália já havia concretizado a experiência da Reforma e avançado, no que tange às garantias constitucionais que sustentariam a implantação do modelo antimanicomial, o Brasil ainda estava sob a égide hegemônica do asilo-manicomial.

Foi a partir da luta pela redemocratização da sociedade brasileira − iniciada no fim da década de 1970 e empreendida no campo da saúde pela organização de trabalhadores (entendidos aqui como profissionais de saúde) e usuários do sistema −, que se perpetrou a ampliação da consciência sanitária, compreendida por Berlinguer (1988, p. 197) como a “tomada de consciência de que saúde é um direito, mas, como esse direito é descuidado, consciência sanitária é a ação individual e coletiva para alcançar este objetivo”.

É com o Movimento da Reforma Sanitária que essa consciência passa a ser concretizada, com a interpelação do sistema de saúde vigente no Brasil, em seu caráter privatista, discriminatório e fragmentado, ancorado em uma lógica industrial- desenvolvimentista, implementada pelo regime autoritário então no controle do país (BERLINGUER, 1988). Esse novo espaço de atualização do projeto sanitário do país propiciou a emergência de outros atores importantes, o fortalecimento dos movimentos sociais e o protagonismo da luta pela Reforma Psiquiátrica.

Enquanto diminuíam as internações psiquiátricas em Trieste, no território brasileiro houve uma grande expansão do modelo hospitalocêntrico, e, com efeito, o aumento significativo de indicações para internações a grupos cada vez maiores da população. A instituição do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), no ano de 1966, marca profundamente as relações estabelecidas entre o Estado e a classe trabalhadora: o centralismo burocrático implementado pelos militares cria um sistema contributivo que resultava em um verdadeiro “apartheid social” entre os segurados do sistema médico e uma população indigente à deriva do sucateamento da rede pública.

Sob as determinações do capital financeiro internacional e de um governo militar, os seguros sociais representavam a delimitação entre a classe operária formal e os que estavam à margem dos postos de trabalho. Era condição essencial para os assalariados, por meio de contribuições, terem acesso às vantagens que pareciam favorecer a todos. No entanto, em seu conjunto, as medidas regulamentadas eram fragmentárias e discriminatórias, reproduzindo uma política social excludente e reprodutora das condições de classes (FALEIROS, 2006).

Com isso, cresceu o complexo médico-industrial. A política de assistência médica privilegiava a contratação de serviços de terceiros, em detrimento dos serviços médicos

próprios da Previdência Social (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1985). Essa configuração do modelo vigente de saúde pública tinha no setor privado sua principal clientela para a compra de serviços. Oliveira e Teixeira (1985, p. 211) apontam que, “em 1967, dos 2.800 hospitais existentes no país, 2.300 [eram da rede privada e] estavam contratados pelo INPS”. O regime autoritário era o agente regulador da sociedade. Foi sob a intervenção militar que se consolidaram as medidas de internação asilar com a privatização da assistência médico- psiquiátrica, o que condicionou o crescimento da demanda por esse tipo de atendimento. Crescia vertiginosamente a contratação de novos leitos em clínicas e hospitais psiquiátricos da rede privada conveniada (FONTE, 2012).

A “indústria da loucura”, que crescia vultosamente entre as décadas de 1960 e 1970, compatibilizava a lógica perversa do que preconizava a Constituição de 196721, em seu

art.163: as empresas privadas recebiam o estímulo do Estado para desenvolverem e explorarem, em caráter preferencial, as atividades econômicas. Dessa forma, os proprietários dos hospitais e das clínicas privadas tinham seus interesses protegidos e o Estado se mantinha como apoio e suplemento, assegurando o incremento dessas atividades. Conforme Fonte (2012), as clínicas contratadas não funcionavam condizentes com o caráter suplementar posto no texto constitucional, e, sim, integralmente às expensas do INPS, posteriormente assumidas pelo SUS.

