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Sobre o significado filosófico da triangulação

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 128-132)

R ICARDO N AVIA

2. Sobre o significado filosófico da triangulação

A – Origem e função do conceito de objetividade

Como vimos, é na triangulação que os seres humanos fixam os significados de seus pensamentos e proferências como base de sua capacidade lingüística, e forjam o conceito de “verdade objetiva” como base de seu pensamento e de suas atitudes proposicionais em geral.

O conceito de objetividade é “a consciência, não importa quão inarticulada, do que fato de que o que é pensado ou dito pode ser verdadeiro ou falso” (Davidson, 2004, p. 04). Davidson ressalta que só dizemos que alguém tem uma crença se tem o conceito de “verdade objetiva”, isto é, se é consciente de que essa crença pode ser verdadeira ou falsa por razões que são independentes de suas crenças, e isto porque para conceber uma proposição é necessário conhecer o que são e o que não são suas condições de verdade.

A atenção que Davidson presta desde 1990 a reconsideração dos conceitos de verdade, pensamento e objetividade, em larga medida se concentrou em como se explica a captação do conceito de “verdade objetiva”, como chegamos a reconhecer a diferença entre o que cremos e o que é de fato.

Ele reconhece que em Wittgenstein há um avanço da tese de que “a fonte do conceito de verdade objetiva é a comunicação interpessoal” (Davidson, 2003, p. 286) enquanto “o argumento da linguagem privada” defende que ao menos que uma linguagem seja compartilhada com outras pessoas não há como distinguir entre usá- la corretamente e usá-la incorretamente. A partir daí Davidson pretende levar esta tese sobre a origem da correção lingüística ao conceito geral de objetividade.

Como já assinalamos, seguindo a descrição da triangulação: a partir da constatação de semelhanças forjamos e usamos conceitos para classificar as coisas e eventos de nosso entorno, a partir deste momento abre-se a possibilidade de que aquilo que nossos pensamento e proferências classificam esteja de acordo ou não com aquela categorização. Claro que dita “constatação de semelhança” tem que transcender o âmbito subjetivo de cada pessoa e imbricar-se no espaço público, o

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que se realiza pelo mútuo reconhecimento comunicativo que encerra o triângulo visto.

Assim, evidencia-se a necessidade da triangulação para o surgimento da objetividade. Diz Davidson:

A única forma de saber que... a segunda criatura está reagindo ao mesmo objeto que eu estou é saber que a outra pessoa tem em mente o mesmo objeto [...], para que duas pessoas saibam que seus pensamentos estão relacionados assim, é necessário que estejam em comunicação (Davidson, 2003, p.174).

Davidson enfatiza que é a possibilidade de aplicar mal o conceito (em uma proferência) e, portanto, a possibilidade do erro (proposicional) o que distingue a conceituação da mera discriminação. Deste modo, nasce um padrão (de objetividade) que está além de nossas crenças. Dito padrão, por seu lado, se conecta com o conceito de verdade, pois saber aplicar essas classificações ou conceitos é saber em quais condições esses juízos são verdadeiros. Mas, por sua vez, o conceito de verdade se conecta com o de objetividade porque conhecer sob que condições um juízo é verdadeiro, implica o reconhecimento do fato de que um juízo é verdadeiro ou falso por um critério que é independente de nossas crenças.

Vale recordar que o momento fundamental de se instituir uma norma, que partindo de duas subjetividades se localiza, portanto, em um espaço público, supera tais pontos de partida, o que apenas pode ser cumprido mediante um “reconhecimento mútuo” em torno de algo que só possa ser verificado através da comunicação. Escreve Davidson:

Ao menos que a linha de base do triângulo, a linha entre dois agentes, seja recolocada no ponto onde possa se implementar a comunicação de conteúdos proposicionais, não há outra forma em que os agentes possam fazer uso da situação triangular para formar juízos acerca do mundo. Apenas quando a linguagem está em seu lugar, as criaturas podem apreciar o conceito de verdade objetiva (Davidson,

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2003, p. 185).

