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PARTE III: CIRCULAÇÃO E APROPRIAÇÕES POR MEIO DOS IMPRESSOS

Capítulo 7: As apropriações de Dewey e de Thorndike nos manuais pedagógicos

“O texto só tem sentido graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se conforme códigos de percepção que lhe escapam.”

Michel de Certeau

Temos o prazer de informar a V. S. que acabamos de publicar o livro de Dewey, VIDA E EDUCAÇÃO, traduzido por V S e delle lhe enviamos (...) 10 exemplares. Procuramos dar à obra feição material digna do texto. Como autores dois nomes dos mais illustres na pedagogia, certamente elle se imporá ao magistério dos paiz, garantindo assim grande sucesso de livraria. (Carta do editor Chefe da Companhia Melhoramentos a Anísio Teixeira; 3/10/1930; AT 28.04.27; CPDOC apud TOLEDO; CARVALHO, 2013, p. 10).

Assim informava o editor chefe da Melhoramentos sobre a publicação, em 1930, do primeiro227 livro de Dewey no Brasil, na coleção Biblioteca da

Educação, sob responsabilidade de Lourenço Filho. O livro, a reunião dos textos Interest and effort228 e The child and the curriculum229, era o resultado do encontro entre Anísio Teixeira e Lourenço Filho após o retorno dos EUA do primeiro. Lourenço Filho incumbiu Anísio Teixeira de escolher os textos de Dewey, traduzi-los e mediar o processo com os editores dos EUA.

Os trabalhos e referências a Dewey já circulavam no Brasil antes que a tradução de Anísio Teixeira viesse a público em 1930, fosse por meio das edições originais em inglês ou traduções em francês e espanhol ou por meio de palestras e cursos ministrados por educadores que realizaram estudos no

227 No prefácio que escreve para Vida e educação (DEWEY, 1959), Lourenço Filho informa

que, anterior a essa tradução, apenas um texto de Dewey havia sido publicado em português, em um folheto da União Pan-Americana. Ele não dá maiores detalhes sobre o folheto, mas acredito se tratar do mesmo que consta no livro inventário da biblioteca do IERJ, intitulado A influência de John Dewey nas escolas.

228 Publicado originalmente em 1913. 229 Publicado originalmente em 1902.

exterior ou viajaram em missão pedagógica. No entanto, a publicação de Vida

e educação inaugurou uma nova fase, a que se seguiram outras traduções de

textos de Dewey. Tais iniciativas se inseriam em um movimento maior de traduções de autores internacionalmente conhecidos, geralmente vinculadas a coleções pedagógicas de importantes editoras, como a Melhoramentos, a Editora Nacional, e a Livraria do Globo, esta última despontando no cenário nacional nas publicações voltadas à educação.

Nesse contexto são publicados dois livros de Thorndike, A nova

metodologia da aritmética e Princípios elementares de educação, ambos em

1936. O primeiro, publicado pela Livraria do Globo, uma editora gaúcha, e traduzido por Anadyr Coelho, professora da Escola Normal de Porto Alegre. O segundo, um trabalho em coautoria com Arthur Gates, foi publicado pela Saraiva, e traduzido por Haydée Bueno de Camargo, professora do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo. Tudo leva a crer que esses foram os únicos textos de Thorndike que foram traduzidos no Brasil.

A tradução dos originais não era a única forma de circulação das ideias de autores em voga, e uma série de manuais pedagógicos que faziam referência a Dewey e a Thorndike passaram a ser publicados. Cabe questionar o que foi traduzido de Dewey e Thorndike – considerando que as traduções também são formas de apropriação – e de que forma são apropriados por autores de manuais que se debruçam sobre a discussão acerca do ensino de aritmética.

Os impressos são os elementos privilegiados na análise das apropriações de Dewey e Thorndike no presente capítulo. Deter-me-ei, especificamente, na análise de quatro manuais, a partir dos quais exploro diferentes formas de apropriação: dois manuais de autores brasileiros, um de autor estrangeiro, e uma tradução de Thorndike. Em comum, todos são publicados por editoras brasileiras.