Dessa forma, a fonte da receita era proveniente das internações psiquiátricas, remuneradas como diárias por cada dia do paciente interno. Nesse período, a Federação Brasileira de Hospitais (FBH)22, que surge no contexto do golpe militar (1964), é ator

relevante nos negócios da privatização e da exploração lucrativa na rede hospitalar. A proliferação da assistência psiquiátrica se transforma na maior fonte de lucros para os empresários do setor, que encontravam a viabilidade dos negócios na desresponsabilização do Estado, com a desqualificação de uma rede própria e a compra de serviços privados que prescindiam de tecnologia e recursos humanos qualificados (AMARANTE, 1995).

De acordo com dados apresentados por Amarante (1997, p. 166-167), o período que antecede o movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira traduz a enfática produção da loucura:

21 Sexta Carta Magna do Brasil e quinta da República, a Constituição de 1967 reuniu os atos institucionais e complementares

promulgados desde o golpe de 31 de março de 1964 e legitimou as ações do regime militar. Ela entrou em vigor em 15 de março de 1967, substituindo a Constituição de 1946, até então considerada a mais liberal da história do Brasil.

22 Fundada em 1966, a FBH representava o setor privado de prestação de serviços em psiquiatria [...]. Sua criação insere-se

no contexto do golpe militar de 1964 e era exclusivamente formada por “empresários da loucura” − investidores na área de hospitais privados da psiquiatria (AMARANTE, 1995, p. 110).

Em 1977, houve 195.000 internações desnecessárias; entre os anos de 1973 e 1976, houve um aumento de 344% no percentual de internações psiquiátricas, os leitos psiquiátricos privados contratados subiram de 3.034 em 1941 para 55.670 em 1978, enquanto os leitos públicos variavam de 21.079 para 22.603; o número de hospitais conveniados aumentou de 100 hospitais em 1965 para 276 em 1979.

A FBH tinha em seus quadros a representação maciça dos donos dos “hospícios”, aglutinando os mais arcaicos setores da saúde. Na década de 1980, o projeto de privatização impulsiona outro mercado, atraindo o empresariado para as modalidades de medicina em grupo e seguro saúde, mais rentáveis que os serviços de psiquiatria. As doenças crônicas e degenerativas são banidas desses novos serviços, que seriam financiados pelos próprios usuários e por recursos públicos oriundos das contratações de procedimentos médicos; as doenças mentais, consideradas onerosas para esses segmentos, passam a ser, diretamente, de responsabilidade do Estado e, indiretamente, dos que estavam vinculados ao sistema previdenciário por contribuições trabalhistas, à mercê dos contratos/convênios que ainda se mantinham através do Ministério da Saúde.

Contudo, esses dois fatos provocam uma desestabilização das relações contratuais que a FBH mantinha com o Estado. A iminente perda de poder por parte dos militares e a diminuição dos lucros ameaçam a entidade, que passa a se organizar corporativamente em defesa dos interesses privados dos setores ligados à assistência psiquiátrica. A crise da entidade se articula com o crescimento da medicina em grupo, que passa a ocupar espaços importantes no que diz respeito à captação de recursos públicos, através da oferta de serviços pagos por procedimentos efetuados. Ressalte-se que, nesse período, os hospitais já davam sinais de decadência em suas estruturas deterioradas. No entanto, a manutenção do hospital psiquiátrico como única alternativa ao tratamento dos insanos se mantinha intocada.

A década de 1970 anuncia o limiar do processo de redemocratização no país. Ao final dessa década, já havia uma ebulição dos setores populares da sociedade manifestando suas reivindicações e denúncias contra o autoritarismo da ditadura e das práticas violadoras exercidas no interior das instituições asilares. O poder/saber psiquiátrico estava sendo questionado, sendo crescentemente alvo de críticas nos espaços que se constituíam para o debate e discussão sobre o privatismo da saúde e sua política discriminatória de acesso.

2.4.2 Reforma Sanitária: coalizão de forças sociais na construção de um projeto coletivo de