• Nenhum resultado encontrado

Sociedade Industrial: afirmação do trabalho como valor moral e a inutilidade dos excluídos

2 REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS E

2.2 Loucura: a ideia que a define é a mesma que a legitima

2.2.1 Sociedade Industrial: afirmação do trabalho como valor moral e a inutilidade dos excluídos

A transição do Antigo Regime para a modernidade põe em evidência os paradoxos da liberdade tão aclamada pela Revolução Francesa. O trabalho consagrado como condição moral para a inserção no mundo social representava também uma maldição, que se perpetuava para além da condição servil e escrava a que estavam submetidas as populações errantes e desterritorializadas do século XIV − livres para o trabalho, mas incapacitadas para trabalhar nas formas prescritas naquela ordem vigente (CASTEL, 2012). Na emergência de uma sociedade pré-industrial, essa grande massa de miseráveis, disponíveis, porém não recrutáveis para os postos de trabalho, era alvo das intervenções repressivas e de exclusiva vigilância das autoridades, que temiam pela constante ameaça dessa franja marginal à ordem pública.

Como refere Castel (2012), os séculos XVIII e XIX despontam com o acelerado crescimento da utópica sociedade industrial. As questões sociais herdeiras de uma organização social se atualizam política e juridicamente na exploração do trabalho dos homens, no extrativismo agrícola e nas grandes propriedades privadas, por um mercado flexível e autorregulado, trazendo em si as promessas do progresso e da distribuição das riquezas nacionais.

A Revolução Industrial que alavancava o início da produção capitalista produzia novas tecnologias para o trabalho, criando máquinas substitutivas da mão de obra e produzindo relações injustas e violentas de trabalho, assim como “um exército de reserva”. O novo modo de produção ancorado por profundas contradições mantinha os trabalhadores presos ao estatuto social que vigorava naquele período: o trabalho, como condição obrigatória e moral de existência. No entanto, afunilava o ingresso ao mercado de trabalho, criando, também, necessidades especializadas que excluíam massivamente grande parte desse contingente.

Esse aspecto na transição das relações de produção que confere uma nova forma de organização societária ressalta a sistematização da condição dos que estavam à margem dos postos de trabalho: “os vagabundos”. Por essa designação, qualificavam-se todos os indivíduos que não estavam vinculados a uma ordem do trabalho, portanto, sem quaisquer

status e sem dignidade para usufruir de alguma proteção.

A pobreza e até mesmo a completa indigência não fornecem, absolutamente, títulos suficientes para se obterem os benefícios da assistência. São atendidos principalmente aqueles que não podem, por si mesmos, suprir suas necessidades, porque são incapazes de trabalhar. A desvantagem em sentido amplo (enfermidade, doença, mas também velhice, infância abandonada, viuvez com pesadas cargas

familiares), pode remeter a uma “causa” familiar ou social [...] assim como uma deficiência física ou psíquica) (CASTEL, 2012, p. 86).

A partir do século XVI, especialmente na Inglaterra, Castel (2012) se refere a uma jurisdição que passa a punir severamente, com prisões e execuções, a ociosidade, os sem- trabalho, os sem pertencimento a uma comunidade, os sem profissão. A desfiliação da ordem do trabalho e a não inclusão na economia vigente rompia o pacto social do Antigo Regime, baseado em valores morais que incluíam, além do trabalho, a religião e a família. Os deserdados dessa rede de sociabilidade são categorizados como ameaça à ordem pública por sua “inutilidade” e condenados ao trabalho forçado, quando levados às prisões, ou a circularem errantes em busca de uma ocupação. Nas sociedades pré-industriais, os/as loucos/as já configuravam um percentual estatístico significativo, misturados a tantos outros em condição de miséria e “dessocialização”.

No Brasil, homens e mulheres expulsos das relações de produção, que se estruturava através do regime colonial baseado na propriedade agrícola e produção de larga escala, vagavam em trabalhos esporádicos em que a mão de obra escrava se tornava inviável. Não escravos, pobres e desconfigurados socialmente, foram classificados como “vadios” os que estavam à revelia das elites que se ocupavam das atividades de interesse da Coroa Portuguesa. A vadiagem foi classificada nesse período como crime de contravenção, sendo punidos com detenção aqueles que não se enquadravam, segundo o Código Penal de 189013.

Circunscrevem-se assim, sob as bases capitalistas, as representações hegemônicas das classificações de anormalidade subjetivadas pelo seu principal critério: a pobreza, tida como ociosa, criminosa, deficiente e irremediavelmente condenada ao confinamento por sua inutilidade social naquela nova ordem. A sociedade do trabalho estabeleceu o parentesco entre as culpas morais e sociais, aprofundadas ao longo do tempo como dispositivos de controle das desordens da sociedade, com a necessária exclusão dos “incapacitados para o trabalho”.

2.2.2 O nascimento do hospício: absolutização do poder/saber psiquiátrico

13 No Código Penal da República, sancionado em 1890, a vadiagem passa a ser definida como uma contravenção e pode ser

condenado aquele que, segundo o famigerado artigo 399, deixar de “exercer ofício, profissão ou qualquer mister” com pena de prisão para este crime ou outros, considerados como passíveis de punição, como andar mendigando ou não ter endereço certo.

No decorrer do século XVIII, um novo cenário vai se consolidando face às transformações societárias a que o mundo assiste sob as determinações de um novo modelo econômico. Até a Renascença, a loucura estava confusamente universalizada em meio a tantas outras dessemelhanças humanas identificadas pelas legislações, que representavam a desordem, a periculosidade e a constante ameaça à ordem vigente.

