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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

3.5 Do açúcar ao café: deslocamento das encomendas

Como destacamos anteriormente, verificamos, em nossa pesquisa, que a produção de Miguel Dutra está diretamente relacionada aos ciclos econômicos que se desenvolveram, em São Paulo, na época. Sendo assim, notamos que as cidades de origem das encomendas eram, na maioria dos casos, protagonistas no plantio da cana de açúcar ou na cafeicultura. A diversidade das suas aquarelas é, certamente, resultado das diferentes características desses locais. Podemos evidenciar essa questão na obra aquarelada a seguir, atribuída à cidade de Itatiba-SP (Fig. 47 e 48):

Figura 47. Itatiba (Atribuído) Aquarela sobre papel. Miguelzinho Dutra - Dimensões: 0,150 x 0,320. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

No momento em que Miguel Dutra passava pela região de Itatiba, a localidade ainda era considerada uma freguesia201. Nesse local, o artista empregou as mais diversas técnicas nos seus trabalhos. Destacamos, primeiramente, a imagem de Nossa Senhora da Alegria (Fig. 50 e 51), atualmente em exposição no Museu de Arte Sacra de Itatiba, criado em 2008, na Igreja do Rosário. Além disso, podemos citar seu projeto do retábulo–mor, datado de 1849, e suas composições musicais e jaculatórias (Fig. 49) 202.

Por conta da riqueza oriunda da cafeicultura, Itatiba se desenvolveu rapidamente e, em 1876, foi elevada a categoria de cidade203. A partir de então, ela se transformou em uma importante área do Oeste Paulista. Com a chegada das ferrovias, em 1870, Itatiba cresceu a passos largos, atraindo não só investimentos, mas também novos moradores.

A presença de mais de uma obra de Miguel Dutra nessa cidade confirma nossa hipótese sobre o deslocamento de suas encomendas estarem relacionadas aos novos investimentos proporcionados pela cultura do café.

Assim, apesar de manter residência em Piracicaba, Miguel realizou uma quantidade considerável de trabalhos em outros locais. Como veremos em nosso catálogo, suas obras foram elaboradas, em sua maioria, para as cidades de São Paulo, Limeira e Itatiba. Nesses locais, trabalhou nas mais diversas funções na manufatura artística sacra. Miguel Dutra, assim, trabalhou como entalhador, arquiteto, músico e, até, armador de gala para festividades.204.

201

Conforme o decreto imperial de Dom Pedro I.

202 Oração de curta invocação.

, Cf.: PEREIRA Denis Rafael. Além de secos e molhados: o comércio em Itatiba: história e memória. Itatiba, SP: Berto, 2009. 493 p., il. ISBN 858692685X (enc.).

204 É preciso destacar que o ofício de armador de gala não foi devidamente estudado pelos pesquisadores

Figura 48. [Desenho pª o altar mór da Matriz da Fregª de Bellem [rasura] 1849 junto pª 2:000// 000 [ilegível] com trono]. Miguelzinho Dutra. Nanquim e papel. Dimensões 21, 9 x 32,6 cm. Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes.

Figura 49. Jaculatórias. Miguel Dutra. Nanquim e papel. Depósito dos trabalhos Miguel Archanjo Benicio Assumpção. Documento Manuscrito pertencente à Biblioteca Walter Way - Estação

Pinacoteca datado de 1847. Crédito fotográfico da Reprodução: autora.

Figura 51. Nossa Senhora da Alegria. Miguel Dutra. Madeira entalhada policromada. Miguel Dutra. Igreja do Rosário. Museu de Arte Sacra de Itatiba – SP. Crédito fotográfico da Reprodução: a autora.

Figura 50. Nossa Senhora da Alegria (detalhe). Miguel Dutra. Madeira entalhada policromada. Miguel Dutra. Igreja do Rosário. Museu de Arte

Em nossa investigação, localizamos um importante manuscrito de Miguel Dutra que atesta que suas encomendas, de fato, procediam de várias cidades. Dutra usou o

Memorial Fluminense205 como uma espécie de agenda para organização dos trabalhos realizados entre os anos de 1870 e 1873:

205

O Memorial Fluminense do Commercio, ou Folhinha Útil, era editado na cidade do Rio de Janeiro. Preferimos não citar as numerações das páginas, uma vez que o artista não as numerou.

