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Reabilitação psicossocial – origem, contrassenso e reconstruções na experiência da

3 REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL A PARTIR

3.1 Reabilitação psicossocial – origem, contrassenso e reconstruções na experiência da

reforma psiquiátrica brasileira

Eleger a reabilitação psicossocial como objeto de nosso estudo nos propõe um esforço epistemológico em evocar essa abordagem em suas diferentes matizes conceituais, desde sua relação intrínseca com o surgimento da terapia ocupacional à sua aplicação no campo da psiquiatria. Este percurso inicial orienta-nos na direção de uma perspectiva ética e na construção dos diversos sentidos produzidos e assumidos na concepção do novo modo de ofertar assistência em saúde mental na contemporaneidade.

O caráter polissêmico da palavra reabilitação já enuncia algumas questões no campo da saúde mental e suas repercussões sócio-históricas referentes ao processo de adoecimento e recuperação, sobretudo, dos que sofrem transtornos psíquicos. A palavra, bastante difundida na área da saúde, tem seu termo proposto em acepções verificadas no Dicionário Houaiss25,

como sendo:

Reabilitação (substantivo feminino); ação ou efeito de reabilitar (-se) [física, intelectual, moral, social, profissional, psicológica e materialmente]; recapacitação (...). 7. Rubrica: medicina, recuperação da forma ou função normal, após doença ou lesão. 8. Rubrica: Medicina: devolução do paciente, após lesão ou enfermidade, as suas atividades físicas e/ou mentais anteriores.

É recorrente identificar, no senso comum, o conceito de reabilitação como expressão vinculada à recuperação da funcionalidade adaptativa e ortopédica vastamente utilizada na legislação previdenciária no Brasil. Neste sentido, reabilitar tinha como fundamento recuperar ou readaptar a capacidade laborativa dos sujeitos, ressalte-se, os que estivessem sob a vigência de um contrato de trabalho. Até 1944, a reparação da função laboral prevista na legislação cumpria-se por meio de cirurgias ortopédicas e sessões fisioterápicas. Em 1967, vigora a reabilitação profissional como programa de prevenção de acidentes pela Previdência Social, custeada pelas empresas. A partir dos anos de 1990, observam-se mudanças substanciais, tanto no que se referem às políticas adotadas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), quanto ao perfil epidêmico das doenças ocupacionais com uma significativa incidência dos lesionados por restrições físicas pouco visíveis, tais como: Lesões por Esforços Repetitivos (LER), Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) e de intenso sofrimento psíquico (MAENO; VILELA, 2010).

25 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRACO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua

No tocante ao nosso estudo, interessa-nos ressaltar que a reabilitação no campo da psiquiatria esteve sempre atrelada ao conceito de “ocupação”, como defendida por Pinel, quando propôs um tratamento moral, punitivo para os pacientes com transtornos psíquicos por meio da distração pelo trabalho. Mais recentemente, o termo reabilitação ressurge como recurso terapêutico para retomada da funcionalidade do sujeito e reversão ou eliminação das sequelas do adoecimento, dando origem à terapia ocupacional e adentrando por outros campos de atuação profissional, como serviço social, fisioterapia, psicologia e fonoaudiologia (SIDRIM, 2010).

A transição do tratamento moral para o modelo médico redimensionou a função punitiva que assumia inicialmente a reabilitação, para uma proposta de caráter adaptativo e educacional. No campo da saúde mental, isso significou a aplicação de uma abordagem orgânica funcional utilizada nos fenômenos psíquicos que os reduzia às doenças mentais, passíveis de serem tratadas através de técnicas específicas que buscavam recuperar déficits graves e funcionais dos sujeitos. O conceito de reabilitação psicossocial já estava presente no campo da psiquiatria desde 1985, através da concepção desenvolvida por uma renomada associação, a International Association of Psychosocial Rehabilition Services (IAPSRS), que tinha como objetivo o estudo e a disseminação de práticas reabilitadoras. Sua perspectiva se pautava na medicalização e no ensino de habilidades e técnicas que possibilitassem ao sujeito em sofrimento psíquico se adaptar ao ambiente em que vivia, cumprindo bem tarefas que exigiam concentração e harmonização com a própria vida (SIDRIM, 2010). A inserção e a recuperação pelo trabalho produtivo, além do enfoque na estabilidade clínica dos indivíduos, representavam uma perspectiva mais ampliada no que diz respeito aos resultados esperados em um processo considerado reabilitador.

Essas práticas, assumidas por um conjunto de disciplinas, revelavam um modelo hegemônico em que prevaleciam processos distintos; a terapia se ocupava do sujeito classificado como doente mental e a reabilitação psicossocial tentava devolver sua funcionalidade (SIDRIM, 2010). A dimensão ética desse processo passou a ser discutida quando ficaram perceptíveis os pressupostos acríticos, tecnicistas e reducionistas, que destituíam o adoecimento psíquico dos seus determinantes históricos e sociais. A singularização proposta nos programas de reabilitação negava as diferentes dimensões da vida humana − política, social, cultural e afetiva −, identificando apenas o aspecto biológico como indicador da sobrevivência, de necessidades naturais e de readaptação ao modo do fazer social que prevalecia.

Nessa perspectiva, o debate que ancorou o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil tem sido conduzido para além da capacidade de formulação de políticas públicas de assistência em saúde mental e das garantias jurídicas e institucionais que ensejam a titularidade de direitos às pessoas com transtornos mentais. Discute-se a ressignificação de um lugar social para o sujeito em sofrimento psíquico, o que implica a revisão de saberes e práticas que legitimaram a doença mental como condição incapacitante do ser humano, justaposta às outras variáveis que concorrem para um padrão indigno de vida.

A complexa e multifacetada experiência de adoecer psiquicamente está ainda a exigir novos termos de uma contratualidade social que envolve a oferta de cuidado assistencial e terapêutico, assim como a desconstrução dos hospitais psiquiátricos, modelos paradigmáticos de supressão da vida e da liberdade. Seus efeitos não repercutem apenas no interior institucional, autorreproduzem-se no cotidiano da vida social que constrói um aprendizado de desprezo, intolerância e restrição de acessos e oportunidades na vida pública e familiar para com essas pessoas.

3.2 As dimensões ética e política da reabilitação psicossocial – a desinstitucionalização