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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

4.2 O vocabulário formal

[...] o Autor de qualquer Volcabulario não està obrigado a trazer todo o genero de vocabulos; porque estes ou são nomes de coisas, ou nome de pessoas. Por coisas se entende, tudo o que no mundo existe & he viabel, ou inviavel, espiritual ou material, temporal ou eterno.246

As palavras de Bluteau nos ajudam entender uma ferramenta essencial na produção artística: o vocabulário. Com base nas referências desse autor, podemos afirmar que a comunicação do artista se dá através de suas obras. Assim, será por meio da linguagem, seja ela escrita ou visual, que o artista se expressará.

Uma leitura atenta dos projetos e obras apresentadas em nosso catálogo sinaliza que Miguel Dutra possuía um amplo repertório arquitetônico e ornamental. Vemos essa característica expressa, por exemplo, nas soluções que ele empregava nos seus trabalhos. Miguel Dutra mesclava diferentes tipologias em suas obras. Em certos casos, ele se orientava por elementos daquilo que John Summerson247 chama de linguagem clássica da arquitetura; em outros momentos, seus motivos ornamentais se originavam de temas oriundos da segunda metade do século XVIII248.

Podemos observar que Miguel Dutra, de fato, dominava a gramática própria da arquitetura quando ele fazia uso das modenaturas. Esses acabamentos, que foram difundidos por meio de inúmeros tratados e manuais, estavam presentes na arquitetura europeia desde pelo menos o século XVI. Apresentamos, a seguir, uma prancha do

Breve Tratado das Cinco Ordens de Arquitectura, de Vignola, publicado, em Coimbra,

em 1787249. Ao lado, trazemos uma fotografia da fachada frontal da Capela do Passo, em Piracicaba, onde podemos visualizar as modenaturas de Miguel Dutra (Fig. 73 e 74):

246 BLUTEAU, Raphael. op. cit. p. 500

247 SUMMERSON, John Newenham. A linguagem clássica da Arquitetura. 4. ed. São Paulo, SP: Martins

Fontes, 2006. 148 p., il. (Coleção a). ISBN 9788533622715 (broch.).

248 Sobretudo pelos ornamentos empregados derivados da ornamentação rococó. 249

REGRAS das sinco ordens de Archtectura Segundo os principios de Vignhola. Com hum Ensaio sobre as mesmas orfens feito sobre o sentimento dos mais celebres Architetectos [...] Offerecido Ao Exmo e Revmo Senhor D. FRANCISCO DE LEMOS DE FARIA PEREIRA COUTUNHO. Bispo de coimbra [...]. COIMBRA, Na Real Impensa da Universidade Anno de 1787, com Licenca da Real Mesa Cencçonia.

Podemos ainda observar esses elementos em outros trabalhos do artista. Na imagem abaixo, da fachada exterior do edifício da Casa de Misericórdia, de Piracicaba, também estão presentes as modenaturas (Fig. 75):

Figura 73. Prancha 60. Regras das sinco ordens de Archtectura Segundo

os principios de Vignhola, 1787.

Figura 74. Fachada frontal. Capela do Passo em Piracicaba. Reprodução

fotográfica: Autora.

Figura 75. Fachada exterior - Casa da Misericórdia. Reprodução fotográfica: Autora.

Da obra apresentada por Miguel Dutra ao convento de Santa Thereza de São Paulo, resta- nos apenas o projeto para o retábulo. Infelizmente, devido à demolição do convento, no início do século XX, não conseguimos acessar o interior da edificação.

Por meio do esquema tipológico apresentado na figura 72, vemos o desenvolvimento da estrutura retabular a partir da base, corpo e coroamento. As modenaturas250 podem ser observadas no detalhe da cornija superior do retábulo. Além disso, também temos os ornamentos alternados, com motivos fitomórficos, entre a compoteira251 e a voluta invertida.

A alternância dos ornamentos no projeto indica que o artista apresentava, frequentemente, mais de uma opção para seus clientes. O repertório que Miguel Dutra apresenta em cada um dos arremates atesta que seu trabalho partia da resolução de questões relacionadas à ornamentação, e, da mesma forma, por meio do acompanhamento de obras que já estavam em curso.

Outro fator que indica que Miguel Dutra dominava os esquemas arquitetônicos e decorativos formais é que, em seus projetos, havia a possibilidade de anexação de outros elementos decorativos. No projeto de retábulo para o Convento de Santa Thereza, por exemplo, vemos as mesas dos altares podendo apresentar elementos fitomórficos e volutas, tanto na lateral esquerda, quanto na parte frontal do altar:

.