Figura 52. Documento Manuscrito de Miguel Dutra. Memorial Fluminense. Biblioteca Walter Way – Estação Pinacoteca – SP. Crédito de reprodução: a autora.

Reproduziremos, nas próximas páginas, alguns trechos do documento206 para que os leitores possam visualizar parte da organização do trabalho artístico de Miguel Dutra. O Memorial Fluminense, tal qual como será reproduzido aqui, nunca foi apresentado antes. Portanto, o que veremos a seguir (Fig. 52 e 53) são elementos inéditos da vida do artista.

206 Alguns excertos do manuscrito são apresentados ora transcritos, ora reproduzidos como imagem para

que o leitor possa se aproximar da dinâmica adotada pelo artista em sua elaboração.

Figura 53. Documento Manuscrito de Miguel Dutra. Memorial Fluminense. Biblioteca Walter Way – Estação Pinacoteca – SP. Crédito de reprodução: a autora.

As únicas referências ao documento foram feitas, primeiramente, por seu bisneto Archimedes Dutra207 e, posteriormente, por Antônio Carlos Ferreira Veloso208. Em ambos, o manuscrito é abordado superficialmente, sendo tratado como uma espécie de ―diário‖ de construção da Igreja da Boa Morte de Piracicaba.

Ao localizarmos esse manuscrito, percebemos que o dito ―diário‖, contava com anotações não só da construção da Igreja da Boa Morte, mas também de outras atividades realizadas por Miguel Dutra em cidades do interior de São Paulo209.

Nessa espécie de ―agenda‖ adaptada, Miguel Dutra fazia as mais diversas anotações. No documento, vemos o artista comentar sobre o seu cotidiano e também sobre as suas encomendas. A partir de dados presentes no ―diário‖, foi possível verificar informações importantes sobre obras que serão apresentadas em nosso catálogo. Descobrimos, por exemplo, que a escultura de Nossa Senhora do Bom Parto foi iniciada em janeiro de 1872210 e finalizada em 27 de fevereiro daquele mesmo ano, segundo Miguel. Reproduzimos, abaixo, o trecho em que o artista comenta da obra (Fig. 54):

2° f acabei de encarnar a Sª do Parto q Sra do Rosario esta Pª obra Je de Mattos, e aq pª Limeira encomenda da [ilegível] Felix, passei a tarde bem incomodado com dores de corpo soube q o Dr Felipe disse muitas coisas na [ilegível] ao Pe Jose, e athe ameaçou com chicote p caousa d

207 DUTRA, Archimedes. op. cit. 1972

208 VELLOSO,Augusto Carlos Ferreira. op. cit. 2000 209

Sobretudo aquelas no interior da província conhecida como o ―novo oeste paulista‖. Cf.: ROCHA, Paula Melani. ZAUITH, Gabriela. A formação do "Novo Oeste Paulista" e o surgimento dos primeiros

impressos. C&S – São Bernardo do Campo, v. 34, n. 2, p. 211-232, jan./jun. 2013 DOI:

http://dx.doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v34n2p211-232.

210 ―3° f Amanheceo mto quente, falecerão e vão ser enterrado na B. Morte os Ir. Maneco Ferras, e

Francisco Rios. fui visitar o Mestre Thomas q está bem doente inxado, mto triste, o consolei – principiei afaser hua imagem da Sra do Parto pª a Limeira‖. Dutra, Miguel Archanjo Benício da Assumpção.

Memorial Fluminense – Folhinha útil para comerciantes e capitalistas. Pertencente ao acervo da

Biblioteca Walter Way – Estação Pinacoteca – SP. [Anotações realizadas entre 1870 – 1873].

