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Reconstrução da triangulação como argumento

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 122-128)

R ICARDO N AVIA

1. Reconstrução da triangulação como argumento

A introdução da triangulação para dar conta das condições mínimas de surgimento do pensamento e da linguagem tem início em 1982 em seu artigo “Rational Animals” e adquire uma relevância especial em “La emergencia del pensamiento” e “Las condiciones del pensamiento” de 1988.

(A) Davidson começa a tratar deste tema explicitando a diferença entre a capacidade já existente nos animais para discriminar entre distintos objetos e a

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capacidade humana para usar conceitos. Começa considerando uma forma primitiva de triangulação: nela certos animais simplesmente aprendem a reagir frente a certo estímulo do meio. Aqui há um esboço de triangulação porque se aprende a olhar algo em comum e a adverti-lo frente a uma reação também comum de um par da espécie. Mas estas criaturas não lidam com conceitos nem atitudes proposicionais, pois não estão descrevendo nada, apenas identificando um sinal (Davidson, 2001, p. 124-127).

(B) Um nível superior é posto pela aprendizagem infantil de uma primeira língua (Davidson, 2001, p. 125-134). Ali, a criança é estimulada a produzir certo nível de emissão lingüística constante frente à presença de objetos ou eventos similares (a emissão “mesa” diante da presença de mesas). Um aspecto importante desta aprendizagem é que ela implica a capacidade da criança de identificar que certos objetos são similares a outros em determinados aspectos relevantes (ainda que haja algumas diferenças em aspectos não hierarquizados neste contexto). A captação desta semelhança assume um papel fundamental no surgimento do pensamento.

Todavia, observa Davidson, que há aqui um problema a ser esclarecido no que se refere à localização do estímulo: Qual seria a razão para sustentar que o objeto mesa é o estímulo que provoca a emissão do termo “mesa” e não as ondas luminosas que chegam ao olho da criança, ou ainda meramente as modificações periféricas nos receptores do sujeito? Diz ele:

[...] de fato, se temos de eleger, parece que a causa mais próxima da conduta possui os melhores atributos para receber a denominação de estímulo, pois quanto mais distante se acha um evento do ponto de vista causal, maior é a probabilidade de que a cadeia causal seja rompida. Talvez deveríamos dizer o mesmo acerca da criança: sua resposta não obedece as mesas, mas a diretrizes estimuladoras na superfície de sua pele, posto que estas diretrizes sempre produzem a conduta enquanto que as mesas o fazem apenas em condições favoráveis (Davidson, 1992, p. 158).

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Por que, entretanto, parece natural dizer que o cachorro responde ao timbre e a criança as mesas? Encontramos semelhanças entre as emissões da palavra “mesa” que a criança emite e as coisas do mundo que a acompanham e estas emissões que classificamos conjuntamente de forma natural como mesas (Davidson, 1992, p. 158).

Claro que alguém pode perguntar-se de onde emana esta “naturalidade” da classificação. Dita “naturalidade” parece justificar-se quando o texto explica:

Não podemos observar facilmente as pautas acústicas e visuais que fluem rapidamente, [...] entre as mesas e os olhos da criança, e, se pudéssemos observá-las, nos seria muito difícil dizer o que as fazia similares (Davidson, 1992, p. 158).

Mas a localização do objeto acontece, sobretudo, em virtude de uma tríplice similaridade que se produz neste processo de triangulação. Segundo Davidson:

Em nossa descrição estão imbricadas não duas, mas três classes de eventos ou objetos, entre os quais tanto nós quanto a criança achamos uma similitude natural. A criança encontra as mesas similares; nós também achamos as mesas similares e encontramos também semelhanças nas respostas da criança às mesas. Dadas estas três pautas de respostas, torna-se possível localizar os estímulos mais relevantes que promovem as respostas da criança (Davidson, 1992, 158-59).

Este é um dos lugares clássicos de definição da triangulação que se fecha:

É uma forma de triangulação: uma linha parte da criança em direção a mesa, outra linha parte de nós em direção a mesa e a terceira vai de nós a criança. O estímulo relevante se acha aí onde convergem as linhas da criança para a mesa e de

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nós para a mesa (Davidson, 1992, p. 159).

A esta altura, a criança ainda não tem capacidade conceitual nem linguagem, mas segundo nosso autor está sentando as bases para seu processo constitutivo. Esta interação básica entre duas pessoas e um objeto assim identificado possibilita a definição de um conteúdo para o pensamento que começa a se formar. Aqui é fundamental o papel da segunda pessoa. Sem outra pessoa com a qual “triangular” não haveria conteúdos para os pensamentos, não haveria pensamentos. Se apenas tivéssemos criaturas isoladas, suas respostas por mais complexas que pudessem ser não constituiriam atitudes proposicionais, não poderiam ter a capacidade de “reagir a” ou “pensar em” algo situado a certa distância ao invés de ficar sobre suas próprias recepções.

