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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

4.1 Ornamentação e arquitetura em Miguel Dutra

s conceitos apresentados por Vitrúvio, no Tratado de Arquitetura232, parecem sintetizar a trajetória profissional de Miguel Dutra na São Paulo oitocentista. Podemos destacar, por exemplo, a exortação feita pelo arquiteto romano àqueles que pretendem praticar a arte da arquitetura. Segundo Vitrúvio, quem almeja seguir esse caminho deve ser:

[...] versado em literatura, perito no desenho gráfico, erudito em geometria, deverá conhecer muitas narrativas e fatos históricos. Ouvir diligentemente os filósofos, saber de música, não ser ignorante de medicina, conhecer as decisões dos jurisconsultos, ter conhecimento da astronomia e das orientações da abóboda celeste233.

As informações apresentadas até agora sinalizam que Miguel Dutra possuía as habilidades apontadas por Vitrúvio. Como já evidenciado na segunda parte da dissertação, Miguel Dutra produziu obras no campo da literatura, da música e, também, escreveu sobre fatos históricos234.

232 VITRUVIUS Pollio. Tratado de arquitetura; tradução, introdução e notas M. Justino Maciel. – São

Paulo: Martins, 2007.

233 VITRUVIUS Pollio. Livro I. Capítulo I. Ibid., p. 62

234 Sua atuação nessas áreas está documentada, sobretudo, no Depósito dos Trabalhos, de 1847, e no

Memorial Fluminense do Commercio, de 1870-1873.

A

A relação de Miguel Dutra com a cultura letrada aparece nas suas anotações do

Memorial Fluminense. Ao comentar da sua viagem, realizada em 29 de abril de 1870,

ele nos revela as atividades que mais apreciava:

Sahimos as 6 horas chegamos a Jundahi - almocemos - fomos ver o movimento e trabalho da estação - armazes e vimos trabalhar o telegrafo elétrico, o q muito apreciei e as 4 horas da tarde entremos na locomotiva pª S. Plº vi a passagem do tunel - chegamos a S. Plº as 6 e 1/2 fomos ao Hotel da Europa - tomamos café, efomos apreciar a iluminação -musicas, discursos no largo da Academia p motivo da volta dos voluntarios da Patria.235

A partir de tais inclinações, podemos deduzir que os saberes adquiridos por Miguel Dutra foram manipulados e integrados às suas produções artísticas. Em outras palavras, acreditamos que suas obras gráficas exteriorizavam parte dos conhecimentos assimilados por Dutra ao longo de sua vida.

Apesar do conhecimento filosófico e musical de Miguel Dutra não ser o foco de nossa análise, podemos partir desses saberes para entender como, em uma região sem órgãos oficiais de ensino e formação artística, Miguelzinho conseguiu desenvolver suas capacidades e, ao mesmo tempo, alcançar um grau de erudição considerável.

Examinemos, assim, o álbum datado de 1841236. No manuscrito, além de apresentar uma série de desenhos e registros de plantas, Miguel também guarda cópias de retratos de personalidades que, provavelmente, constituíram a base da sua formação intelectual. A seguir, apresentamos algumas dessas figuras237 (Fig. 66 a 72):

235 DUTRA, Miguel. op. cit., [Anotações realizadas entre 1870 – 1873]

236 O documento ainda conta com o conjunto de heráldica que reproduzimos na primeira parte do texto. 237 Além dessas apresentadas, Miguel também realizou um retrato de Dom Pedro I, José de Bonifácio,

Bernardo Pereira de Vasconcelos (Vila Rica, 27 de agosto de 1795 – Rio de Janeiro, 1 de maio de 1850), Honório Hermeto Carneiro Leão (São Carlos do Jacuí, 11 de janeiro de 1801 – Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1856) , Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado da Silva (Santos, 1 de novembro de 1773 – 5 de dezembro de 1845), Martim Francisco de Andrade (Santos, 19 de abril de 1775 — Santos, 23 de fevereiro de 1844).

Figura 68. João Huss. Miguel Dutra, 1838. IC10713. Acervo do Museu

Paulista da Universidade de São Paulo - Museu do Ipiranga. Figura 67. Mozart. Miguel Dutra,

1836. IC 10715. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São

Paulo - Museu do Ipiranga. Figura 66. Voltaire. Miguel Dutra,

1836. IC 10716. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São

Paulo - Museu do Ipiranga.

Figura 70. Theodoro de Almeida. Miguel Dutra, 1836. IC 10712.

Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo - Museu

do Ipiranga. Figura 69. Estátua equestre de Dom

Jose de Portugal. 1832. IC 10708. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo - Museu

do Ipiranga.

