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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

3.4 As aquarelas de Miguel Dutra: novas leituras

A partir do que foi desenvolvido até o momento, julgamos necessário apresentar uma nova leitura sobre as aquarelas do artista. Esta questão se tornou pertinente porque, para nós, Miguel Dutra utilizava a técnica da aquarela com um objetivo técnico. Em outras palavras, suas obras aquareladas faziam parte do seu método de aprendizado. Miguel, através desses trabalhos, estudava os modos de construção empregados até então.

Essa função das aquarelas de Miguel Dutra foi referenciada, ainda que indiretamente, na obra de Alexandre Eulálio. O autor, ao tecer considerações a respeito das peculiaridades da produção artística do século XIX, afirma que ―[...] a diluição da tradição artesanal é um fenômeno lento, que talvez ainda não se tenha encerrado de todo, tradição que se metamorfoseia, em várias situações, em um novo individualismo urbano dos pintores195‖. Esse ―novo individualismo‖, apontado por Eulálio, pode servir de ponto de partida para nossa análise das aquarelas do artista ituano196.

Consideramos Miguel Dutra um dos melhores exemplos do fenômeno artístico de tradição artesanal, cuja diluição, segundo Eulálio, se desenvolvia naquele momento. Como dito anteriormente, o artista manteve um forte vínculo com as ordens religiosas e, da mesma forma, também era adepto de uma prática artesanal. Miguel Dutra, assim, fabricava seus próprios instrumentos de trabalhos, de ferramentas até fabricação de pigmentos para as tintas das aquarelas.

Por outro lado, é incorreto afirmar que as novas dinâmicas da vida urbana não estiveram presentes na sua trajetória artística. A produção de Miguel Dutra esteve intimamente ligada aos ciclos econômicos, ocorridos na segunda metade do século XIX, que ampararam o desenvolvimento das cidades em São Paulo. Sua formação tradicional, diante desse cenário, garantiu ao artista o que Eulálio chama de ―individualismo urbano‖.

195 EULALIO, Alexandre. Tradição e Ruptura (panorama das artes plásticas). Escritos; organizadores:

Berta Waldman, Luiz Dantas. – Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora Unesp, 1992.

196

Vale a pena destacar que Miguel desenvolvia essa técnica ao mesmo tempo em que a fotografia se desenvolvia.

Miguel Dutra, portanto, usava a aquarela como meio para aprender as técnicas de construções elementares presentes nas cidades. Assim, o artista registrava não só as principais edificações, mas também os modos de arruamento e as suas respectivas morfologias. Como podemos observar na aquarela Rancho e a paisagem (Fig. 42 e 43), Dutra utilizou da aguada em tom terroso para destacar o esteio197 estrutural da taipa de mão sequenciada de um muro:

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Conforme definição de Lemos ―(...) estacas situadas nos cantos externos das construções, sobre as quais cruzam – se os frechais (...)‖. CORONA, LEMOS, 2017, op. cit,; p. 204.

Figura 42. Rancho e Paisagem. Aquarela sobre papel. Miguelzinho Dutra - Dimensões: 120 x 0,235. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Crédito fotográfico da Reprodução: Hélio Nobre.

Figura 43 Rancho e Paisagem. Aquarela sobre papel. (detalhe). Miguelzinho Dutra - Dimensões: 120 x 0,235. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Crédito fotográfico da Reprodução: Hélio Nobre.

Nas obras pertencentes ao Museu Paulista, podemos observar que Miguel Dutra representa detalhadamente diversos tipos de janelas, como as de Guilhotina com a parte superior fixa e a janela de duas folhas. Do mesmo modo, ele também registra as estruturas de carpintaria utilizadas nos telhados em tesoura. Por conta disso, suas aquarelas além de registrarem os locais retratados, também contribuíram para formação do vocabulário construtivo das obras arquitetônicas produzidas ao longo do século XIX.