Figura 54. Documento Manuscrito de Miguel Dutra. Memorial Fluminense. Biblioteca Walter Way – Estação Pinacoteca – SP. Crédito de reprodução: a autora.

ilegível] não apreciei isto, pois nenhum direito tem de encostar aninguem: hoje fez manhã fresca, mto carlor a tarde.

3° f Sahi com Miguel e fomos a Limeira levando as peças p° o altar do B Js - o Cam° estava bão, choveu ao ribeirão Jose Brisida [ilegível] aguas q nos molhou e na ponte do veio adiante do Camargo descarreguemos as peças ponto pª outro lado, passamos com agua tão bem.

4°f Fomos pª collocar o altar, e não o fizemos pr não tr vindo o ouro q encomendei do Rio - por isso almoçamos e tornemos a voltar - a noite choveu muito.211

A transcrição apresentada demonstra uma intensa atividade de trabalho em Limeira, a partir da década de 1870, e, também, comprova que Miguel Dutra era auxiliado por ajudantes, entre os quais estava seu filho Miguel Ângelo. A partir dessas informações, podemos entender um pouco mais sobre a rotina do artista.

A diversidade de atividades exercidas por Miguelzinho atestam que ele tinha pleno domínio das manufaturas. Com base nessas anotações, notamos que Miguel conhecia todas as etapas do processo de confecção das obras, da busca pela matéria prima correta até o desenvolvimento dos mínimos detalhes dos projetos. Percebemos, além disso, que ele também buscava ensinar seus auxiliares. Os exemplos dessa conduta são vários.

Com base no manuscrito, vimos que, no caso do douramento a ser realizado no altar de São Benedito, em Limeira, foi o próprio Miguel Dutra que encomendou as folhas de ouro para a obra. No trecho abaixo, de suas anotações do dia 26 de Abril de 1871, o artista reclama do valor das tintas em Limeira:

Cedo fomos dar principio a pintura - comprei tintas he tudo mais caro nesta cidade choveu muito he meio dia por isso não pude voltar para Piracicaba fui ver Comp. Juca e Gene [ilegível] - recebi do Ir Felix 50 reis em conta do q me resta do altar q fis pª S. Benedito em sua igreja.212 Acreditamos que Miguel Dutra tomava a responsabilidade pelo fornecimento de material para suas obras. Tal atitude não era habitual entre os artistas, principalmente no caso de obras públicas. Podemos citar o caso da construção do Theatro Santo Esthevam, fundado em 1871, em Piracicaba. Dutra participou da primeira fase da construção e, no

211

Ibid. [Anotações realizadas entre 1870 – 1873]

manuscrito supracitado, relata sua participação na administração das matérias primas para o teatro: ―Principiarão os carpinteiros a trabalhar no Theatro, vierão [sic] as madeiras todas aparelhadas — fez tarde quente prometendo chuva‖ 213.

No trecho, o artista toma nota do recebimento das madeiras aparelhadas. Esse material receberia um tratamento especial para deixá-lo com uma superfície lisa e sem imperfeições. Tal procedimento era empregado em madeiras que, geralmente, ficariam expostas para, depois, receber aplicação de verniz ou pintura214.

É interessante notar que os elementos fundamentais, relacionados à matéria prima de trabalho do artista, também estão representados em muitas de suas aquarelas, como na vista de Pindamonhangaba. Na aquarela, é possível observar os troncos de madeiras dispostos no rossio da cidade (Fig. 55 e 56).

213

Ibid. [Anotações realizadas entre 1870 – 1873].

214 Sobre os procedimentos da construção e carpintaria: OLIVEIRA, Valério Martins de. Advertências aos

Modernos que aprendem o Officio de Pedreiro e Carpinteiro – Offerecidas ao Senhor S. Joseph, patrono do mesmo officio, venerado na sua paroquial igreja desta Cidade de Lisboa. Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real. Com todas as licenças necessárias. M. DCC. LVII.

