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As Críticas à Inocência Semântica

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 168-175)

Sennet e Copp (2014, pp. 1096-1102) apresentam cinco argumentos contra a inocência semântica, o argumento das implicações contraintuitivas, a falha de pressuposição, a falta de uma explicação sobre como tratar as pessoas, a falha de generalização e a falha em explicar a ofensividade e depreciatividade dos pejorativos. Começo minha exposição pelas implicações contraintuitivas.

Dada a inocência semântica, tem-se implicações contraintuitivas em relação às seguintes frases:

(1) Todos os macacos são umbandistas.

(2) Ninguém merece avaliação moral negativa por ser afro-brasileiro, nem mesmo os macacos.

(3) Macacos merecem avaliação moral negativa, mas não porque são afro- brasileiros.

Para a inocência moral, a frase (1) é necessariamente verdadeira, dado que ela é equivalente a frase (1’) “Se alguém é macaco, então ele é umbandista”. (1’) é necessariamente verdadeira, pois contém um termo pejorativo na antecedente e termos pejorativos tem extensão nula. Logo, a antecedente é falsa. Se a antecedente é falsa, então restam duas combinações possíveis com a consequente, pois nas outras duas combinações possíveis a antecedente é verdadeira. Observe que em uma dessas possibilidades a condicional é verdadeira, mas à custa de assumir a antecedente como verdadeira. Essa possibilidade está excluída em função da tese da extensionalidade nula. Desse modo, se a antecedente é falsa ou a consequente é verdadeira ou ela é falsa e o resultado será uma condicional verdadeira para estas duas possibilidades combinatórias. Portanto, “Se alguém é macaco, então ele é umbandista” é verdadeira para as duas situações em que a antecedente for falsa. Como esta frase é verdadeira e é equivalente a (1), segue-se que (1) também é verdadeira. Este resultado, porém, é contraintuitivo, uma vez que muitas pessoas são afro-brasileiras, mas não são umbandistas. Aqui, é importante observar um detalhe na crítica de Sennet e Copp que aparece nos demais

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argumentos. Segundo eles, (1) e (1’) são intuitivamente falsas, pois muitas pessoas são afro-brasileiras sem serem umbandistas (SENNET e COPP, 2014, p. 1096). De fato, isso está correto. O detalhe é que a crítica assume de modo sub-reptício que “macaco” e “afro-brasileiro” são sinônimos, pois o termo afro-brasileiro não aparece na frase original (1), mas, sim, o termo macaco. Ao afirmar que a frase é intuitivamente falsa, no entanto, eles afirmam que muitas pessoas são afro- brasileiros sem serem umbandistas. Isso é um erro, pois a inocência semântica não considera termos pejorativos e suas contrapartes neutras como sinônimos. Creio, no entanto, que um ponto importante do presente argumento, talvez o mais importante, seja o fato de ele realçar o caráter de verdade trivial8 que frases

universais com um pejorativo no termo sujeito assumem, dada a tese da extensionalidade nula. Se aceito a extensionalidade nula, qualquer frase universal com um pejorativo no termo sujeito será verdadeira, pois ela é equivalente à sua forma condicional. Na forma condicional a antecedente sempre será falsa em função da extensionalidade nula. Logo, a condicional sempre será verdadeira9.

A frase (2) também leva a uma consequência contraituitiva. Dada a inocência semântica, (2) é autocontraditória, pois é equivalente a (2’), ou seja, ela é equivalente a “Ninguém merece avaliação moral negativa em virtude de ser afro- brasileiro, nem mesmo quem merece avaliação moral negativa em virtude de ser afro-brasileiro”, que é autocontraditória. Creio que, nesse ponto, o caráter autocontraditório de (2’) decorre da presença das expressões “ninguém” e “nem mesmo”. A primeira frase expressa que ninguém merece ser avaliado de modo

8 Aqui, sou grato ao Matheus Martins Silva por chamar minha atenção para este ponto. 9 Essa é, na minha opinião, a principal crítica de Sennet e Copp. Ela não atinge, porém, o

modelo que proponho no final do artigo, pois ele não assume a tese da extensionalidade nula. Se ele não assume a tese da extensionalidade, então é possível que uma frase quantificada com pejorativo seja falsa. Para tanto, é necessário que sua forma equivalente condicional contenha uma antecedente verdadeira e uma consequente falsa. Se isso for possível, tem-se uma condicional falsa. Consequentemente, a quantificada também será falsa. Independentemente disso, penso que esta crítica diz mais do caráter lógico da verdade trivial de frases quantificadas universalmente e menos de um problema com explicações semânticas.