O que vai se perfilando a partir desse período ressignifica o desatino, não mais adjudicado às teias dos “degenerados morais, vadios, fanáticos”, mas desarticulado daquilo que se entenderia como desvio, desrazão: “deixada sozinha e destacada de seus antigos parentescos, entre os muros do internamento, a loucura se constitui num problema – colocando questões que até então nunca havia formulado” (FOUCAULT, 1972, p. 417).

As sanções legais do internamento e as ideias iluministas que promoveriam a Revolução Francesa encontrariam seus desacertos na manutenção das cláusulas do enclausuramento. Se a ordem econômica privilegiava a acentuada produção nas engrenagens da industrialização, o aprisionamento relacionado com faltas morais precisava ser reduzido, favorecendo, assim, uma mão de obra livre de ser utilizada para as benesses das elites. O lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, em que a burguesia alicerçava seus interesses, não conjugaria “prisões” com o gozo dos direitos de “cidadania”. Assim, os alienados não poderiam simplesmente ser excluídos; seriam tratados, curados e reinseridos na sociedade, porém, isolados do convívio social pelo perigo que representavam.

Os princípios da Revolução pautavam-se, principalmente, no antropocentrismo e na defesa da ciência e da razão − tese pela qual se apoiará a psiquiatria −, atribuindo ao desatino, à desrazão, o status de doença mental e o asilo, conforme Amarante (1995, p. 491): “[...] espaço da cura da Razão e da Liberdade, condição precípua do alienado tornar-se sujeito de direito”.

Na França de 1790, as erupções iluministas sagravam na culminância da Revolução os direitos naturais e inalienáveis do homem, posto agora como livre e cidadão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão14. Além disso, as ambiguidades relacionadas entre proteger a propriedade privada e proclamar a liberdade e a igualdade do povo estavam também circunscritas ao destino que se daria aos alienados. As prisões decretadas nas instituições criadas até então para a segregação estavam sendo libertadas, exceto aquelas efetuadas e condenadas por crimes ou loucura.

14 Este documento, que se tornou um clássico para as democracias do mundo contemporâneo, foi aprovado no dia 26 de

agosto de 1789, pela Assembleia Constituinte, no contexto inicial da Revolução Francesa. Seus princípios iluministas tinham como base a liberdade e a igualdade perante a lei, a defesa inalienável à propriedade privada e o direito de resistência à opressão.

Em definitivo, com o desaparecimento do internamento, a loucura “solta e perigosa” é legitimada pela legislação: “A Lei 22.7.1791 reforça essa disposição, tornando as famílias responsáveis pela vigilância dos alienados e permitindo às autoridades municipais a adoção de todas as medidas úteis” (FOUCAULT, 1972, p. 420). O hospital para alienados ainda não existia, mas, entre os eleitos como escória da sociedade, os loucos permaneceram sem lugar, tecendo o fio amiúde da solidão e da estranheza que a violência manicomial pôde abrigar subsequentemente.

A modernidade inaugura a seleção necessária entre a pobreza produtiva e a miséria doente e indigente. A franca desarticulação entre as duas categorias alude às respostas de que a economia necessitava para sua organização, isolando a loucura definitivamente para alçá-la à categoria de doença mental; sua inutilidade se configura, assim, como o maior pressuposto para a transformação do internamento em asilo, espaço que foi sendo alicerçado e constituído pela conjugação, como refere Foucault (1972, p. 434), de “todos os gestos sociais e políticos, de todos os ritos, imaginários ou morais, que haviam conjurado a loucura e o desatino”.

A ambígua relação que se estabelece nesse período entre justiça e medicina institucionaliza a periculosidade dos insanos ao seu confinamento permanente; a admissão por meio de parecer médico e a autorização de um juiz organizam, em seus princípios apriorísticos da medicina, o hospital dos alienados.

Dessa forma, o hospício se estrutura em uma rede de saberes e práticas que reduz a experiência da loucura e suas singularizações às classificações científicas. O poder psiquiátrico vai se tecendo institucionalmente, estabelecendo a categorização e a caracterização das doenças mentais e, impondo por meio do tratamento moral, a relação que iria prevalecer entre médico e doente (CASTEL, 1978).

Phillip Pinel15 foi o primeiro a propor, no ramo da medicina, modificações no

tratamento destinado aos alienados. Sintonizado com os ideais iluministas, Pinel preconizava o tratamento moral e o isolamento para as manifestações da loucura, propondo que esta seria resultado de “disfunções mentais”:

[...] Pinel postula o isolamento como fundamental a fim de executar regulamentos de polícia interna e observar a sucessão de sintomas para descrevê-los [...]. Dessa forma, o gesto de Pinel ao liberar os loucos das correntes não possibilita sua inscrição em espaço de liberdade, mas, pelo contrário, funda a ciência que os classifica e os acorrenta como objeto de saberes/discursos/práticas atualizados na doença mental (AMARANTE, 1995, p. 26).

15 Médico francês, considerado pai da psiquiatria, propunha o manicômio como instrumento de tratamento e cura,

sistematizando as bases da psiquiatria. No século XVIII, Philippe Pinel propõe uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e os transferindo aos manicômios destinados somente aos doentes mentais. Vários tratamentos e experiências são difundidos pela Europa.

É a partir das experiências pinelianas que se fundam as bases institucionais do hospital psiquiátrico, com discursos e práticas médicas que irão marcar profundamente a perpetuação da exclusão da loucura. Sob os cânones científicos e rótulos atribuídos conforme suas enfermidades mentais, os pacientes eram objetificados e a internação assegurava-se muito mais como instrumento de controle e poder do que propriamente como campo de experimentação e tratamento.

O saber médico construído acerca da loucura, através da coerção, da patologização e de uma verdade enunciada sem interlocutores, utilizou-se tanto do poder disciplinar quanto da compaixão piedosa, que ainda se evidencia em algumas de nossas instituições e práticas assistenciais.