Figura 55. 5ª. Vª Pindamoinhangaba. 3 legoas adiante de Taubaté tirada o Occidente. Miguelzinho Dutra (atribuída). Dimensões: 26,7 x 41,9 cm. Aquarela sobre papel. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

De acordo com Carlos Lemos215, o rossio era um espaço importante na constituição da vila. As madeiras representadas por Miguel Dutra eram, portanto, parte da área que determinava o perímetro urbano. Esse solo de uso comunitário era marcado por um amplo espaço onde, normalmente, as mercadorias entravam nas cidades. É nesse mesmo ambiente que o artista representa as vigas de madeiras aparelhadas (Fig. 56). A presença desse material no local indica que, muito provavelmente, elas seriam empregadas em uma obra de grande porte, como uma igreja ou até mesmo a Câmara Municipal de Pindamonhangaba.

Selecionamos algumas anotações sobre encomendas provenientes de outras localidades como Jaboticabal, Capivari, Descalvado, Serra Negra e São Carlos. Com isso, queremos evidenciar o caráter itinerante da produção de Miguel:

215

Lemos afirma que as vilas surgiam atreladas ao ―rocio‖. Para o autor, o termo deriva, provavelmente, da palavra ―roça‖, que remete a um terreno de uso coletivo sob qual se envolviam as moradias. Nos dicionários modernos, a grafia adotava é ―rossio‖ ao invés de ―rocio‖. Cf.: LEMOS, Carlos A. C. Como

nasceram as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2016. Outra referência fundamental sobre o

assunto: REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do

Brasil: (1500/1720). São Paulo, SP: [s.n.], 1964. 205 p., il.

Figura 56. 5ª. Vª Pindamoinhangaba. 3 legoas adiante de Taubaté tirada o Occidente (detalhe). Miguelzinho Dutra (atribuída). Dimensões: 26,7 x 41,9 cm. Aquarela sobre papel. Pinacoteca

3 de abril de 1871

Choveu pouco - Tive recado da obra minha de S Carlos pedindo q eu vá logo depois da Semana Sta pª determinar a obra da Matriz.

17 de abril de 1871

Fui a Missa dos Prazeres, e toquei órgão, almocei e segui mª viagem pª S. Carlos do Pinhal com meo filho Miguel cheguei a tardinha no Rio Claro, fui pernoitar na Casa do Ir. Almeida Carpinteiro, tratou-nos mto bem - a noite fui a casa de Jose Bernardes meo

discipulo, o q veio pª fazer varias Imagens pª Bellem do Descalvado.

18 de abril de 1871

Por esperar ao Ir Joaquim Antonio da obra demeo [ilegível] 9 e 1/2 pª seguir pª Limeira afim de dar explicacoes sobre altar de S. Benedito q lá tenho que assentar e es [ ilegível ]

erguido - Sahi, fui jantar no Pinhal, cheguei a limeira no escurecer - passei a noite encomodado com dores pelo ventre, porem de meia noite pª diante melhorei, e dormi - Não

houve juri pº falta de gente.

19 de abril de 1871

Cedo levantamos, fui a casa do Inho almoçamos com elle, me foi logo ver os socios da obra pª tratarmos a respeito do plano e receita - fomos ver Pe Fabiano lá estivemos 1 hora,

pegamos nossos animais pª o pasto do Pe demos milho e, depois do jantar conversamos sobre a obra, e dei a receita da madeira.

8 de outubro de 1871

Acabei hum oratorio de talha pª B Jesus do Modesto encomendado pelo Sr Bento Manoel hoje Barão de Campinas - as 10 horas sahimos pª Pir[acicaba]. jantemos no Pinhal e sahi

estava o Pe João Cipriano - cheguei em casa as 4 da tarde e achei mª fª boa.

9 de novembro de 1871

Depois do almoço fui ao sitio do Barão de Campinas jantei e fui ao sitio do seu Pedro ver os tijolos q está fazendo pª obra q [ilegível] a tarde choveu pouco voltei as 4 horas.

11 de maio de 1872

Toquei a missa ladainha de N. Sª tem feito frio e choviscou grosso todo o dia. recebi carta do Ir Francisco de Campos de Campinas sobre o altar.