Em The Emergence Thought, Davidson diz que para uma pessoa isolada, a causa está na seguinte perspectiva:

the cause is doubly indeterminate: with respect to width, and with respect to distance. The first ambiguity concerns how much of the total cause of a belief is relevant to content. . . . The second problem has to do with the ambiguity of the relevant stimulus, whether it i proximal (at the skin, say) or distal. (Davidson, 2001, p. 129).

Como disse Davidson “o mundo do solipsista pode ter qualquer dimensão, o que equivale a dizer que não tem dimensão alguma, que não é mundo” (Davidson, 1992, p. 159). Isto é, a interação até aqui descrita na triangulação é uma condição necessária para a possibilidade do pensamento, mas não é ainda uma condição suficiente para o mesmo.

O mero fato de que se trate de reações compartilhadas não indica o aspecto relevante. Por si mesmas, as reações compartilhadas aos objetos do meio não determinam as causas mais que as reações individuais. Como diz C. Verheggen:

Para que S signifique algo mediante palavras para Davidson não é suficiente que hajam certas causas para as

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preferências de S: S deve também estar em posição de reconhecer ao menos algumas das causas enquanto tais. O que significa dizer que para que S signifique algo por palavras, S... deve ser capaz de pensar nessas causas como existindo independentemente de falar sobre elas (Verheggen, 2007, p. 99).

E isto só é possível mediante a comunicação.

(C) Entretanto, a triangulação tem ao mesmo tempo outro importantíssimo efeito sobre os participantes: os introduz na ideia e possibilidade do erro. Quando duas pessoas correlacionam suas reações com objetos ou eventos do mundo exterior e com as reações de outras pessoas, se estabelece uma norma padrão para reagir de certa forma frente a determinados objetos ou fatos de modo a formar um “acordo”, onde se não se reagir deste modo, está se cometendo um erro. Assim se introduzem as categorias de “certo” e de “errado” (antecedentes imediatos das categorias de verdadeiro e de falso). Davidson considera que essa é a capacidade distintiva da conceituação e do pensamento.

Em um de seus últimos escritos sobre a relação entre a linguagem, a crença e o conceito de objetividade, Davidson escreveu:

If I believe that what I am seeing is a giraffe, I am employing the concept of a giraffe in the sense that I am classifying what I see. I could not believe I see a giraffe if I did not know that some things are correctly identified as giraffes and some things are not. To know this is to know that some classifications are true and some false. If I were not aware of the possibility of misclassification, I would not be having a propositional thought (Davidson, 2003b, p.698)

(D) Entretanto, nosso autor se apressa em esclarecer que a constituição do pensamento não está ainda completa: não se evidencia que o objeto já tenha sido localizado mediante a intersecção de dois tipos de resposta semelhantes. Sucede que como disse C. Verheggen:

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Os significados não podem ser fixados por meras associações entre as causas típicas das proferências das pessoas e essas mesmas respostas. No nível de triangulação primitiva as respostas das pessoas, ainda quando são compartilhadas, são por si mesmas ambíguas (Verhegger, 2007, p. 100)

Para que “duas perspectivas privadas convirjam a fim de marcar uma posição no espaço intersubjetivo”, é necessário que as duas reconheçam que estão coincidindo na definição deste ponto ou padrão. Para isso, “a única forma de saber que a criatura que ocupa o segundo ponto está reagindo ao mesmo objeto é saber que ela está pensando acerca do mesmo objeto” (Sinclair, 2005, p. 714), para isso se requer a comunicação lingüística. Diz Davidson: “Para que duas pessoas compreendam juntas que estão nessa relação, que seus pensamentos se relacionam deste modo, é necessário que estejam em comunicação” (Davidson, 1992, p. 161).

Davidson sustenta que nossa captação de objetos e direções em um espaço objetivo – isto é, independente de nossos pensamentos – surge através do reconhecimento, garantido pela comunicação lingüística de outro ser que está compartilhando pensamento sobre objetos e direções que existem independentemente destes pensamentos. Como sustenta Sinclair:

As conexões causais são descritíveis em termos intencionais e, portanto, abrem espaço para o erro, somente quando as linhas causais convergem mediante a interação social, e apenas quando as respostas a tal convergência são mutuamente relevantes para as criaturas envolvidas nessa interação. O status intencional dos pensamentos de um falante, que surge mediante o processo de comunicação lingüística, é assim dependente das dinâmicas causais e sociais presentes na triangulação (Sinclair, 2005, p. 714).

Desse modo, Davidson expõe sua tese de que pensamento e linguagem são mutuamente dependentes e se desenvolvem simultaneamente, ideia que

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desenvolveria até o final de sua obra (Davidson, 2001, p. 293).

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 122-128)