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negativo por ser afro-brasileiro enquanto a segunda expressa que nem mesmo quem merece ser avaliado de modo negativo por ser afro-brasileiro. Desse modo, temos uma construção autocontraditória. Dado que (2’) é falsa e como ela é equivalente a (2), segue-se que (2) também é falsa. Isso, no entanto, é contraintuitivo (SENNET e COPP, 2014, p. 1096). Observe que ao formularem a frase (2’), Sennet e Copp assumem novamente de modo sub-reptício a sinonímia entre “afro-brasileiro” e “macaco”. Para ver isso, basta escrever as duas frases lada a lado, ou seja, “(2) Ninguém merece avaliação moral negativa por ser afro-brasileiro, nem mesmo os macacos” e ‘(2’) Ninguém merece avaliação moral negativa em virtude de ser afro- brasileiro, nem mesmo quem merece avaliação moral negativa em virtude de ser afro-brasileiro’. Na segunda parte da frase (2) ocorre o termo macaco enquanto na segunda parte da frase (2’) ocorre o termo afro-brasileiro. Assim, a crítica só surte efeito porque introduz de modo sub-reptício “afro-brasileiro” no lugar de “macaco”10.

A frase (3) também tem implicação contraintuitiva. A frase “Macacos merecem avaliação moral negativa, mas não porque são afro-brasileiros” é autocontraditória. Dada a inocência semântica, é analítico que macacos merecem avaliação moral negativa porque são afro-brasileiros. Logo, a afirmação de que macacos merecem avaliação moral negativa, mas não porque são afro-brasileiros é autocontraditória (SENNET e COPP, 2014, p. 1097). Novamente, a crítica só funciona, se entendermos que a analiticidade ocorre porque “macacos” é considerado sub-repticiamente como sinônimo de “afro-brasileiro”; caso contrário, a autocontradição alegada não procede.

A segunda crítica diz respeito à falha de pressuposição (SENNET e COPP, 2014, p. 1098). A inocência semântica deve explicar porque é intuitivamente verdadeiro que ‘Todos os macacos são afro-brasileiros’. Para ela “Todos os macacos são afro-brasileiros” é intuitivamente verdadeira porque é necessariamente falso que alguém é macaco, uma vez que é necessariamente falso que alguém mereça avaliação moral negativa por ser afro-brasileiro. E é necessariamente falso que alguém mereça avaliação moral negativa por ser afro-brasileiro porque a antecedente de “se alguém é macaco, então é afro-brasileiro” é necessariamente

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falsa. Logo, “se alguém é macaco, então é afro-brasileiro” é necessariamente verdadeira. Como “Todos os macacos são afro-brasileiros” é equivalente a “se alguém é macaco, então é afro-brasileiro”, segue-se que “Todos os macacos são afro-brasileiros” também é necessariamente verdadeira, pois “se alguém é macaco, então é afro-brasileiro” é verdadeira. Agora, a falha de pressuposição é revelada a partir da seguinte explicação. Dadas frases com a forma “Todos os F’s são G’s” e quando não existem os F’s, que é o caso de “Todos os macacos são afro-brasileiros”, é mais plausível que estas frases tenham pressuposição falha. Por exemplo, a frase “Todos os elefantes leves são pilotos habilidosos” é infeliz, pois pressupõe a frase “Existem elefantes leves”, que é falsa, uma vez que não existem elefantes leves. Como não existem elefantes leves, segue-se que “Todos os elefantes leves são pilotos habilidosos” é infeliz. Isso indica, segundo Sennett e Copp (2014, p. 1098), uma falha de pressuposição. Se isso está correto, segue-se que a explicação de Hom e May para “Todos os macacos são afro-brasileiros” também pode ser considerada como contendo uma falha de pressuposição e consequentemente considerada infeliz. Esta crítica parece-me um pouco obscura. Se mantenho a paridade de raciocínio, então tenho o seguinte. A frase “Todos os macacos são afro- brasileiros” pressupõe a frase “Existem macacos”. Esta deve ser falsa, ou seja, não existem macacos. Como não existem macacos, segue-se que “Todos os macacos são afro-brasileiros” é infeliz. O problema, porém, é que Sennet e Copp devem uma explicação para a falsidade da frase “Existem macacos”11. Dito de outro modo, a

