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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

3.3 Itu e as memórias de Miguel Dutra

O manuscrito Depósito dos trabalhos, já mencionado na primeira parte da dissertação183, é, sem dúvidas, uma fonte privilegiada para compreensão da importância de Itu na segunda metade do século XVIII. O documento, além disso, também revela o quanto a presença das ordens religiosas foi importante para a formação dos artistas locais.

Miguel Dutra, ao tratar dos aspectos histórico-geográficos de Itu, parte não só de suas observações, mas também de várias referências bibliográficas. Podemos citar, entre elas, o dicionário elaborado por Caetano Lopes Moura, um importante escritor baiano que se exilou na França por vontade própria184.

O valor do documento também está em suas entrelinhas. Através delas, podemos observar o papel social dos artistas, entre o século XVIII e o XIX, em São Paulo. Da mesma maneira, notamos a estreita relação entre as produções artísticas e as ordens religiosas.

Esse vínculo pode ser observado não só na transferência de obras185 para Itu, por iniciativa dos franciscanos, como também pela formação artística local que ocorria, sobretudo, no âmbito das ordens religiosas. Entre os artistas instruídos por essas ordens, temos o próprio Miguel Dutra. Em suas memórias, o artista relembra as lições recebidas de seu mentor, o frei José de Santana Justina:

Não sendo filho de Itu, mas sim da Província do Rio de Janeiro torna-se para mim como Ituano. Veio para guardião do Convento de São Luis desta Cidade e aqui existiu para vários anos, tendo-se acatado seu tempo, o povo representou ao Provincial a tornar-lhe a deixar aqui ficar, o que foi anuído. Ensinou a muitos a musica, foi meu mestre de órgão, e deu-me muitas instruções na pintura. Foi muito caritativo para este povo, socorria a muitas famílias honestas com esmolas, foi quem ensinou a gramatica portuguesa, e fez com que a Senhora D. Rita Cândida Freire a pusesse a cadeira do sexo feminino desta cidade.

183 DUTRA, Miguel. op. cit., 1847

184Ainda sobre Moura, devemos mencionar que, além de enviar índices editoriais ao Brasil, também

recebeu de Dom Pedro II a encomenda de uma biografia. Cf.: CLÁUDIO. Sobrevivência de um escritor - Caetano Moura. Universitas, Salvador, (19, especial) : 29 - 43, 1978.

185 Devemos destacar as esculturas de Pedro da Cunha, cujas atividades se deram, no Rio de Janeiro,

durante o século XVIII. PASSOS, Maria José Spiteri Tavolaro. op. cit,, p. 101. 2015

Cf.: LEMOS, Vera Regina. Dois mestres imaginários: Simão da Cunha e Pedro da Cunha. Imaginária

Promoveu os melhoramentos, a concertos do Convento, foi muito festeiro no seu tempo se fizeram boas Semanas Santas, todas a festas do Convento. Foi o primeiro que deu princípio a fazer um piano, e fez, e existe em mão da D. Rita. Foi grande filósofo, pregador, insigne principalmente por suas obras muito bem escritas, muito bom musico, organista, e compositor, e muito bom poeta de que abaixo exporei algumas dessas produções, muito devoto principalmente de Nossa Senhora das Dores a quem todas as sextas feiras fazia suas devoções, quando ficou o Convento de São Paulo para o Curso Jurídico, conseguiu ele desse Convento muitas alfaias , paramentos, Imagens de lá para o Convento de Itu. Passados muitos anos foi reconduzido desta Cidade para o Convento da Corte a chamado do Provincial para lá prestar seus serviços. Desgostando-se não sei do que conseguiu de Roma o seu brive [sic], e desfradou-se, e retirou-se para uma fazenda de Vassouras, onde era muito estimado pelo dono, que o tratava com muito esmero, e delicadeza fazendo-lhe todos os gostos. Passados anos soube ter lá falecido: devo a este religioso alguma coisa que sei, pois bebi dele muito boas lições, e Deus o tenha consigo em sua gloria186.

