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A “normatividade silenciosa” nos animais não-humanos (Rodolfo Sacco)

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 197-200)

Uma primeira resposta negativa à pergunta “È verdade que os animais não-humanos não podem agir à luz de normas?” considera a hipótese relativa à existência de um “direito mudo,” proposta pelo jurista e antropólogo-jurídico italiano Rodolfo Sacco no ensaio de mesmo nome, Il diritto muto, surgido em 1993, e depois desenvolvida em várias obras. (por exemplo, Sacco 1994, 2005, 2007 e 2010), até chegar no recente livro Il diritto muto. Neuroscienze, conoscenza tacita, valori condivisi, publicado em 2015. Imaginando os albores do direito na sua pré-história, Sacco se detém sobre o direito que caracteriza as sociedades de animais não-humanos e dos homens pré- linguísticos e, neste contexto, esboça um retrato da normatividade jurídica “muda”, isto é, da normatividade jurídica que caracteriza os contextos sociais não-linguísticos e se manifesta na ausência de fenômenos linguísticos.

14 Para uma exceção, ver Vincent, Ring & Andrews (em fase de edição). Um fenômeno

certamente relevante para a pesquisa sobre a existência de normas nas sociedades animais é aquele da “conformidade” do comportamento do indivíduo às práticas do grupo. Segundo as investigações de Erica van de Waal, Christèle Borgeaud e Andrew Whiten (van de Waal, Borgeaud & Whiten 2013), em certos casos os símios verdes cercopitechi verdi (Chlorocebus

pygerythrus) selvagens abandonam as próprias preferências de vegetais em favor das

práticas seguidas pelo grupo. Sobre o tema, ver também van Schaik 2012 e van Schaik & Burkart (em fase de edição). Ao contrário, e sobre a importância da conformidade comportamental para a moral humana e a noção de “conformorality”, ver Lisciandra, Postma- Nilsenová & Colombo 2013.

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O direito é um instrumento para prevenir e dirimir os conflitos de interesse na sociedade. Onde há uma sociedade, existe um direito. Isto é verdadeiro para as sociedades humanas, e é verdade para as sociedades animais evoluídas. Leões, cães selvagens e tantos outros mamíferos carnívoros “marcam” a propriedade do terreno, e conseguem, dos demais, ou seja, dos animais de espécies diferentes, o respeito ao direito esclusivo. (Sacco 1993: 694)

E o que vale para as sociedades de mamíferos, e, em particular, dos primatasque os precederam vale obviamente também para o homem. Como escreve Sacco (1993: 694), “[nomomento em que o homo habilis fabricou as primeiras lascas de lenha ou pedra o seu direito não podia ser muito diferente daquele dos primatas que o haviam precedido imediatamente. Aquelas lascas colocavam problemas de propriedade, prolongada no tempo, de coisas móveis: a arma, ou a pedra, (silício, quartzo, vidro vulcânico), preciosa porquanto rara, útil para dela tirar a arma. A propriedade poderia talvez resolver os problemas mais presentes.”

Sacco desenha uma sociedade de animais pré-linguísticos na qual as relações se colorem de qualificações jurídicas e normativas. Atos jurídicos mudos (por exemplo, marcação de um terreno e galanteio) qualificam juridicamente relações e fazem surgir deveres: “[r]egras às quais o animal é fiel protegem a relação macho-fêmea, frequentemente precedida por galanteio, e o cumprimento dos deveres que recaem sobre os pais no cuidado da prole.”15.

Claramente, a hipótese nesta imagem do direito é que o homem pré- linguístico e certos animais sociais não-humanos estavam já em condições de agir à luz de normas e assim eram dotados da capacidade normativa. De resto, a ideia de regra e de dever são elementos essenciais deste esboço de direito mudo, em que Sacco se concentra sobre “fidelidade à regra” e sobre “validade da regra” para reconstruir aquela que podemos definir (utilizando um termo de John Searle), uma espécie de “deontologia animal”. Sacco (2015: 76) dirá incisivamente “[o] direito mudo consta de regras, as regras exaurem o direito mudo”. A validade da regra

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consiste na fidelidade dos que a ela se associam, isto é, no fato de os comportamentos serem conformes, de a ela renderem respeito. Como escreve Sacco (1993: 694), “[r]ito e realização eram os atos jurídicos. E a fidelidade à regra implicava a existência e a validade da regra (não deduzível da espontânea conduta dos membros do grupo)”. Neste direito, “o respeito à regra é garantido pela autotutela” e a autoproteção em seu entorno é reforçada pela biologia mesma do animal: “[u]m jogo de glândulas e hormônios multiplica a força do animal injustamente agredido”. Estamos diante de uma espécie de normatividade jurídica encarnada.

Mas é um direito particular, onde mesmo o ato jurídico cerimonial não intervém e “a existência do relacionamento é um todo com a realização”.

[A] posse era o assenhoramento jurídico sobre o bem, a aquiescência implicava o direito dos outros. A dicotomia que contrapõe o direito ao seu exercício não funcionava. Era jurídico aquilo que era implementado, vale dizer, era jurídico o direito que era exercitado, o dever que era cumprido, o comportamento ao qual o outro aquiescia. (Sacco 1993: 694)

Encontramos um bom exemplo da ideia de Sacco de que o consentimento abrange o direito no livro de Frans de Waal Primates and Philosophers (2006: 42), no qual de Waal descreve o comportamento dos macacos-prego (Cebus apella), que são habitualmente interessados no alimento dos outros, e “ de quanto em quando o repartem, chegando às vezes a dele oferecer um pouco a um companheiro”. De Waal sublinha o fato de que as partilhas são feitas de qualquer modo, e principalmente, passivas: “um indivíduo estende a mão e toma da comida que está na posse de outro, que o deixa fazer”.

Sobre a categoria da “norma” e sobre a palavra “norma”, Sacco (1993: 702), ao invés, faz uma interessante observação, refletindo sobre a relação entre a norma e seu correlato fatual, isto é, o comportamento conforme a norma:

O jurista deu um nome à norma, ao direito subjetivo, ao dever jurídico. Foi mais econômico com o comportamento de

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acordo com a norma, com o exercício do direito subjetivo, com o cumprimento do dever. Define estas três figuras unicamente em relação à figura correlata referida no direito falado. Contra toda lógica linguística, denominou com uma palavra-base a realidade instrumental abstrata (norma, direito, dever) e depois encontrou um termo composto e derivado (‘conduta conforme a norma’, ‘conduta desviante’, ‘exercício do direito’ ‘cumprimento do dever’) para indicar o dado histórico-real, ao qual é destinado.

Desta passagem emerge a especificidade da normatividade (de sabor paradoxal) que originariamente caracteriza o direito mudo: aqui a norma não é qualquer coisa de abstrato e imaterial (talvez linguístico) que se contrapõe ao dado real. Pelo contrário, existe uma espécie de identificação entre a norma e o comportamento conforme à norma: a norma não existiria sem o (e talvez também para fora dele) comportamento que a observa.

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 197-200)