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3 REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL A PARTIR

3.3 A Reabilitação Psicossocial como instrumento de promoção dos direitos humanos

A reabilitação psicossocial assume um caráter conceitualmente complexo e implica a composição de diversos saberes na reconstrução do sujeito com sua história, com sua cultura e vida social. A funcionalidade instrumental, característica de outras abordagens reabilitadoras, detém-se na reaquisição da capacidade laboral de um indivíduo e na reparação de um déficit funcional, privilegiando a técnica em detrimento da capacidade ética e social do sujeito de se utilizar de todos os recursos relacionados ao seu universo social. No adoecimento psíquico, esse tipo de abordagem se torna secundária quando confrontada com as demandas complexas de quem é acometido por algum tipo de transtorno mental. Essa condição, quando associada a tantas outras variáveis que compõem o cenário da vida do sujeito, não é vislumbrada por meio de diagnósticos, prognósticos e prescrições medicalizantes. Estes recursos, dissociados do campo ético e social, não irão interferir na vida dos que ainda permanecem privados do direito à saúde mental ou, ainda, os que estão sob a égide da exclusão quando suas identidades estão vinculadas à insanidade, à estranheza, à periculosidade e à irresponsabilidade civil.

Esse patrimônio discriminatório, passível de tratamentos degradantes e humilhações tem sido, até os dias atuais, as principais motivações pelas quais a Luta Antimanicomial se originou e continua como bandeira do movimento pelos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais.

Benevides (2007) elaborou um conceito relevante sobre direitos humanos, que por sua obviedade poderia se tratar de mais um apontamento posto nas cláusulas dos inúmeros tratados e declarações que evocam, garantem, promovem e protegem tais direitos. A autora enfatiza que:

Direitos humanos são aqueles comuns a todos, a partir da matriz do direito à vida, sem distinção alguma decorrente de origem geográfica, caracteres de fenótipo (cor de pele, traços do rosto e cabelo etc) da etnia, nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe social, nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual, ou qualquer tipo de julgamento moral. São aqueles que decorrem da dignidade intrínseca de todo ser humano. (BENEVIDES, 2007, p. 337).

No entanto, estes pressupostos se constituem marcas expressivas, cumprimento da exigência ética fundamental para se avaliar o quanto uma sociedade e seu sistema político efetiva seu processo democrático. Ao olhar para a população que durante os últimos dois séculos foi tutelada pelo hospital psiquiátrico, fica evidente que muitos dos que ainda se encontram em uma situação de ingresso precarizado ao mundo do trabalho, educação e saúde, ocorre pela ausência de estratégias e recursos adequados para o enfrentamento digno do

adoecimento psíquico. O que o manicômio produziu em cada individualidade, sequestrando a subjetividade e anulando cada singularidade, repercute no imaginário coletivo que se apropriou do objeto fictício – a doença mental (e a sua invalidez) adjetivada por uma cronicidade construída nas decisões que a define discriminatoriamente (SARACENO, 2011).

Na proposta ético-política e cultural da Reforma Psiquiátrica, a reabilitação psicossocial não se propõe como alternativa ao “escândalo manicomial” que foi enfaticamente publicizado pelos meios de comunicação e denunciado como lugar desumano e violador. A inclusão preconizada não irá se efetivar por uma simples transferência dos “enfermos mentais” dos insalubres e aviltantes hospitais psiquiátricos para espaços residenciais, serviços territorializados ou regresso para suas famílias de origem. E não é apenas o hospital psiquiátrico que cumpre essa função segregadora na vida dessas pessoas. Outras instituições da vida social podem reproduzir esse mecanismo com a mesma intensidade: a comunidade, a família ou, até mesmo, os novos dispositivos propostos pelo modelo de atenção psicossocial. O que diferencia o real investimento na reaquisição do poder material, afetivo e social que se reivindica como a afirmação de direitos e como resposta substitutiva ao modelo manicomial é a gestão das ações organizadas e efetuadas em rede. Como discute Saraceno (1999, p. 24), estas podem se evidenciar por serem “uma simples reprodução de uma lógica de controle e contenção como representar uma melhora real da qualidade do que se oferece ao paciente”.

O autor chama a atenção para os processos de reabilitação em que a normalização prevalece em detrimento da diversificação da norma. A criação de espaços em que a complexidade das experiências humanas de sofrimento é traduzida por diagnósticos e tratada por medicação corresponde à afirmação da inexistência da diversidade e das múltiplas possibilidades do sujeito ocupar seu espaço no mundo.

Para isso, Venturini (2010) conjuga desinstitucionalização e reabilitação como instâncias indissociáveis para a promoção de saúde mental, e a comunidade, lócus dos processos sociais que envolvem múltiplas redes de proteção, conexão e integração em um território humano, material e simbólico. Nesses espaços, diversificam-se ou se encerram todas as possibilidades do convívio com a experiência perturbante e desagregadora da loucura – a tessitura dos laços de solidariedade que se firmam como continente para o extenuante sofrimento mental e, por outro lado, o bloqueio comunitário, que se expressa na negligência e na desresponsabilização com o cuidado, ativando o estigma e a deserção social dessas pessoas.

Retomando as ideias principais da reabilitação psicossocial, o autor apresenta o que considera as três principais necessidades de uma comunidade na área da saúde, sem que

estejam compartimentalizadas, sob o risco de acentuarem a individualidade no sofrimento: a necessidade do tratamento que demandam respostas médicas; a resposta social e de assistência relacionada à moradia e ao trabalho; e, por fim, a questão existencial que consubstancia a experiência singular de cada sujeito referida à afetividade, à sexualidade, à autoestima e aos relacionamentos. Para Venturini (2010), estes últimos aspectos assumem um caráter relevante no cuidado ofertado, porque devem requerer estratégias que não estão codificadas institucionalmente e mobilizam recursos de reinserção social e reelaboração das redes relacionais. Refere, ainda, que as duas primeiras necessidades devem ser atendidas em um circuito assistencial que reúna organizações setoriais, mesmo que funcionem de forma separada.

O autor, em suas reflexões, enuncia um processo de desinstitucionalização/reabilitação que representa as próprias contradições contidas no tecido social em que políticas de cunho neoliberal, com acentuada ênfase no individualismo, desigualdades sociais e pobreza extrema conferem um funcionamento fragmentado entre redes sociais e instituições sócio-sanitárias.