250 Sobre modenaturas Cf.: MOROLLI, Gabrieli. Le membra degli ornamenti Sussidiario illustrato degli

ordini architettonici con un glossario dei principali termini classici e classicistici Copertina flessibile Editore: Alinea Editrice, 1986.

251 A compoteira é um elemento ornamental utilizado durante o século XIX, apresenta-se geralmente com tampas

com formas de pináculos ou variações esféricas. Cf.: ARRUDA, Tainá Chermonte. SANJAD, Thais Alessandra Bastos Caminha. Os ornamentos de platibanda em edificações de Belém entre os séculos XIX e XX: inventário e conservação. Anais do Museu Paulista São Paulo, Nova Série, vol.25, n°3, p. 341 -388, setembro - dezembro 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v25n3/1982-0267-anaismp-25-03-341.pdf Acesso realizado em 03 de fev. de 2020.

Figura 77. Projeto de Retábulo do Convento de Santa Thereza – SP – Detalhe do entablamento e emprego das modenaturas. Crédito Reprodução: a autora.

Imagem 78. Projeto de Retábulo Convento de Santa Thereza – SP – Esquema tipológico. Crédito Reprodução: a autora.

A presença ou ausência de elementos incidiam, inevitavelmente, na quantidade de madeira e mão de obra, o que influenciava diretamente o custo da obra. Um elemento expressivo sobre essa questão é a presença, ou não, da estrutura escalonada realizada com madeira, denominada trono252. Em nosso catálogo, vimos que somente o projeto para Igreja de São Benedito de Limeira conta com mais de um patamar. O trono é sugerido pelo artista com características neoclássicas e, também, com formas retangulares no lugar das linhas curvas que normalmente eram empregadas nos tronos elaborados ao longo do século XVIII. Abaixo, reproduzimos a planta do altar-mor da Capela de S. Benedito (Fig. 79):

252

O trono, de acordo com a definição de Ávila, é uma ―espécie de pedestal, colocado no vão da tribuna do trono ou camarim do altar, onde se expõem imagens ou crucifixos‖. Cf.: ÁVILA, Affonso. Barroco

mineiro: glossário de arquitetura e ornamentação. Coautoria de João Marcos Machado Gontijo, Reinaldo

Guedes Machado. 3. ed. rev. ampl. Belo Horizonte, MG: Fundação João Pinheiro: Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. 231 p., il. (Mineiriana). Obras de referência. ISBN 858593008X (broch.).

Figura 79. [Planta do Altar mor da Capella de S. Benedicto da Cid° da Limeira em 1870]. Miguelzinho Dutra. Nanquim e papel. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes.

Outro elemento importante relacionado à arquitetura e ornamentação de Miguel Dutra pode ser observado nos seus projetos de arcadas253 (Fig.76). Nessas galerias, Miguel harmoniza os arcos plenos entre as partes da arcada254. Do mesmo modo, a pilastra e a chave do arco contam com ornamentos — conchas255 e folhas de acantos estilizadas — para a valorização estética da obra. Miguel, além disso, também apresenta diferentes opções de conclusões para o peitoril.

Não foi possível identificar o local que receberia o projeto da figura 76. No entanto, a partir de outros desenhos, vemos que Miguel projetava, com certa frequência, tais estruturas, como veremos nas figuras 77, 78 e 79. Este último projeto, foi elaborado para a Capela do Jazigo do Carmo, em Itu. Para esse local, o artista já havia elaborado outras obras, como o painel da Ressureição de Lázaro e também algumas carneiras (Fig.

39).

Também é interessante notar a permanência das modenaturas e a criatividade de Miguel Dutra para o peitoril. Como veremos, esses se apresentam ora com a estrutura fechada, ornada com elementos almofadados, ora conta com o gradeamento no parapeito, composto de balaústres curvos.

253 Derivação do termo italiano Loggia ou Lójia, o mesmo que galeria e pórtico abobadado. CORONA,

Eduardo. LEMOS, Carlos. op. cit., p. 302.

254 As arcadas, geralmente, eram empregadas para separar o espaço entre a nave central e naves laterais. 255 Invólucro calcário de certos animais aquáticos. A concha foi abundantemente utilizada durante os

séculos XVIII e XIX nas composições arquitetônicas e ornamentais, simboliza a água dos mananciais. Para saber mais ver: CORONA, Eduardo. LEMOS, Carlos. Ibid., p. 140

Figura 80 [Arcada]. Nanquim e papel. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Piracicaba – SP. Dimensões: 25,6 x 5,7 cm. Crédito Reprodução: a autora.