10 de julho de 1872

Amanheceo bonito o dia fes frio - paguei ao Theodoro Fran 24 hh o que mandei p Benedito meo escravo de hu capado q comprei p festa: Veio Marica passar o dia aqui - encarnei hum

S. Sebastião Pª Anna de Paranahyba. veio morto hu crioulinho d da [ILEGÍVEL] q foi moido em engenho.

30 de julho 1872

bonito dia e não fes frio - acabei a Imagem da Conceição q fis pª o Rio Preto encomenda do Ir Joãozinho Braga.

26 de setembro de 1872

Toquei a missa do SSmo acabei dois oratorios hum p Capella de Cerra Negra, e outro pª Marquesa.

4 de novembro de 1872

Fes dia bonito a creolinha mª esta melhor a noite escrevi cartas pª Campinas hua ao Ir Chico de Campos Andrade pª q mande buscar o Altar e outra ao Ir Joaquim Correa de

Mello enviando -lhe doze livros de Botanica pª elle compra-los de mim.

17 de novembro de 1872

Não houve missa na Boa Morte o calor he mto hoje - pouca gente houve na cidade choveo plos arredorres.

Escrevi hua carta pª Amparo ao Ir Jose Custodio do Sª sobre hu vale de 300 HH q do hu devedor ao Francisco da Sª sobre hu vale de 300 H q do he devedor ao Ir Francisco Pereira

dos Santos a 12 anos

14 de abril de 1873

Amanheceo o tempo frio e com cerração, e eu bem mo [ilegível], e varios doentes em casa - escrevi ao Ir. Emenegildo das Araras pelo [ilegível] dando lhe ordem pª ele entregar a Favo [ilegível] 350 em parte da Imagem de B. Js q fis ª Villa - Sendo entregue a Policia o

cadaver do Crioulinho o delegado [ilegível] o corpo de delicto e inquerito testemunhas.

5 de setembro de 1873

Toquei a Missa das Dores - recebi huma peça de [ilegível] bordada de prata q o Julio de Mattos trouxe pª N. Sª da B. Morte, anoite fui a casa do Compº Je Romão p seo chamado -

faloume do casamento da Francisca, tomei hum copo de vinho e disse p q sejão felises - escrevi cartas ao Mano Claro, e ao Vigro de Indaiatuba afavor do [ilegível] Zacarias q foi daqui preso como se [ilegível] e peço q intervem pª sua defesa - remeti a Sª da Conceição pª Jaboticabal encomendada plo Joãozinho Braga recebi os 250 H de sua importancia.

3 de outubro de 1873

fui a missa das Dores, e assisti missa dita pelo Pe João Lopes pla alma de seo falecido Pae - O Pe quer q eu va fazer dois altares lateraes em Capivary tenho de tirar o desenho pª dois

altares - chegou o corpo do falecido Salvador Zinho216.

Essas anotações diárias de Miguel Dutra atestam a transitoriedade de suas encomendas, e, do mesmo modo, confirmam que esse deslocamento estava relacionado ao crescimento econômico em decorrência do cultivo do açúcar e do café. Também podemos verificar que o artista mantinha uma rede de contatos extensa. Por vezes, recebia encomendas e até pagamentos por intermédio de terceiros217.

―Mano Claro‖, certamente era Claro da Silva Dutra218, irmão de Miguel que residia em Indaiatuba. As notas diárias do artista demonstram não só um possível contato para obras e encomendas, mas também a extensão social da relação, pois Miguel escreve para seu irmão e para o Vigário para interferir no júri de Zacarias em 5 de setembro de 1873.