crítica funciona para “Todos os elefantes leves são pilotos habilidosos”, pois não existem elefantes leves e muito menos elefantes leves que sejam pilotos habilidosos. A crítica, no entanto, não funciona para macacos “Todos os macacos são afro- brasileiros”, pois ela depende de mostrar que não existem macacos ou que é falso

11 Na minha opinião, esta crítica só faz sentido se a frase ‘Todos os macacos são afro-

brasileiros’ não passar no teste de família pressuposicional. De acordo com este teste, se uma frase x pressupõe uma frase y, então a negação de x, assim como suas versões interrogativa e hipotética também pressupõem y; caso contrário, ela não pressupõe y. Outro modo de considerá-la como discurso pressuposicional seria analisá-la de acordo com a teoria das descrições indefinidas.

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que existem macacos. O problema, no entanto, é que “Existem macacos” pode ou não ser depreciativa. Se a considero como não depreciativa, então, dependendo do contexto, ela pode ser verdadeira ou falsa. Mas qual a explicação para sua falsidade, caso ela seja depreciativa? O esclarecimento não pode recorrer a tese da extensionalidade nula, pois ela faz parte da teoria sob ataque. Aqui, portanto, Sennett e Copp ficam devendo uma explicação.

A inocência semântica também é acusada de não considerar os debates sobre como tratar as pessoas (SENNET e COPP, 2014, p. 1099). O objetivo principal de uma teoria semântica sobre pejorativos é explicar o caráter ofensivo e depreciativo destas expressões12. Para tanto, a teoria deve supor que o significado

desses termos inclui um componente ofensivo e depreciativo. No caso do termo macaco, por exemplo, a teoria deve supor que esta expressão contém um elemento ofensivo ou depreciativo no seu significado que o caracteriza como um termo racista, uma vez que ele é uma injúria racial. Racistas, no entanto, podem discordar entre si quanto a que aspecto de seus alvos é desprezível13. Por exemplo, diante da adoção

da política de cotas pelo Governo Brasileiro há muitas manifestações de caráter racistas disseminadas na população brasileira. Uma opinião comumente veiculada pelos racistas é que a qualidade das instituições de ensino decaiu ou decairá em função da presença de afro-brasileiros ou indígenas nestas instituições, pois estes são intelectualmente inferiores aos estudantes brancos. Outros racistas podem sustentar que a qualidade das instituições de ensino decairá em função da presença de estudantes cotistas não porque eles sejam intelectualmente inferiores, mas porque eles são socialmente desprezíveis. A discordância também pode girar em torno da suposta falta de qualidades morais positivas dos estudantes cotistas. Além de discordarem sobre o aspecto que é desprezível, os racistas também podem discordar quanto ao tipo de atitude para com seus alvos. Uns podem propor uma atitude de indiferença para com os estudantes cotistas; outros podem propor uma

12 Sennet e Copp não distinguem ofensa de depreciação tal como distingui na primeira nota

de referência.

13 Isso não procede, pois, do fato de discordarem sobre qual aspecto é desprezível não se

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atitude de combate. Isso tudo é importante porque uma teoria semântica de pejora- tivos deve propor alguma tese sobre a atitude apropriada para com situações desse tipo e isto deve estar baseado na sua análise do significado dos pejorativos (SEN- NET e COPP, 2014, p. 1099). Creio que esta crítica comunga do mesmo erro da inocência semântica. Ambas não distinguem adequadamente o nível semântico do ético. A tarefa principal de uma teoria semântica é apenas e tão somente explicar o significado dos termos pejorativos e não dizer como se deve ou não tratar as pes- soas. Se há uma disciplina que talvez possa fazer o que Sennet e Copp dizem é a ética, mas até isso é discutível, pois, de certo ponto de vista, a tarefa de dizer como se deve ou não tratar as pessoas não é do filósofo ético, mas do pregador.