Figura 72. Monumento ao Martírio de João Huss na Alemanha. Figura 71. 1832. IC 10729. Acervo do

Museu Paulista da Universidade de São Paulo - Museu do Ipiranga

Esses retratos, realizados a partir de cópias de gravuras, foram, possivelmente, consultados em materiais disponíveis em bibliotecas238. Acreditamos, com base na biografia de Miguel Dutra, que esses livros provavelmente pertenciam a alguma instituição religiosa, como a ordem franciscana de Itu.

Dentre as figuras retratadas, temos o compositor Wolfgang Amadeus Mozart239. Miguel Dutra certamente se inspirou em Mozart em sua formação. A música sempre esteve presente em sua vida. O artista ituano não só atuou no campo da produção musical, mas também fabricava instrumentos musicais.

Como apresentado na primeira parte do texto, Miguel Dutra era defensor de valores liberais. Sua visão política, provavelmente, se formou a partir da sua proximidade com o clero regalista. Assim, por conta de sua adesão a esses ideais, Miguel guardava, no álbum, um retrato de Voltaire240.

Ainda entre as personalidades ilustres registradas por Miguel, temos o reformador religioso João Huss241. Chamou nossa atenção o fato de Miguel ter produzido não só um retrato do teólogo excomungado pela igreja em 1410, mas também desenhado o monumento onde Huss foi executado em 1415 (Fig. 71 e 72).

Miguel também teve acesso a uma formação teológica consistente. Além dos elementos citados anteriormente, também podemos confirmar isso através da gravura do sacerdote Teodoro de Almeida242. Sabemos que Teodoro foi, além de escritor e filósofo, ―membro da Congregação do Oratório243‖ e, também, um dos intelectuais mais importantes na constituição do conhecimento enciclopédico português.

O manuscrito de Miguel Dutra ainda conta com uma ilustração, produzida pelo artista, do Monumento Equestre a Dom José em Portugal, de autoria de Joaquim

238 A formação das bibliotecas das ordens religiosas no Brasil ainda é uma área que carece de estudos. 239 Mozart nasceu em Salzburgo, na Áustria, em 1756 e faleceu em 1791, em Viena.

240 François-Marie Arouet, mais conhecido por Voltaire, nasceu em 1694, em Paris e faleceu em 1778, na

mesma cidade.

241 João Huss foi um reformador religioso natural da Boémia. Nasceu em 1369 e foi executado em 1415,

na cidade de Constança, na atual Alemanha.

242 Natural de Lisboa, Teodoro nasceu em 1722 e faleceu, também na capital portuguesa, no ano de 1804. 243Cf.: ALVES–FERREIRA, Joaquim Jaime B. Elementos para a história da construção da casa e igreja

da congregação do oratório do Porto (1680 – 1703). Revista da Faculdade de Letras da Universidade do

Porto. Porto, Lisboa, 1992. Pp. 379 – 406 e MAIA, Cristina. A livraria da congregação do oratório do

Porto (1765). Conferência proferida na B. P. M. P. a 12 de novembro de 1997, integrada nas comemorações do V Centenário dos Primeiros Livros Impressos no Porto. Texto disponível em:

Machado de Castro. Essa escultura foi posta na Praça do Comércio, em Lisboa, após o terremoto que devastou a capital portuguesa em 1755.

A partir do que foi exposto, percebe-se que Miguel, ao contrário do que sua fortuna crítica afirma, não viveu ―isolado‖ no interior paulista. O artista, apesar da falta de recursos e da marginalidade geográfica, teve acesso a produções artísticas e intelectuais estrangeiras. Sua bagagem cultural era, portanto, vasta e diversificada.

Vitrúvio, ao elencar os conhecimentos necessários para os arquitetos, também destaca que dominar o ―jurisconsulto‖ e a ―astronomia‖ era indispensável para o ofício. Conforme as anotações contidas no Memorial Fluminense, Miguel estava sempre atento às decisões do júri. Podemos notar, ao longo do manuscrito, inúmeras referências às questões jurídicas da época. Da mesma forma, existem várias menções às condições climáticas. Vemos, por exemplo, o artista dizer, em várias ocasiões, que ―fez bão dia‖ ou que ―fez frio‖.

Entre as definições de arquitetura apresentadas por Vitrúvio, no Livro I, verificamos que os ideais de ordenação e disposição, com base nos conceitos gregos, foram essenciais para as obras de Miguel Dutra244. Dentre essas concepções, podemos citar a ideae (aspecto exterior, forma distintiva, aparência), a Icnografia (planta de um edifício, no seu plano horizontal e geometral), a Ortografia (alçado ou imago ereta de um edifício) e, por fim, a Cenografia (representação em perspectiva de um edifício)245. Sendo assim, ao colocarmos lado a lado os comentários de Vitrúvio com a produção de Miguel Dutra, notamos que suas obras expressam a essência do ofício do arquiteto e decorador.

244 O principio basilar de representação do espaço, ou seja, capacidade de elaboração de planta, corte e

fechada estão diluídos nas obras de Miguel apresentadas em nosso catálogo.