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Catálogo das obras arquitetônicas, decorativas e devocionais de Miguel Archanjo Benício D’Assumpção Dutra

2.1 Os acervos consagrados de Miguelzinho: ressonâncias de um discurso autorizado

Dentre os acervos das obras de Miguel Dutra, a coleção pertencente ao Museu Republicano da Convenção de Itu é, certamente, um dos mais consagrados. Com o lote de 72 aquarelas do artista, essa coleção ganhou maior destaque a partir do catálogo publicado por Pietro Maria Bardi. Por conta dessa divulgação, esse acervo também foi o mais analisado pela crítica. José Roberto Teixeira Leite, por exemplo, distribuí as obras em ―cinco grupos: desenhos de arquitetura (arcos, projetos de túmulos, decorações e etc.), paisagens (vistas de cidades, fazendas, sítios e etc.), retratos e tipos populares, cenas de gênero e tema religioso‖92.

92 LEITE, José Roberto Teixeira. op. cit., p. 41.

Figura 18. Vista da cidade de Ytú. Miguelzinho Dutra. Aquarela sobre papel Dimensões 49 x 74,5 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

A Pinacoteca do Estado de São Paulo detém outro lote de obras do artista. De acordo com o núcleo museológico da instituição, o acervo conta com algumas obras aquareladas atribuídas a Miguelzinho, que foram adquiridas pelo Governo do Estado, em 2005, do acervo de Miguel Pacheco e Chaves.

De todas as obras aquareladas93 de Miguel Dutra, a principal delas, é, seguramente, a Vista da Cidade de Ytu, datada de 1851. Conforme nos informa a ficha catalográfica da obra, a vista panorâmica teria sido realizada in loco pelo artista. No entanto, não temos certeza da veracidade dessa informação. É preciso ressaltar que o panorama está estruturado topograficamente a partir de uma lógica organizacional: a igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária, a principal da cidade, é representada em uma escala maior em relação aos demais estabelecimentos religiosos, como o Convento do Carmo (à esquerda) e a Igreja do Bom Jesus (à direita) (Fig. 18).

Alguns estudos de Miguel Dutra, realizados com tinta ferrogálica, também fazem parte do acervo da Pinacoteca. Recentemente, essas obras, e também algumas aquarelas, participaram de exposições, dentre as quais, estão: 100 anos da Pinacoteca: A formação

de um acervo, ocorrida em 2005, Fato Aberto: o Desenho no Acervo da Pinacoteca do Estado, realizada em 2014, e, por fim, a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca, de 2016.

Constatamos, através dessas exposições, que Miguel Dutra é visto, na maioria das vezes, como um artista plástico. Na exposição Fato Aberto, por exemplo, Giancarlo Hannud94, um dos curadores da seção Mapear o Mundo, propôs uma abordagem que destacava os registros visuais realizados pelo artista em suas viagens95. Sob esse aspecto, as obras de Miguel Dutra foram comparadas, pelo curador, a produção de artistas estrangeiros e mesmo nacionais, como Victor Meirelles de Lima.

Em outra seção da mesma mostra96, os estudos de Miguel Dutra feitos, provavelmente, a partir de ilustrações de Louis Jean-Marie Morel D' Arleux e Charles Le Brun, também receberam a atenção do curador. Hannud compreendeu esse exercício de Miguel enquanto uma possível transferência da cultura visual europeia para o Brasil

93 Apresentamos as imagens disponibilizadas pelo acervo da Pinacoteca do Estado sem a regra de cores

ColorCheker pois a régua disponibilizada pela instituição apresenta tons cromáticos contemporâneos,

diferentes daqueles utilizados pelo artista.

94 HANNUD, Giancarlo. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Mapear o mundo. In: Fato aberto: o desenho no

acervo da Pinacoteca do Estado. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2013. (; v. 1).

95

Ibid., p. 28.

— sobretudo para o interior de São Paulo. Ainda segundo Hannud, essas cópias teriam servido de base para a formação do repertório dos artistas locais.

O conjunto de obras do artista também foi apresentado por Fernanda Pitta. Em sua exposição, Pitta manteve a mesma abordagem da exposição Fato Aberto: o desenho no

acervo da Pinacoteca do Estado. Porém, a curadora relativizou o autodidatismo de

Miguel, bem como sua condição ingênua97.

Essas últimas mostras representaram, sem dúvidas, iniciativas que contribuíram para os estudos sobre Miguel Dutra. Percebemos, no entanto, que a Pinacoteca priorizou, mais uma vez, a produção gráfica do artista, inclusive cedendo obras para participação da recente mostra São Paulo não é uma cidade - Invenções no centro98·.

Notamos, portanto, que as aquarelas de Miguelzinho tiveram maior difusão em relação à outra parte do acervo da mesma instituição99. A nosso ver, as obras gráficas de Miguel Dutra ganharam mais destaque do que seus outros trabalhos, sobretudo aqueles que atestam sua atuação enquanto arquiteto e entalhador. Tal fato se deu, para nós, por conta da sua fortuna crítica. Como ressaltamos anteriormente, alguns críticos associavam as obras do artista com a formação da identidade paulista. Portanto, a partir desse delineamento, as paisagens de Miguel Dutra são enfatizadas em detrimento dos seus outros trabalhos.