Figura 81. [Arcada]. Nanquim e papel. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Piracicaba – SP. Dimensões: 6,9 x 25,3 cm.

Crédito Reprodução: autora.

Figura 82 [Arcada]. Nanquim e papel. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Piracicaba – SP. Dimensões: 6,9 x 25,3 cm.

Crédito Reprodução: autora.

Figura 83 [Arcada]. Nanquim e papel. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Piracicaba – SP. Dimensões: 35,5 x 7,8 cm. Crédito

O amplo repertório gráfico de Miguel Dutra garantia que os arcos, de seus projetos, pudessem ter as mais diversas formas. No caso do primeiro projeto (Fig. 76), por exemplo, o artista usou o arco de volta perfeita — com apenas um centro — que, como sabemos, era frequentemente usado durante o neoclassicismo256 no Brasil.

Apesar da difusão de tais princípios, vemos que Miguel Dutra se valia de diversos referenciais para composição de seus projetos. Como podemos observar na arcada da figura 77, Miguel emprega uma estrutura de coroamento da arcada próxima a um arco trilobado, sendo o intradorso formado por três ―semi-lóbulos‖, ao invés de lóbulos completos257.

A variedade de soluções e adequações que vemos nos desenhos indicam dois pontos essenciais para a compreensão do vocabulário arquitetônico e ornamental de Miguel Dutra: primeiramente, podemos constatar, através desses projetos que, de fato, o artista conhecia os cânones e a linguagem clássica da arquitetura; em segundo lugar, nota-se que Miguel, ao elaborar seus projetos, não integrava totalmente as relações proporcionais, mas adaptava essas relações em diferentes formas.

Com base nessas afirmações e nos projetos de Miguel Dutra apresentados, demonstramos que o artista transitava entre o campo da ornamentação e da arquitetura. Assim, na sua atividade artística, Miguel exerceu não só a função de arquiteto, mas também ornamentava e era um exímio construtor. Em razão disso, seus projetos foram elaborados com uma autonomia considerável. Essa independência se manifestava também no seu vocabulário arquitetônico. Por conta da sua liberdade criativa, não podemos ―enquadrá-lo‖ como representante de um estilo arquitetônico específico. Na estruturação de suas peças retabulares, por exemplo, vemos linhas retilíneas e, também,

256 A partir do Primeiro Reinado, a arquitetura brasileira se valeu, fortemente, da revisitação do repertório

clássico. Ao mesmo tempo, incorporava, de forma processual, a realidade local. Os principais articuladores, da época, foram Auguste Henri Victor Grandjan de Montegny e Henrique José da Silva. Sobre a influência neoclássica na arquitetura brasileira: MENDES, Francisco Roberval. Arquitetura no

Brasil: de Dom João VI a Deodoro. Coautoria de Chico Veríssimo, William Bittar. 2. reimpressão Rio de

Janeiro, RJ: Imperial Novo Milênio, 2011. 179 p., il. (Arquitetura no Brasil, v.2). ISBN 9788599868812

Sobre a importância da Academia Imperial de Belas Artes: LIMA, Valéria Alves Esteves. A Academia

Imperial das Belas-Artes: um projeto politico para as artes no Brasil. 1994. 261f. Dissertação (mestrado)

– Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280969 Acesso em: 4 fev. 2020.

257

ESCUDERO, Lorenzo de la Plaza. GÓMEZ, Adoracíon Morales, LOPEZ, Maria Luisa Bermejo. 2014, op. cit. p. 93.

detalhes em branco e dourado. As especificidades desses ornamentos remetem tanto ao Rococó Tardio, como ao Período Neoclássico.

Recentemente, Mateus Rosada analisou as estruturas retabulares confeccionadas por Miguel. Em sua investigação, o pesquisador insere os trabalhos de Miguel Dutra dentro de uma classificação estilística, criada por ele, chamada Imperial258, cujo recorte

temporal abrange as produções paulistas entre 1820 a 1891.

Acreditamos que Rosada, certamente, busca categorizar as criações retabulares com elementos característicos do barroco e do rococó, com alguns princípios da arquitetura neoclássica. Consideramos, no entanto, que a influência da talha neoclássica, da Bahia, já estava presente em São Paulo desde final da década de 1850. Podemos citar o caso do retábulo-mor da Matriz Nova de Campinas, de autoria de Vitoriano dos Anjos Figueroa, finalizada em 1861259.