Entre os contatos de Miguel, está o botânico Joaquim Correa de Mello219, morador de Campinas que, conforme anotação de 1872, comprou um lote de 12 livros de botânica do artista. Além dele, também temos Bento Manoel de Barros, o Barão de Campinas. Encontramos, em nossa investigação, parte das encomendas de Bento Manoel a Miguel. Por conta do bom relacionamento entre os dois, o artista realizou trabalhos em várias cidades que estavam sob a influência do Barão, como Limeira, Itatiba e Itapira. Com o falecimento do Barão, em 1873, Miguel comentou da importância de Manoel de Barros na construção das igrejas da região:

não houve missa na B. Morte p q o Pe Joaquim Cypriano foi [ilegível] no Sitio do Ir Francisco Conceição - toquei a missa as 7 horas do Pe João e no fim houve a novena de Sª da Conç não fui a missa do dia p encomodado - Veio o Vicente da Limeira trouxe humas musicas q ir Felix mandava pª meo Filho, e contou -me q morreu o Ir Bento Manoel

216

DUTRA, Miguel. op. cit., [Anotações realizadas entre 1870 – 1873]

217 Conforme o recibo apresentado na primeira parte de nosso trabalho.

218 Claro da Silva Dutra, mais conhecido como Nhô Claro, foi ourives de profissão, tal como o pai e o

irmão. Conforme indicado por Marco Bernardo, Claro se mudou para Indaiatuba em 1841 e também atuou no campo da produção musical. BERNARDO, Marco Antônio. Nabor Pires Carmargo: uma

biografia musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2002.

219 Joaquim Correa de Mello (Campinas, 1816 – Campinas, 1877) figura que ainda carece de estudos,

Amaral Lapa comenta brevemente sobre sua importância. Cf.: LAPA, José Roberto do. A cidade: os

cantos e os antros: Campinas 1850-1900. Campinas, SP; São Paulo, SP: Editora da UNICAMP: Edusp,

Barão de Campinas as 4 horas da manha foi o Barão o homem q mais serviços prestou a limeira principalm na edificação dos templos em que tem gasto mais de 300 contos - o povo daq cidade deve sempre o traser na lembrança - sahio bando de mascarados a cavalo a noite choveu boa pancada220.

O trecho acima ainda apresenta informações sobre o ofício de Miguel Dutra. Fica claro, para nós, que Miguel Dutra transitava entre a posição de artífice e de artista, sobretudo, quando faz menção as festas e comemorações litúrgicas. Além das informações sobre obras, contatos e questões pessoais que envolvia a vida do artista, Miguel faz diversos comentários que remetem a vida dos profissionais conhecidos como ―armadores de gala‖. Tal ofício, como dito antes, existia em Portugal desde o século XVIII, e tinha um papel importante em diversas celebrações da coroa, sejam as ordinárias ou extraordinárias.

Maria João Pacheco, em sua pesquisa, demonstra a importância dos armadores na elaboração dos aparatos festivos, sobretudo aqueles que trabalhavam diretamente com tecidos221. Esse tema, infelizmente, ainda não foi objeto de estudos sistemáticos no Brasil. Em nossa investigação, pudemos verificar que Miguel Dutra foi registrado, no

Almanack da Província de São Paulo de 1783, como armador de gala para

festividades222.

De acordo com Pacheco, o armador de gala confeccionava a partir das encomendas do comissionamento religioso, ou poder camarário. Ao longo do manuscrito, percebemos que a produção multifacetada de Miguel Dutra lhe proporcionava maiores possibilidades de trabalho, pois as festas e comemorações sacras ocorriam de maneira cíclica, conforme o calendário cristão.

Assim, podemos afirmar que o artista prestava serviços para diferentes frentes do universo festivo223. A participação de Miguel Dutra, portanto, não ficou limitada à

220

DUTRA, Miguel. op. cit. [Anotações realizadas entre 1870 – 1873]

221 FERREIRA. Maria João Pacheco. Das armações e do ofício de armador na cidade de Lisboa nos

séculos XVII e XVIII. Cadernos do Arquivo Municipal. 2ª Série Nº 7 (Janeiro - Julho 2017), p. 113 - 136.

Lisboa

222 ALMANAK da Província de São Paulo para 1873. Coautoria de Antônio Jose Baptista de Lune, Paulo

Delfino da Fonseca. Ed. fac-similar São Paulo, SP: Arquivo do Estado de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1985. 1v.

223 Joaquim Alves elenca que as principais características das comemorações efêmeras em Portugal, no

século XVIII, são: Tríduo, Três dias sucessivos de luminárias, repique de sinos, Te Deum Laudamus,