A penúltima crítica dirigida à inocência semântica é que ela falha em gene- ralizar sua explicação para os pejorativos2. Como eu disse acima, os racistas podem

divergir sobre as atitudes para com os grupos alvos de suas práticas racistas e até mesmo quanto às razões que justificam as suas ações racistas. Em função disso, teorias semânticas correm o risco de simplificarem suas explicações de tal modo que elas não sejam generalizáveis (SENNET e COPP, 2014, p. 1100). Pense no caso do termo macaco. Racistas podem usar este termo, mas não necessariamente defenderem que um grupo de estudantes mereça ser alvo de avaliação moral nega- tiva por serem estudantes cotistas. Eles desprezam os cotistas, por exemplo, com base em pressupostos genéticos que, ainda que sejam falsos, sustentam suas cren- ças depreciativas. Do meu ponto de vista, outra razão, e mais grave que a anterior, para a não generalização da explicação fornecida por teorias semânticas ao modelo da inocência semântica é que alguns pejorativos não possuem contrapartes neutras. Ofensas como “imbecil” ou palavrões como “bunda mole” não possuem contrapartes neutras. Como a inocência semântica necessita da contraparte neutra para desen- volver sua explicação, pois pejorativos são obtidos por meio da aplicação da função PEJ a uma contraparte neutra, segue-se que ela fica inviabilizada.

2 Não considero isso um problema ou limitação grave. Se uma teoria não explica um sub- conjunto de pejorativos, não significa que ela não seja funcional. Ela é funcional para deter- minado subconjunto, mas para outro não.

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Por último, as teorias semânticas são acusadas de não explicarem o que é ofensivo e depreciativo no uso de termos pejorativos (SENNET e COPP, 2014, p. 1100-1101). Do ponto de vista da inocência semântica, chamar uma pessoa por meio de um pejorativo é expressar uma afirmação moral falsa. Isso, no entanto, não é a mesma coisa que depreciar ou ofender com uma injúria sexual ou moral. Sennet e Copp explicam esta diferença recorrendo a uma analogia. Considere as frases “Pessoas com 20% da visão devem ser sujeitas a avaliação moral negativa em função disso” e “Pessoas que devem ser sujeitas a avaliação moral negativa por terem 20% da visão não devem ser autorizadas a dirigirem em via pública”. Estas duas frases são falsas, mas não são depreciativas, pejorativas nem ofensivas. O problema, segundo Sennet e Copp, é que para a inocência semântica o sentido da frase “Pessoas com 20% da visão devem ser sujeitas a avaliação moral negativa em função disso” é análogo ao sentido das frases “Nordestinos são macacos” e “Nordestinos devem ser sujeitos a avaliação moral negativa porque são nordestinos”. Do mesmo modo, o sentido da frase “Pessoas que devem ser sujeitas a avaliação moral negativa por terem 20% da visão não devem ser autorizadas a dirigirem em via pública” é análogo ao sentido das frases “Macacos não devem ser autorizados a dirigir em via pública” e “Pessoas que devem ser sujeitas a avaliação moral negativa por serem nordestinos não devem ser autorizados a dirigirem em vias públicas”. Qual o problema que isso revela? O problema é que as frases “Nordestinos são macacos” e “Macacos não devem ser autorizados a dirigirem em via pública” são pejorativas e depreciativas ao passo que “Nordestinos devem ser sujeitos a avaliação moral negativa porque são nordestinos” e “Pessoas que devem ser sujeitas a avaliação moral negativa por serem nordestinos não devem ser autorizados a dirigirem em vias públicas” depreciam e ofendem nordestinos, mas não os depreciam no mesmo sentido em que frases contendo pejorativos os depreciam (SENNET e COPP, 2014, p. 1101). A única explicação que encontro para a diferença apontada é a presença de termos pejorativos em um caso e a ausência de termos pejorativos no outro caso. Por isso, a afirmação de que elas depreciam e ofendem em sentidos diferentes. No entanto, Sennet e Copp ficam devendo uma explicação desse sentido diferenciado em que frases sem pejorativos são depreciativas e ofensivas tanto quanto frases contendo tais expressões.

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