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2 REFORMA PSIQUIÁTRICA: CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS E

2.4 Da Itália ao Brasil: experiências iniciais acerca da Reforma Psiquiátrica

2.4.4 Desinstitucionalizar: o ritmo da Reforma Psiquiátrica

A promulgação da Lei nº10.216 preconiza mecanismos claros e definidos para a concretização da Reforma Psiquiátrica, alinhada às novas diretrizes da política de saúde

mental sob a responsabilidade do governo federal, privilegiando o tratamento em base territorial (serviços comunitários). Algumas ações governamentais já sinalizavam para as grandes transformações estruturais que iriam se operar a partir do dispositivo legislativo:

Linhas específicas são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país. [...] a rede de atenção experimenta uma importante expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição hospitalar, onde a assistência comunitária em saúde mental era praticamente inexistente. (BRASIL, 2005, p. 08).

A rede substitutiva ao manicômio, constituída de seus diversos dispositivos – atenção à crise, residências terapêuticas, assistência psicossocial, centros para usuários em uso de álcool e outras drogas, ambulatórios e atenção básica –, vai se tecendo na gigantesca territorialidade brasileira, com suas características históricas, sociais e ambientais particulares. O desafio que irá permear continuamente a reconfiguração dessa política no interior da rede e os seus rebatimentos no planejamento das ações de saúde e nas relações de poder produzidas junto às populações adscritas nos diferentes espaços territoriais será o de alcançar, cada vez mais, o contingente da população que foi historicamente alijada da assistência digna em saúde mental.

A aprovação do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988 apresenta em seus princípios doutrinários uma nova concepção na redivisão territorial e geográfica do país, a fim de operacionalizar ações de saúde e abolir as iniquidades nas ofertas de recursos e de serviços distribuídos desigualmente nos estados e municípios.

As bases do novo sistema de saúde de caráter universal foram tecidas a partir da Reforma Sanitária nos anos de 1970/1980, quando o movimento produziu um diagnóstico do quadro crítico em que se encontravam os setores responsáveis pelos serviços ofertados à população, com disparidades regionais que apontavam, principalmente, para o desperdício de recursos, fragmentação e baixa cobertura assistencial com irresolutividade das ações que não previam as singularidades e necessidades das diferentes regiões (GONDIM et al. 2008, p. 3).

Para a política de saúde mental, impôs-se fundamentalmente ao que Santos (2007, p. 150) se referia como “geografização da cidadania”, em que o autor alude a dois pressupostos que devem ser levados em conta quando se trata do reconhecimento de todos como cidadãos – “os direitos territoriais e os direitos culturais, entre os quais o direito ao entorno”. Experimentar o “comum” em uma rede microssocial por meio da vida na comunidade. Não mais o hospício, mas os dispositivos de socialização que operam ao ar livre e produzem coletividade e aprendizados de tolerância: a fila na padaria, o transporte público, o crédito na

barraquinha, as conversas com os vizinhos, dentre tantas outras formas de confrontar o encarceramento manicomial. É no território de saúde que as ações de saúde mental se complexificam e se constituem campo de aprendizado para as equipes de saúde e as populações que buscam os cuidados ofertados.

O que a Reforma Psiquiátrica abrigou em seu interior paradigmático é um novo modelo de assistência em saúde mental que promove em suas bases programáticas e estruturais as mudanças subjetivas essenciais ao desmonte manicomial. Muitos dos ideais desse movimento estão condensados nas reflexões de Bezerra (2007, p. 247), que tão bem enuncia essa proposta:

Mais do que buscar a aceitação de uma política assistencial, o desafio nesse campo é produzir uma nova sensibilidade cultural para com o tema da loucura e do sofrimento psíquico. Trata-se de promover uma desconstrução social dos estigmas e estereótipos vinculados à loucura e à figura do doente mental, substituindo-os por um olhar solidário e compreensivo sobre a diversidade e os descaminhos que a experiência subjetiva pode apresentar olhar fundado numa atitude de respeito, tolerância e responsabilidade com aqueles que se encontram com sua normatividade psíquica restringida.

É justamente o sentido da desconstrução que aporta os pressupostos éticos contidos no processo de desinstitucionalização, por vezes compreendido como paradigma de encerramento da assistência hospitalar psiquiátrica para os serviços de base comunitária, apreendido paradoxalmente como oferta de desospitalização e desassistência.

A trajetória da luta contra as violações e desumanidades impingidas aos que experimentam uma existência marcada pelo sofrimento psíquico e com características especiais instiga a reversão de um construto que moldou o imaginário social a recusar a inclusão dessas pessoas.

A desconstrução, portanto, não perfaz apenas a remodelagem de dispositivos técnico- assistenciais; estes devem se ancorar em profundas transformações que confrontem a loucura e suas interfaces com uma sociedade restritiva, que constrói a diferença como aspecto inassimilável do humano, que cerceia a cidadania invalidando os recursos comunitários que devem competir para a reorientação de uma assistência singularizada pelos matizes socioculturais tão diversificadas de cada território.

Desinstitucionalizar (instituições, pessoas, comunidades, ideias e normatizações) convoca à contestação da cultura manicomial por meio de uma nova trama social que ultrapasse os discursos científicos de domínio hegemônico, repercutindo no investimento da dimensão subjetiva do sujeito com transtorno mental em articulação com seu entorno social e novas formas de contratualidade. Esse processo deve ser enriquecido continuamente pelo

debate público entre os diferentes segmentos da sociedade, constituindo-se campo privilegiado para a transversalidade de saberes e práticas e seus condicionantes político- assistenciais. Espaço para sustentação de uma lógica que subverte a simples tolerância e assimilação do Outro que se inclui não apenas pelos aparatos jurídico-institucionais, mas por uma sensibilidade social pautada por relações éticas que cuidam das diferenças, além de