Através desse registro de Miguel Dutra, podemos entender como se dava o processo de aprendizagem nos conventos franciscanos de Itu. Notamos, por meio dessas anotações, que a relação entre mestres e aprendizes era próxima. Além disso, percebe-se que, naquele momento, esses mestres dominavam várias áreas artísticas. Acreditamos que essa particularidade acabou reverberando na própria personalidade multifacetada de Miguel Dutra. No trecho a seguir, do manuscrito de Miguel, reproduzimos um poema escrito pelo frei José de Santana:

Decima187 – O tempo bão he passado

La se foi a mocidade Entrados já na velhice Sogeitos a Caduquice Vamos ver a eternidade Caro Amigo esta verdade

Elle torna sobresaltado: De virtude despojado Ser felis he grau demência;

E para fazer penitencia O Tempo bão he passado188.

186 DUTRA, Miguel op. cit, 1847 187

Trata-se da arte poética estruturada por uma estrofe com dez versos.

188 Apesar da produção literária, no âmbito religioso, não ser um dos objetos abordados em nossa

investigação, julgamos necessário mencionar a prática poética de um dos mestres de Miguel, sobretudo, pelo artista também ter sido associado aos autores paulistas notabilizados na publicação de Luís Correia de Melo em 1954. DUTRA, Miguel. op. cit. 1847

O caso de Miguel Dutra evidencia o elo existente entre os artistas e as corporações de ofícios. No caso específico do Brasil, as lições se davam nas oficinas189 e, de forma gradual, os aprendizes iam ganhando autonomia até se afirmarem como um artista autônomo.

Podemos constatar, através dos dados apresentados, que os saberes do frei José de Santana foram aprendidos por Miguel Dutra Como sabemos, Miguel Dutra, assim como seu mestre, também atuou nos campos da literatura e da composição musical. Infelizmente, o manuscrito não faz menção a quem teria lhe ensinado as práticas do desenho e da construção. Apesar disso, Miguel Dutra tece algumas considerações a respeito de artistas relevantes nesses campos. Entre eles, estão o padre Jesuíno do Monte Carmelo e seus filhos Elias e Simão. Este último, segundo as memórias de Miguel, era um artista tão talentoso como seu pai:

Filho do falecido Padre Jesuíno, herdou dele suas habilidades. Foi ele junto com seus irmãos Padre Elias, e Eliseu que completaram a obra de Nossa Senhora do Patrocínio, um dos mais brilhantes templos de Itu, ele tomou sobre si o peso, e cuidado das obras, e esplendida festas a Santa Virgem se fizeram em seu tempo, com a maior pompa, e aparato possível.

Era escultor [Ilegível]190 e artista na ordem de fogueteiro, que ele mesmo não fazia mais dirigia, fabricava órgãos e aos de Igreja do Patrocínio são ainda obra suas. Era muito devoto de Nossa Senhora, e para suas festividades nada poupava191.

A estrutura do Depósito dos trabalhos, como podemos perceber, é extremamente variada; se misturam, ao longo do manuscrito, versos, anotações gerais, desenhos de ornamentos e etc. Essa característica, no entanto, não tira o valor do documento. As informações a respeito de Itu e suas personalidades, presentes no texto, podem nos auxiliar em nossa investigação.

189 Jaelson Trindade discorre sobre a formação dos artistas a partir de um rígido sistema de corporações.

Além disso, também discute a alteração desse quadro diante da chegada da família real ao Brasil. Cf.: TRINDADE, Jaelson. op. cit. 1994

Também vale a pena destacar a contribuição do pesquisador Bráulio Gomes Felisberto. Cf.:

FELISBERTO, Bráulio Gomes. Francisco Xavier Carneiro: a trajetória, as etapas de produção e sua arte da pintura (1765-1840) 2018. 1 recurso online (515 p.). Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.

190 Ilegível, conforme transcrição de Anicleide Zequini podemos aferir [sofrível]. 191 DUTRA ,Miguel op. cit. 1847

No trecho abaixo, podemos ver o quanto Miguel Dutra se preocupa em registrar, em detalhes, as ruas da cidade. O que nos chama atenção é que o artista caracteriza não só a fisionomia das vias públicas, mas também aborda os aspectos sociais de Itu:

Tem as ruas seguintes: A Direita toda calçada o centro de pedras brutas, onde passão os carros, animais etc. os [dez] palmos unidos as casas são de lajes azuis, vinda da pedreira, que adiante descreverei, tendo a largura 4 palmos, e comprimento dez, é esta a principal rua desta cidade.

A rua da Palma, quase toda ela é pela mesma descrição, exceto o pátio do Patrocínio para diante, é uma das ruas que tem quase um quarto de légua desde São Francisco até além da Misericórdia, é esta rua lançante desde São Francisco, e do Pátio do Patrocínio ambos para o beco do inferno, onde se reúne ali todas as aguas de ambos os lados, e formão uma grande [ruína], que a câmara sofre muito em reparar.