Duas dissertações de mestrado tiveram papel relevante na discussão apresentada no presente capítulo, por abordarem os manuais sobre ensino de aritmética que foram adotados nos Institutos de Educação do Rio e de São Paulo. Trata-se dos resultados das pesquisas de Almeida (2013) e Marques (2013), que auxiliaram na localização de fontes e na problematização do

197

objeto. Almeida (2013) investiga a matemática proposta na formação do professor primário no IERJ e no IESP na década de 1930. Para tanto, ele assume como fio condutor as produções de Alfredina de Paiva e Souza e de Antonio Firmino de Proença, professores das referidas instituições. Quanto a Marques (2013), ela tem como objeto de estudo as orientações dadas para o ensino de matemática por meio dos manuais pedagógicos. Os manuais selecionados por Marques (2013) foram: A nova metodologia da aritmética Thorndike; Metodología de la aritmética y la geometria – Margarita Comas;

Como se ensina a aritmética e Como se ensina a raciocinar em aritmética

Faria de Vasconcelos; Didática da escola nova – Aguayo; A aritmética na

escola nova – Backeuser. Apesar de Marques (2013) justificar a escolha de tais

manuais por suas presenças nos programas do IERJ e do IESP, há vestígios dos mesmos em diferentes regiões do Brasil, como apontado nos capítulos 5 e 6 e cuja discussão retomarei no presente capítulo.

7.1 Dewey e Thorndike nos impressos pedagógicos brasileiros

As apropriações nem sempre deixam vestígios, eis uma das dificuldades de se trabalhar com tal conceito. Nesse sentido, os impressos se constituem em uma opção para análise das apropriações que, por ventura, tenham deixado algum resquício que possa ser identificado. No entanto, mesmo em face dos vestígios, discutir as apropriações e reapropriações esbarra em dificuldades de outras naturezas como, por exemplo, determinar a lógica por trás das escolhas e das rejeições (BURKE, 2003) e analisar um discurso que se sabe resultado de processos sucessivos de hibridação que abrigam contradições e conflitos (CANCLINI, 2015; GRUZINSKI, 2001b).

Cronologicamente, as primeiras referências aos textos sobre ensino de matemática de Dewey e de Thorndike localizadas aparecem em revistas pedagógicas. No primeiro número da Revista de Ensino de São Paulo de 1903, McLellan e Dewey são citados em artigo de Arnaldo de Oliveira Barreto, na seção intitulada Crítica sobre trabalhos escolares. O texto de Barreto, com o título A propósito da arithmetica, é a segunda parte de resposta a críticas feitas por Cyridião Buarque. A primeira parte da resposta aparece no número anterior

da revista, publicada em 1902, e é encerrada no número seguinte, onde McLellan e Dewey voltam a ser citados na argumentação de Barreto (1903). O fato de Barreto ser o redator-chefe da revista esclarece o grande espaço destinado no impresso – ao longo de três números – à sua defesa das críticas de Buarque230.

Não é meu objetivo entrar no mérito da discussão apresentada por Barreto (1903), mas sim sinalizar os períodos e espaços nos quais as referências a Dewey e a Thorndike começam a circular no Brasil, especificamente no que concerne às suas publicações sobre matemática. No caso do artigo de Barreto (1903), o que chama a atenção é que ele já estava familiarizado com a discussão apresentada no The psychology of number oito anos após a sua publicação nos EUA.

Quanto a Thorndike, as primeiras referências localizadas aparecem na

Revista do Ensino de Minas Gerais. Em um artigo de Maurício Murgel (1929), o

autor faz referência ao The psychology of arithmetic. Outro artigo, publicado no ano posterior, faz referências às aritméticas de Thorndike231. Ainda, em 1933,

no mesmo ano da publicação do manual de Backheuser (1933) e do relatório de viagem de Isaias Alves (1933), Mario Casasanta publica um artigo em que discute a resolução de problemas, com base em Thorndike, mas sem fazer referências a alguma obra em específico.

Tais referências a Thorndike na Revista do Ensino podem ser resultado do retorno, em 1929, do grupo de professoras mineiras que estavam realizando estudos no TC/CU. Nesse sentido, além do envio do grupo de professores aos EUA, a Revista do Ensino também se constituiu em estratégia de difusão de novos modelos pedagógicos no cerne da reforma educacional mineira. Segundo Biccas (2008), a Revista do Ensino foi “um impresso pedagógico oficial, projetado para divulgar e fazer circular as diretrizes pedagógicas que

230 Tudo começou, ao que parece, a partir da apreciação que Arnaldo de Oliveira Barreto fez do

livro de Arthur Thiré, Arithmetica dos principiantes, sobre o qual teceu duras críticas, e foi publicada no número 4 da Revista de Ensino, em 1902. Considerando o teor da continuidade do texto de Barreto no número seguinte, Cyridião Buarque teria publicado em algum impresso críticas à apreciação de Barreto. Sobre o assunto, conferir Valente (2011; 2014b).

231 Trata-se do texto “Instrucções sobre o ensino de arithmetica (Do programma das escolas

normaes)”, sem autoria definida, no número 42 da revista. Disponível em: