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3 REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL A PARTIR

3.6 O protagonismo das famílias em defesa dos direitos humanos

É importante destacar, na trajetória que atravessa a Reforma Psiquiátrica brasileira, o relevante papel que cumpriram as famílias dos pacientes na luta antimanicomial nos anos de 1980. O MNLA ganhou amplitude e caráter de trabalhadores de saúde mental, para, posteriormente, contar com usuários e familiares como atores sociais centrais nas denúncias contra o tratamento desumano nos manicômios e, igualmente, reivindicar direitos de cidadania e tratamento digno.

O “Manifesto de Bauru”, primeiro documento oficial organizado por um grupo de trabalhadores no II Congresso de Saúde Mental, no ano de 1987, fundava a ruptura com a produção da loucura institucionalizada e convocava toda a sociedade e os movimentos sociais a lutarem contra o fim dos manicômios. O texto expressava uma vontade coletiva em desconstruir as estruturas opressoras da sociedade, invocando a destituição de todas as práticas manicomiais inscritas nos tratamentos discriminatórios e tirânicos ofertados aos pacientes psiquiátricos, negros, índios, prisioneiros, mulheres, adolescentes confinados em instituições e operários de fábricas.

O novo projeto de saúde mental anunciado por um novo protagonismo social que reunia trabalhadores de saúde mental, pacientes psiquiátricos e suas famílias propunha alicerçar direitos humanos sob a concepção de uma sociedade baseada na justiça social, na reinvenção de um lugar social de dignidade para a loucura, construído em bases comunitárias através de uma rede de assistência de cuidado integral e na recuperação dos laços sociais e familiares.

As famílias que se inseriam na luta em oposição ao hospital psiquiátrico assumiam o compromisso com outros atores sociais na construção da proposta pela desinstitucionalização e pela reabilitação psicossocial da vasta população de longa internação que ocupava os “[...] 98.000 leitos psiquiátricos do país em 1982, [...] mantendo uma proporção de 80% de leitos contratados e 20% diretamente públicos” (PITTA, 2011, p. 4583).

Não foi sem tensões que a vigorosa presença desses atores contribuiu decisivamente para a ruptura da hegemonia psiquiátrica. Conforme Delgado (2011), a experiência de diálogo com famílias dos pacientes institucionalizados à época da discussão do projeto da Lei nº 10.216 revelou o desamparo e o temor para com a superação do modelo hospitalocêntrico por um grupo de familiares adversários da Reforma. Organizados em torno de associações que surgiam no interior das instituições psiquiátricas, temiam a extinção do que representava a única alternativa de tratamento a ser substituída por uma então desconhecida proposta de assistência psicossocial, que seguia avançando em sua construção. Para o autor, um desamparo compreensível face às ameaças originadas no interior dos hospitais psiquiátricos em que realizavam suas reuniões.

Os anos de 1990 foram permeados por incertezas e problematizações acerca dos pressupostos éticos que deveriam sustentar um projeto de tal magnitude para a sociedade brasileira. Permaneciam os embates a respeito da privatização dos recursos do SUS, que, ao final da década, ainda destinava 90% dos recursos financeiros da saúde mental aos hospitais psiquiátricos. As internações involuntárias careciam de uma nova regulamentação, em

conformidade com o Estado Democrático de Direito, e as respostas que as famílias de pacientes graves aguardavam quanto à assistência que lhes seriam prestadas, estavam sendo ainda elaboradas e discutidas (DELGADO, 2011).

Precedendo à institucionalização de um novo modelo de saúde mental pública, a regulamentação da Lei Orgânica de Saúde, em 1993, inaugurou uma perspectiva contemporânea de proteção social às parcelas da população socialmente vulnerabilizadas, tendo como um dos seus eixos “a indispensabilidade da família no cerne das políticas públicas destinadas à proteção e desenvolvimento dos cidadãos, seja como porta de entrada e adesão aos propósitos públicos básicos (saúde, educação, habitação, emprego), seja como parceira na condução destes mesmos serviços” (CARVALHO, 2009, p. 11).

Com a sanção da Lei nº 10.216/2001, a inclusão da participação das famílias de pessoas com transtornos psíquicos na assistência em saúde mental se definiu como escopo fundamental para implementação dos serviços substitutivos. Em seu Art. 3º28, a convocação

das famílias no tratamento dos seus membros com transtornos mentais é clara e em consonância com todos os tratados, convenções e leis, em que família e comunidade ganham centralidade nas políticas de proteção social.