É possível perceber, diante do que foi exposto, que, apesar de Miguel Dutra ser referenciado enquanto detentor de "múltiplas facetas", suas outras atuações continuam sendo objeto de pouca atenção. Deste modo, as ponderações realizadas por Archimedes Dutra ainda permanecem no horizonte das abordagens realizadas pelas instituições detentoras dos acervos mais conhecidos de Miguel Dutra. Ou seja, as palavras de Archimedes continuam a nortear as exposições sobre o artista ituano:

Como artista nacional, foi um desbravador ao introduzir nas artes da Província o gênero realista de pintar panoramas de cidades, fachadas de edifícios recantos urbanos, paisagens, aspectos de fazendas, cenas de costumes, retratos, tipos populares, ambientes históricos, etc 100.

97 PITTA. Fernanda. Territórios: Artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. 2016, p. 61. 98

A exposição esteve em cartaz de 19/08/2018 a 28/01/2018 e teve como curadores Paulo Harkenhoff e Leno Veras.

99 Essa parte é constituída por um conjunto interessante de obras e fragmentos entalhados, composto por

peanhas, cruz e uma imagem de Nossa Senhora das Dores de Roca.

Apesar da crítica mais recente ainda enfatizar Miguel enquanto um paisagista, tal abordagem nos parece insuficiente para compreender a dinâmica e os processos artísticos vivenciados por Dutra naquele contexto. A nosso ver, a técnica de desenho empregada em suas aquarelas sinaliza que tais obras foram produzidas como documentos de trabalho. Suas aquarelas seriam, portanto, registros de memória artística. Em outras palavras, Miguel registra não por experiência sinestésica com a paisagem, mas com o objetivo técnico de formar seu repertório.

Dentro dessa abordagem, as demais aquarelas (pertencentes ao lote Pinacoteca), apesar de servirem de suporte para um discurso que relativiza o autodidatismo na produção de Miguel Dutra, continuam com elementos do ―discurso autorizado‖ desenvolvido ao longo do século XX.

Através da análise do conteúdo representado, do foco temático das vistas, e dos detalhes arquitetônicos das aquarelas de Miguel Dutra, notamos que ele estava preocupado em registrar os aspectos arquitetônicos a sua volta. Sendo assim, a atenção dada pelo artista às diversas soluções empregadas nos processos construtivos é, para nós, fruto de um interesse em dominar o processo construtivo como um todo.

Exemplos notáveis são os três registros realizados em um mesmo suporte: no Rio

Parangava / 1°. V°. em Piracangagua / Palacete da Roça do Ex - Inquiridor pª cá da Cerra. A obra se insere dentro do quadro de representações que integram o itinerário

que o artista teria realizado pelo Vale do Paraíba, por volta de 1835, após a morte de seu pai Thomaz101.

Através do registro do palacete da roça podemos perceber o quanto Miguel Dutra possuía um olhar técnico sobre os procedimentos empregados nas construções. Nessa obra, é interessante notar que o artista detalha, por meio de texturas na aquarela, os recursos materiais que foram empregados na edificação. (Fig. 19)

101 De acordo com Anicleide Zequine, Miguel teria viajado até a Capela de Aparecida para cumprir uma

promessa prevista em testamento. Pretendemos explorar melhor esse percurso posteriormente; por ora, cabe referenciar as contribuições de Fabia Ribeiro que, em sua tese de doutorado, apresenta dados importantes acerca do percurso devocional do Vale do Paraíba. Cf.: RIBEIRO, Fabiana Barbosa.

Caminho da piedade, caminhos de devoção: as irmandades de pretos no Vale do Paraíba Paulista - Século XIX, 2010. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, Universidade de São Paulo, 2010. doi: 10.11606/T.8.2010. tde - 16112010 - 103406. Acesso em: 2018 - 10 - 23.

O palacete se impõe através da elevação da superfície por meio do emprego do terrapleno102. Já a pedraria103, é sugerida mediante o uso de uma textura que imita pedra seca. Essa edificação, provavelmente foi realizada a partir da disposição de diversas camadas de pedras. Assim, a estrutura final dispensaria o uso de argamassa ou de qualquer outro tipo de material ligante. Para nós, somente um construtor ou um arquiteto teriam tanta preocupação com esses tipos de detalhes.

102 Técnica que consistia no preenchimento da depressão do terreno com terra. A estrutura externa se dava

por meio de um muro de arrimo que fica responsável por assegurar a pressão das camadas de terras sedimentadas.