Como resume Sinclair:

Nossa captação do conceito de objetividade emerge através do reconhecimento, previsto pela comunicação lingüística de outro indivíduo que compartilhe pensamentos acerca de objetos, cujas propriedades ambos os sujeitos reconheçam como existentes independentemente destes pensamentos (Sinclair, 2005, 714).

Sobre este passo final da triangulação Davidson se coloca uma pergunta em “Três variedades do conhecimento” quando diz:

Por que uma medida interpessoal haveria de constituir uma medida objetiva? A saber, por que haveria de ser verdade aquilo no que as pessoas estão de acordo que é verdade [...], inclusive se acontece da comunidade pressupor uma medida ou norma objetiva da verdade? Por que haveria de ser esta a única maneira de se estabelecer uma norma? (Davidson, 2003, p. 289).

Fica claro que ele vai responder isto a partir da análise da situação radical de interpretação, mas a resposta neste ensaio não parece totalmente clara. Talvez a passagem mais significativa seja quando afirma: “Não temos razões para atribuir a uma criatura a distinção entre o que se pensa que é o caso, ao menos que esta criatura possua a norma que uma linguagem compartilhada proporciona” (Davidson, 2003, 286).

Isto poderia ser entendido como se cada sujeito ao correlacionar-se com seu mundo em torno não tivesse comunicação, portanto, por uma espécie de argumento transcendental; se há comunicação exitosa, então significa que os participantes se sujeitaram a uma pauta objetiva de algum modo fixada na linguagem e na estrutura total de crenças.

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Em seu ensaio “A segunda pessoa” Davidson aborda o problema da objetividade desde o ponto de vista da objetividade que é requerida pela linguagem, o terreno comum que permite saber como interpretar as proferências do outro, inclusive saber – com boa probabilidade – como continuará um falante diante do que tivermos interpretado de situações anteriores: é a típica situação descrita no argumento de seguir uma regra.

O problema se torna agudo desde que Davidson sustenta em A Nice Derangement of Epitaphs (Davidson, 2005) e em Second Person (Davidson 2001) que – se toda comunicação se dá em um entorno social – não se pode recorrer aos conceitos de convenção ou regra, desde o momento em que podem compreender- se interlocutores que partem de convenções lingüísticas (idiomas) diferentes. Davidson desenvolve a tese de que comunicar-se, falar uma língua, “somente requer que cada falante seja intencionalmente interpretável ao outro” (Davidson, 2003, p. 167). Entende que intenção comunicativa cobre a condição de delinear de um modo “indefinidamente amplo” um padrão objetivo sobre o qual se pode acertar ou errar. Permitindo deste modo uma explicação alternativa à comunitarista acerca do problema da normatividade, uma clássica perplexidade que nos legou o argumento de “seguir uma regra”.

Como conclui Davidson ao final do citado artigo, o argumento ratifica a tese Wittgenstein-Kripke de que a primeira língua não pode ser uma linguagem privada, mas segundo ele, a natureza social da linguagem deve ser entendida de modo diferente. O argumento de Kripke pressupunha uma segunda pessoa ou comunidade para incorporar uma rotina que mais adiante seria o vínculo de comunicação; ao passo que no argumento de Davidson a interação de ao menos dois falantes/intérpretes é o fundamento da rotina. Em Kripke uma uniformidade social externa pretendia explicar o entendimento, o qual reenvia ao predicamento assinalado por Wittgenstein (com base em critérios entenderíamos a dita rotina?), ao passo que em Davidson o entendimento interativo de fato é o que fundamenta a pauta que consolida um entendimento prévio baseado na mútua interpretação, com o qual não reaparecerá a pergunta pelo motivo da interpretação estar dada e ser anterior a todo fato que demande interpretação.

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3. As objeções de Meredith Williams a concepção davidsoniana sobre a

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