Demonstramos, em nossa pesquisa, que para compreensão da obra arquitetônica, decorativa e devocional de Miguel, não devemos levar em conta apenas as características formais empregadas em seus projetos. Miguel Dutra, assim como Vitoriano dos Anjos, representa um tipo de artista cujos trabalhos iam para além da ornamentação. Tanto Miguel Dutra quanto Figueroa eram responsáveis pelas obras construtivas dos locais de suas encomendas.

Apesar de Rosada apresentar alguns exemplares ―sem estilo definido‖, ele foi categórico em definir a produção de Miguel. Não acreditamos que a classificação seja o melhor caminho. A nosso ver, isso acaba por reduzir a versatilidade do vocabulário formal e ornamental de Dutra. Pelo o que foi apresentado, vimos que os projetos de Miguel Dutra manifestavam elementos do estilo neoclássico antes de 1850. Portanto, a afirmação de Rosada, de que a influência neoclássica só aparece em São Paulo após a década de 60, do século XIX, não se sustenta.

258 ROSADA, op. cit., p. 323. 259

BARRANTES, Paula Elizabeth de Maria. Catalogação do acervo artístico da Catedral Metropolitana

de Campinas: pinturas, esculturas, talha e detalhes arquitetônicos de 1840 a 1923. 2014. 242 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279649 . Acesso em: 24 ago. 2018.

Tomemos os projetos de arquitetura efêmera realizados, por Miguel Dutra, para a visita do Imperador, em 1846, a São Paulo (Fig. 84). Neles, vemos que o artista já havia assimilado o repertório neoclássico. As figuras a seguir, além disso, também constituem um registro importante da atuação de Miguel Dutra enquanto armador de gala para as festividades.

O ―arco principal‖, que seria posto no largo da Matriz de Itu, assemelha-se, estruturalmente, as varandas de aclamações usadas nas festas da capital do Império. Podemos observar, ainda, que as escadas laterais levam a uma espécie de varanda onde os convidados ilustres poderiam observar, de cima, a multidão.

Utilizando-se da estrutura do arco triunfal, Miguel Dutra realiza uma abertura de arco pleno cuja moldura contínua do intradorso constitui a arquitrave da passagem. Essa estrutura se assemelha 260 à obra elaborada por Araújo Porto Alegre para coroação de Dom Pedro II, em 1841 (Fig.85):

260 A Vista exterior do Largo do Palácio na aclamação do rei Dom João VI, no Rio de Janeiro elaboradas

por Augusto Taunay, Grandjean de Montigny e Jean Debret - organizadores da ornamentação do Rio de Janeiro para a aclamação de Dom João VI como Rei do Brasil, Portugal e Algarves, em fevereiro de 1818 também constitui importante herança tipológica para as estruturas efêmeras realizadas por Miguel Dutra.

Figura 84. Arco Principal colocado no largo da Matriz em Itu, por ocasião da visita de S. Majestado de D. Pedro II. Aquarela sobre papel. março 1846. Miguelzinho Dutra. Dimensões: 0, 143 x 0, 277. Acervo do

No arco de Miguel, os ornamentos e demais inscrições exaltam a figura do Imperador. Se observarmos atentamente, podemos notar que duas inscrições ladeiam o arco triunfal: do lado esquerdo, temos ―P. II‖ (Pedro Segundo), já no direito, está inscrito ―I. C‖ (Igreja Católica). No frontão, o tímpano conta com o brasão do Império ladeado de folhas de louro. Temos, além disso, duas cornucópias em cada lado do arco, simbolizando a riqueza brasileira. Também não podemos deixar de comentar da iluminação, já que ela era um elemento essencial para as festividades. No seu projeto, Miguel introduz, no intradorso do arco de passagem, uma estrutura metálica na qual se colocaria uma vela.

Outro elemento decorativo que nos chama atenção é a figura indígena, em relevo, que pousa sob uma rocha com a bandeira do Império em mãos261. O personagem, comentado por Alberto Martin Chillón, seria o Gênio do Brasil. Segundo Chillón, essa alegoria foi adotada na Península Ibérica, após a invasão napoleônica, com o objetivo de legitimar o modelo monárquico em contraposição aos ideais republicanos presentes nas repúblicas latino americanas durante o século XIX.