A rua do Comercio, em outro tempo denominadas das Baratas, em outro tempo Rua Feia, ordinária, onde existia o pelourinho quase defronte das casinhas, onde se vendem as carnes, etc, é hoje bonita rua calçada, como as mais, e com bons edifícios.

A rua Santa Rita pouco tratada é mal alinhada.

A de Santa Cruz minha querida, onde nasci é larga, e tão bem muito extensa, porem a câmara nada cuida nela.

A rua das Flores, sem quase benefício e com muito poucas casas, e essas quase todas pertencentes a pessoas pobres.

A do Pirai que sai a maneira de uma meia esquadrilha para a esquerda, com casas também pobres e por esta rua é a direção para Jundiaí, Cabreúva etc. A rua do Patrocínio é muito ordinária sem benefício, nesta rua só tem de bom o Edifício da Igreja da Santa desta invocação.

A rua do Concelho é ainda pior.

A rua de Sorocaba, é pobre, porem alegre sua posição, e sai também em uma meia esquadrilha a direita, e dirige se a estrada para São Roque, Sorocaba, etc.192

As descrições realizadas por Miguel Dutra tem o potencial de contribuir para as pesquisas que tratam do desenvolvimento urbano de Itu no século XVIII. Podemos citar o estudo iniciado por Walter Toscano, ou, ainda, o projeto de pesquisa em acervos

192 Ibid.

cartorários de Anicleide Zequini. Além desse projeto, Zequini também apresenta outras considerações sobre essa temática193.

Para nós, Miguel Dutra escreveu sobre Itu com o objetivo de preservar a memória da cidade. Sua mudança para a Vila da Constituição, atual Piracicaba, no ano de 1848, sugere que, realmente, Miguel Dutra tinha o propósito de resguardar essas imagens da sua cidade. O artista, portanto, com essas anotações, registrou os aspectos sociais, políticos e urbanos de Itu para posteridade. Na passagem abaixo, do livro de fábrica transcrito por Guilherme Vitti, Miguel Dutra aparece entre os candidatos para as obras da Matriz de Piracicaba:

'[...] O Sr. Castanho indicou que, consultando o Dr. Felipe, este aconselhou que podia a Câmara nomear um encarregado de obras da matriz, por entendia que essa nomeação deveria recair em Miguel Arcanjo Benício. O Sr. Ferraz nomeou o Bento Manoel de Morais. O Sr. Castanho ponderou que o Sr. Morais mora no sítio e não tem a inteligência do Miguel, que entende de arquitetura, riscos de geometria e, por isso, poderá reparar qualquer defeito que possa aparecer na obra. O Sr. Leite concordou, porque pensou que o Bento era para Tesoureiro, por isso que tinha votado nele. Posto à votação, passou na forma da indicação do Sr. Castanho, contra o voto do Sr. Presidente e Ferraz194.

Miguel Dutra, ao se transferir para a Vila da Constituição, atuará, na segunda metade do século XIX, na construção das principais edificações da cidade. Entre elas, temos a igreja Matriz, a Casa de Misericórdia, o Theatro Santo Esthevam, a Igreja de São Benedito, a Igreja da Boa Morte e o cemitério proveniente da irmandade que ele mesmo fundou em 1853.

193 ZEQUINI, Anicleide. A pesquisa documental na reconstrução da História Urbana: a Vila de Itu. VIII

Seminário Nacional do Centro de Memória – Unicamp. Memória e Acervos documentais. O arquivo como espaço produtor de conhecimento de 26 a 28 de Julho de 2016 – UNICAMP, Campinas – SP. Disponível em: https://www.cmu.unicamp.br/viiiseminario/wp-content/uploads/2017/05/Pesquisa- documental-na-reconstru%C3%A7%C3%A3o-da-hist%C3%B3ria-urbana-a-vila-de-Itu-ANICLEIDE- ZEQUINI.pdf. Acessado em 14 jan. de 2020.

194 VITTI, Guilherme. A Igreja Matriz de Piracicaba através dos Tempos. Piracicaba: Dois Estudos.

Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. Piracicaba, SP - 1989. p. 41. Livro completo disponível em: https://www.ihgp.org.br/wp-content/uploads/2014/09/Piracicaba_Dois_Estudos_1989.pdf Acesso 14 jan. 2020