A investidura social desse dispositivo de Lei representa um avanço significativo, se considerado como essencialmente um dispositivo das políticas de saúde pública que deve beneficiar o sujeito de direitos, pessoa acometida por sofrimento psíquico, seja qual for a origem ou as circunstâncias do seu adoecimento, garantindo-lhe o direito ao tratamento digno e respeitoso. Ademais, o argumento político desse instrumento legal interfere cultural e socialmente nas respostas aplicadas em épocas anteriores, em que a reclusão em instituições psiquiátricas se dava como “medida de segurança” para a família e para a sociedade.

Para Silva (2010), o tratamento como medido de segurança no campo do Direito não tem caráter punitivo e o que deve prevalecer é sua função terapêutica. O autor considera que a mudança paradigmática da nova legislação de saúde mental consiste, principalmente, no foco do tratamento, que passa a ser ofertado no território, e no transtorno mental, reconhecido como uma questão de saúde pública e não mais de segurança pública (SILVA, 2010).

Ao analisar as transformações societárias introduzidas pela Constituição de 1988 na sociedade brasileira, Rosa (2003) aponta alguns aspectos relevantes que caracterizam o período de implementação e consolidação dos direitos consagrados na Carta, adversamente

28 Art. 3º - É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações

de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. (BRASIL, 2001).

afetados por medidas recessivas que produziram desemprego em massa, impostas pelo credo neoliberal: o arrefecimento dos movimentos sociais, com fortes rebatimentos no movimento sindical, e a limitação dos gastos públicos na área social, com consequente sucateamento dos serviços públicos e privatização das empresas estatais. A minimização do Estado e a precarização das políticas públicas provocaram um forte abalo nas experiências do SUS que despontavam no país sob a égide da municipalização e do controle social. Assim, a reorientação do modelo de atenção psicossocial já nascia seriamente ameaçada pelos presságios políticos e econômicos que sinalizavam para a desassistência e abandono social dos/as usuários/as e suas famílias. Outros aspectos reforçariam a arena de tensões em que estariam envoltos gestores das políticas públicas e as famílias – o crescimento dos grupos familiares chefiados pelas mulheres e uma maior inserção (em sua maioria, de forma precarizada) dessas mulheres no mercado de trabalho, com o agravamento das vulnerabilidades e da pobreza. A sobrecarga e o ônus da crise econômica refletem nas condições materiais e de reprodução social das populações mais pobres, repercutindo em precarização do cuidado domiciliar ofertado ao membro em sofrimento psíquico (ROSA, 2003).

Na crise que a sociedade experimenta em conceber os novos contextos familiares e o seu papel face à responsabilização do cuidado do sofredor psíquico, Silva (2007, p. 71) nos convoca a refletir sobre os dois lugares possíveis a que são remetidas as famílias quando em situação de assistência nos serviços de saúde mental – “culpada e responsável ou culpada e irresponsável”. O autor faz uma referência à forma como são designadas essas famílias nos serviços de assistência, quando convocadas a assumirem os cuidados dos seus membros enfermos psiquicamente, e às condições humanas e materiais insuficientes para o cumprimento integral dessa tarefa. Silva (2007) atribui a essas abordagens traços caracteristicamente de um modelo tradicional ainda não superado, quando as famílias eram culpabilizadas tanto pelo adoecimento quanto pela desassistência de seus parentes.

O “paradigma moral” pelo qual as famílias lutaram para abolir da vida dos seus parentes segregados, conforme o autor, parece se reproduzir no julgamento profissional que decorre da compreensão de que as tramas psíquicas manifestas nas crises dos/as usuários/as são produzidas no espaço privado dessas relações, sendo para lá que devem ser devolvidas.

Como eixo da Atenção Psicossocial, Silva (2007) defende que o trabalho que deve ser realizado com as famílias não é mera opção ou alternativa aos dispositivos de saúde mental e das equipes profissionais. Antes, a instauração de relações confiáveis, vinculares dessas famílias com as equipes profissionais cuidadoras, que por sua vez, devem estar sensibilizadas

para reconhecer a sobrecarga e cansaço desses familiares que lidam com a complexa tarefa de cuidar de uma pessoa com transtorno mental. O autor faz referência à importância da cuidadosa tarefa dos agentes terapêuticos em identificar nos circuitos relacionais do sujeito com transtorno mental pessoas ou o grupo sensível que amplia suas possibilidades nos modos de expressar ou se organizar psiquicamente. E, para isso, não ocupam necessariamente, as posições tradicionais requeridas apenas das famílias no modelo de assistência psiquiátrica anterior, tampouco assujeitadas ao cerceamento de sua função cuidadora.