261 Também é possível associar a figura com o deus Netuno. Além disso, segundo Luiz Eugênio Leite, o

baixo relevo, de argamassa, realizado no frontão do Cassino Fluminense, por Severo da Silva Quaresma, Quirino Antônio Vieira e João Duarte de Moraes, em 1860, remeteria a obra de Miguelzinho. Cf.: LEITE, Luiz Eugênio Teixeira. O Rio que o Rio não vê: os símbolos e seus significados na arquitetura civil do centro da cidade do Rio de Janeiro / concepção, comentários e fotografias de Luiz Eugênio Leite. Ensaio de Nelson Pôrto Ribeiro. – São Paulo: AORI Produções Culturais, 2012.

Figura 85. Varanda da coroação de Dom Pedro II, Ideada por Manuel Araújo Porto – Alegre. Fonte: O Despertador, 12 jun. 1841.

O Gênio Brasileiro, portanto, representava o território brasileiro e, em determinadas situações, também fazia alusão à figura do monarca. Assim, de acordo com Chillón, ―[...] tanto o gênio quanto o Imperador são protetores do Brasil, os anjos tutelares, os dois são nomeados como gênios do Brasil, e suas funções se misturam, formando uma unidade simbólica que tenta unificar em torno dela a nação262‖.

A unidade territorial e a legitimação da monarquia foram temas recorrentes nas pinturas realizadas por membros da Academia Imperial de Belas Artes263. Durante o reinado de Dom Pedro II, as questões da preservação do território nacional e da conservação da unidade política foram centrais. O aparato efêmero de Miguel Dutra se insere nas temáticas desse momento, onde o Imperador buscava legitimar seu poder político. Afinal, não podemos esquecer que, em 1842, iniciaram-se as Revoltas Liberais. Podemos observar que a narrativa simbólica empregada por Manuel Araújo Porto, no ático do arco da Varanda da Coroação, se valeu de folhas de acantos estilizadas. Também vemos esses elementos em estruturas efêmeras, elaboradas por Miguel Dutra, para a visita de Dom Pedro, II. Apresentamos, a seguir, algumas dessas obras (Fig. 86 a

89):

262

Ibid.

263 Destacamos Pedro Américo e Victor Meirelles de Lima.

Figura 86. Desenho da Iluminação do Quartel em São Paulo, por ocasião da chegada de S. Majestado o Imperador D. Pedro II. Aquarela sobre papel. Miguelzinho Dutra. 1846. Dimensões: 0, 137 x 0,284. Acervo do

Figura 87. Primeiro arco feito em Itu para chegada do Imperador D. Pedro II, edificado fronteiro ao Cruzeiro de S. Francisco. Aquarela sobre papel. Data: Março/ 1846. Miguelzinho Dutra - Dimensões: 0,248 x 0,206. Acervo do Museu Paulista da

Figura 88. Arco para a chegada do Imperador D. Pedro II em Itu, em 1843. Aquarela sobre papel. Miguelzinho Dutra. 1846. Dimensões: 0, 305 x 0,195. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Crédito

Figura 89. Porta feita no pátio do Carmo, por ocasião da visita de S. Majestade a Itu. Aquarela sobre papel. Data: 02/03/1846. Miguelzinho Dutra - Dimensões: 0,26 x 0,20. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

As linhas retilíneas e a clareza da ornamentação, empregada pelo artista, demonstram o pleno domínio do vocabulário clássico da arquitetura. Vemos, por exemplo, o emprego de caneluras nas colunas da portada no pátio do Carmo de Itu. Além disso, nota-se a presença de vasos ornamentais que arrematam o frontão triangular. Tal estrutura é repetida no projeto de iluminação do Quartel de São Paulo. Porém, neste último, o arremate do frontal da varanda de aclamação conta com figuras escultóricas angelicais264. Podemos, ainda, observar uma possível continuidade na temática indígena no centro do projeto onde duas figuras, em genuflexão, elevam um retrato.

Para recuperar o legado de Miguel Dutra, devemos analisar não só suas aquarelas, mas também seus projetos realizados com tira de linha, papel e nanquim. Esses registros, além de guardarem a memória do trabalho de Miguel Dutra, também são documentos valiosos sobre a constituição do patrimônio religioso265, em São Paulo, na segunda metade do século XIX266.

Das 25 cidades elencadas, a partir das referências documentais e bibliográficas apresentadas na primeira parte de nosso trabalho, poucas apresentam efetivamente obras do artista. Nossas buscas pela materialidade de tais obras foram, na maioria dos casos, improdutivas. Muitas vezes, ao chegarmos às cidades, nos deparávamos com ruínas dos edifícios construídos ao longo do século XIX.

Destacamos o caso da Igreja Matriz Nossa Senhora da Penha, de Itapira, cuja construção, com taipa de pilão, se iniciou em 1837 e foi finalizada em 1857. Durante