103 Porção de pedras de cantaria.

Figura 19. no Rio Parangava / 1°. V°. em Piracangagua / Palacete da Roça do Ex - Inquiridor pª cá da Cerra Miguelzinho Dutra. Aquarela sobre papel Dimensões 41,60 x

Ainda sobre o Palacete, observamos que Dutra realiza um desenho técnico da estrutura suplementar usada para auxiliar e dar sustentação ao edifício. Na obra, estão presentes semiarcos de estrutura curva, empregados para cobrir o vão e o frontão. Também notamos arcos de escarção que, geralmente, estão situados acima e apoiados nos pés direitos. Além disso, as colunas estão representadas tipologicamente por seus principais elementos: base, fuste e capitel.

Como podemos perceber, a narrativa institucionalizada ainda dialoga com as críticas desenvolvidas ao longo dos últimos anos. Atualmente, essa narrativa tem se expressado em diversas exposições, sobretudo aquelas que almejam destacar a contribuição do mulato no desenvolvimento da arte nacional.

Entre as principais figuras evocadas, temos nomes como Mestre Valentim e Aleijadinho. Este último ganhou, recentemente, destaque no projeto do MASP dedicado às histórias afro-atlânticas. Na exposição Imagens do Aleijadinho, realizada em 2018, a curadoria buscou nas obras desse artista possíveis heranças culturais africanas. A partir disso, a exposição tratou da importância de Aleijadinho na formação e afirmação da arte afro-brasileira104.

O recente movimento acerca do mulato e a contribuição afrodescendente para as artes nacionais teve incidência, a nosso ver, sobre a narrativa de recuperação da obra de Miguel Dutra. O artista ―múltiplo‖, apesar de ter seu autodidatismo relativizado pela Pinacoteca do Estado, parece ter sido recuperado dentro de uma abordagem que enfatiza sua condição de mulato e de artista ―poliforme‖ que supera tudo. O que nos chama atenção é que as obras que caracterizam e justificariam essa abordagem, estranhamente, não são comentadas e nem mesmo consideradas pela instituição.

Ao nos depararmos com os demais acervos de Miguel Dutra — que serão apresentados em nosso catálogo —, notamos a expressividade das obras que atestam sua atuação enquanto arquiteto e entalhador. Essa questão se notabiliza, sobretudo, na coleção de projetos retabulares e nos esboços ornamentais, pertencentes à coleção do Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes, e, também, nos objetos que estão sob o poder dos familiares descendentes da família e demais colecionadores.

104

MOURA, Rodrigo (org.). SANTOS, Ângelo Oswaldo de Araújo. [et al.]. Imagens do Aleijadinho. São Paulo: MASP, 2018.

Como apresentado anteriormente, o projeto de exposição apresentado pela professora Aracy Amaral105 previa a contribuição do arquiteto Carlos Lemos. De acordo com Amaral, Lemos seria responsável por analisar os "riscos de talha" de Miguel Dutra. Tal fato demonstra que havia, portanto, um interesse especial em tratar da sua atuação enquanto arquiteto e entalhador. Infelizmente, como vimos, essa abordagem não se concretizou.

Os projetos e riscos de talha mencionados possivelmente fazem parte do acervo do Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Tais obras, presentes em nosso catálogo, constituem parte de nossa abordagem que pretende servir de ponte para um olhar mais amplo sobre o repertório de Miguel Dutra.

Em nossa pesquisa, também encontramos indícios da atuação de Miguel Dutra enquanto arquiteto e entalhador. Ao consultar o arquivo do Estado de São Paulo (no fundo da comissão para construção de igrejas)106, localizamos um recibo de pagamento recebido por Miguel Dutra pago pelo vigário Pedro Dias Paes Lemes, na quantia de dez mil contos de réis para elaboração de objetos e utensílios litúrgicos e celebrativos.107

O recibo, que atesta a feitura de "22 Castiçaes Seis Ramos Cruz e Crusifixio", é apenas um de vários registros documentais identificados durante nossa pesquisa. Assim,

105

AMARAL. Aracy, op. cit, 1980, p. 3.

106 O fundo guarda os documentos relativos à Matriz de Indaiatuba, datados de 1940.

107 Transcrição do manuscrito: Recebi d Sr Padre Pedro Dias Paes Leme Vigario e Diretor da Capela de

Indaiatuba a q de dusentos e des mil reis procedidas defases, e deixas 22 Castiçaes seis ramos, cruz e crusificio e recebido para este por mim jeito e assignado Itu 2 de Nov de 1840. Miguel Archanjo Benicio Dultra

Figura 20. Recibo de prestação de contas. Matrizes de Itu e Indaiatuba. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Fundo (Comissão para construção de igrejas).

os arquivos, atas das câmaras e livros de irmandades constituem parte essencial da base de dados utilizada em nosso catálogo (Fig. 20).

A partir desses documentos, pretendemos analisar a produção artística de Miguel Dutra enfatizando o quanto ela está permeada pelas dinâmicas das irmandades religiosas no Oeste Paulista. Da mesma forma, procuramos demonstrar que o deslocamento geográfico das encomendas pode estar relacionado as alterações econômicas do ciclo da cana de açúcar e do café, sobretudo após a segunda metade do século XIX.

2.2 A Semana Miguel Archanjo Benício D’ Assumpção Dultra 2018: Novas