A aquarela da Santa Casa de Misericórdia de Itu (Fig. 44) também merece destaque. Como apontado por Marcos Tognon, chama a atenção o fato de Miguel Dutra ter registrado edifícios em construção, como o caso da Santa Casa. Podemos ver, como indicado por Tognon, que a edificação é representada sem o revestimento exterior, o que permite a ―[...] adequada compreensão das taipas de pilão que ainda carecem de rebocos no basamento do edifício198― Abaixo, podemos observar o aspecto mencionado pelo pesquisador:

A obra Santa Casa de Misericórdia de Itu é uma peça importante para nossa reflexão sobre a atuação de Miguel no campo da arquitetura e construção. Esse edifício também aparece na aquarela Vista da cidade de Ytú (fig. 16). Na imagem a seguir, temos a edificação vista por outro ângulo:

198 Ibid, 2018,.p. 34.

Figura 44. Santa Casa de Misericórdia de Itu. Aquarela sobre papel. Data: 1847. Miguelzinho Dutra - Dimensões: 0,110 x 0,209. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

A compreensão do método construtivo dessa edificação foi primordial para a elaboração do projeto da Santa Casa da Misericórdia que Miguel Dutra realizou, anos depois, para a Vila da Constituição. Conforme a ata da Câmara Municipal da Vila, o projeto (com plano de obra e planta de construção) apresentado por Miguel Dutra à mesa administrativa foi aprovado em 1861(Fig. 46)199.

Nota-se que esse projeto de Miguel Dutra se inspira na Santa Casa da sua cidade natal, sobretudo, na disposição geral da estrutura e na planta prevista para o edifício. Seu projeto, no entanto, se diferencia pelo refinamento da fachada arrematada por um frontão — elemento clássico utilizado nos templos gregos e romanos200.

Da mesma forma, o tímpano, que geralmente recebia decorações e relevos, aparece no seu projeto tapado. Supomos que sua decoração provavelmente não havia sido proposta no primeiro plano de obra. Além disso, as cornijas compostas pelas modenaturas sugerem o ressalto volumétrico dos perfis empregados no entablamento superior. Destacamos ainda que, no projeto, as pilastras e fustes estão arrematados por capiteis dóricos. Esses elementos, para nós, evidenciam que Miguel Dutra dominava o vocabulário formal da linguagem clássica da arquitetura. Podemos notar esse traço na simetria dos arcos plenos da entrada e, também, na disposição das janelas e na distribuição dos vasos ornamentais no entablamento.

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GUERRINI, Leandro. História de Piracicaba em Quadrinhos – 2° Volume. Piracicaba, SP: Equilíbrio: Instituto Histórico e Geográfico – IHGP,2009. p. 25.

200 DICIONÁRIO Visual de Arquitetura. ESCUDERO, Lorenzo de la Plaza. GÓMEZ, Adoracíon

Morales, LOPEZ, Maria Luisa Bermejo. Desenhos: José María Matínez Murillo. Tradução e versão portuguesa: Digna Canal i Basegaña e Carlos Silva Lameiro. Quimera Editores, 2014.

Figura 45. Vista da cidade de Ytú. (Detalhe). Miguelzinho Dutra. Aquarela sobre papel. Dimensões 49 x 74,5 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figura 46. ―Planta e Fronte Exterior para Casa da Misericórdia‖. Desenho à Nanquim. Dimensões: 37, 8 x 48,7cm.Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes – Piracicaba

Como podemos observar, Miguel Dutra especifica a distribuição dos ambientes da edificação. Assim, ele estabelece onde serão as duas cozinhas, a sala de reunião para irmandade, a enfermaria para homens e mulheres, separadamente, as varandas, as dispensas, os quartos e, no centro do edifício, a Capela. Esse último cômodo, muito provavelmente, seria realizado por Miguel Dutra.

O plano de obras da Santa Casa de Misericórdia é, para nós, um prenúncio do item que trataremos a seguir, onde propomos refletir sobre a proveniência das encomendas de Miguel Dutra e a relação dessas com o ciclo do café.