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Os animais não-humanos são dotados de capacidade nômica?

No documento Linguagem e Cognição. (páginas 191-197)

Partindo da reflexão sobre a imagem do homem como animal nômico, isto é, como animal dotado de uma capacidade nômica, eu gostaria de estender a investigação sobre o comportamento normativo e sobre a capacidade normativa aos animais não- humanos, impondo-me a seguinte pergunta: mas se humanos são animais normativos, são os únicos animais em condições de agir à luz de normas?

Geralmente, se tende a pensar que os animais não-humanos não possuem e não podem ter esta capacidade normativa, isto é, esta capacidade de agir à luz de normas, como se esta fosse uma característica própria do homem6.

Esta tese foi expressa, por exemplo, precisamente em relação aos chipanzés, pela famosa etóloga Jane Goodall no ensaio Order without Law, 1982,

6 Devo dizer que neste ensaio me concentrarei sobre a normatividade (que poderia chamar)

“deôntica” para distingui-la da normatitividade “epistêmica”. Para uma pesquisa sobre normatividade epistêmica nos animais não-humanos remeto a Danón 2011 e 2016. Laura Danón (2016: 210), investigando a capacidade antecipatória dos animais, junto da capacidade de ler na mente de outro (mindreading), especula, como alternativa, a capacidade epistêmica animal de fazer previsões com base em regras comportamentais: “When some animals predict the behavior of others in a way which suggests they are mindreading, it is always possible to give an alternative explanation, according to which they are exclusively basing their predictions on ‘behavioral rules’ that associate the available behavioral/environmental cues with the consecutive behavior of the agent”. Sobre esta alternativa, ver Povinelli & Vonk 2003, Povinelli & Vonk 2004 e Penn & Povinelli 2007.

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em que, estudando o comportamento dos chipanzés do Gombe National Park, na Tanzânia, conclui que, no caso dos chipanzés, existe, sem dúvida, uma “ordem social” sem que existam paralelamente um “direito” ou “leis” como nós os entendemos7.

Recentemente, para os primatas não-humanos, a mesma tese foi formulada e sustentada por Keith Jensen, Amrisha Vaish e Marco F. H. Schmidt (Jensen, Vaish & Schmidt 2014), os quais escrevem que “[a]t present, there is no evidence that primates have anything resembling norms”. Segundo eles, “[t]hey do follow sanction- based ‘rules’ in their groups, such as ‘subordinate individuals do not take food away from dominants,’ but there is nothing binding or general about these. Individual learning and fear of retaliation is sufficient. Primates have been said to have a ‘respect for possession’ in which dominant individuals will not take food from subordinates (Kummer and Cords, 1991), but this is, of course, not a normative notion, and a rather crude analogy to the normative institution of ownership in humans.”

Uma tese semelhante é apoiada também por George P. Fletcher (2003: 87), o qual, refletindo em particular sobre fatos institucionais e sobre regras constitutivas, e referindo-se à famosa fórmula de Searle “X counst as Y” (fórmula que representa a estrutura das regras constitutivas), escreve:

Prelinguistic beings and animal cannot score points [in a game of, say, football]. They can kick the ball over the goal, thus satisfying the X term [of the constitutive rule of the goal]. But, Searle holds, without language, they cannot be said to be kicking the ball in order to score a point. They can accidentally act according to the rule, but, without language,

7 Obviamente se põe aqui, agora, a pergunta: que coisa determina esta ordem social, se não

existem normas? Além disso, um interessante contributo para a resposta a esta questão deriva da pesquisa sobre o “empurrão”, sobre o impulso, o impulso suave, apresentada pelo jurista Cass R. Sunstein e pelo economista R.H. Thaler (veja-se, por exemplo, Thaler & Sunstein 2008 e Sunstein 2016).

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they cannot act because the rule8.

Em sintonia com a ontologia social de John Searle, a cuja análise o ensaio de Fletcher, intitulado Law é dedicado, Fletcher parece pôr em evidência o essencial papel desenvolvido pela linguagem para a compreensão das regras (em particular, das regras constitutivas) e, portanto, para o agir conforme ou à luz delas. Coerentemente com esta hipótese, segundo Fletcher, os animais pré-linguisticos, ou seja, os animais não-humanos e os recém-nascidos podem agir “according to the rule”, mas não “because the rule”.

Também John Searle, no livro Making the Social World: The Structure of Human Civilization, publicado em 2010, parece concordar com a ideia de que, na ausência de linguagem ou de qualquer forma de simbolismo no contexto de certas dispozições comportamentais que geram regularidade comportamental, não pode haver o reconhecimento de obrigação ou de dever.9 Em particular, Searle distingue

entre disposition (disposição comportamental) e obligation. Segundo Searle (2010: 95):

[W]e need to distinguish a simple disposition not to cross the line from the case where one recognizes that one is under obligation not to cross it. I might train my dog not to go outside

8 Aqui surgem novas perguntas, na interseção entre a etologia da normatividade e a

ontologia social: podem existir regras constitutivas nas sociedades animais? Podem os animais não-humanos atribuir funções-de-status às coisas? Uma resposta negativa a estas duas interrogações parece proceder de Hannes Rakoczy (2015: 683), o qual sustenta que, diferente dos primatas humanos, os primatas não-humanos não podem pensar em termos de “counts as” e por isso não podem aceder a uma ontologia social plena de “objetos socialmente construídos”: “There is a great divide when it comes to how human children and non-human primates carve up their social environment: only human children then go on to use their essentialist and generic thinking for developing a distinctively social ontology, to conceive of their surrounding in terms of socially constituted objects governed by general prescriptive norms”. Ver também Rakoczy & Tomasello 2007.

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my yard simply by punishing him when he does and rewarding him when he stays inside the boundary. I have changed his disposition so that he will stay inside the yard. But so far there is no question of obligation or duty involved.

E acrescenta: “[f]or humans there will no doubt be a gradual transition between dispositions to behave and recognitions of obligations”. A distinção entre “simples disposições” e “estruturas normativas e institucionais” é exemplificada, segundo Searle (2010: 95), pela diferença entre o fato de que uma tribo tenha um líder reconhecido e um grupo de lobos um macho alfa: The leader has a continuing deontic status, an authority represented by and created by language. The alpha male wolf is treated with fear and respect because of his physical strenght, but he has no publicly recognized deontology”.

Searle (2010: 95-96) sustenta que para reconhecer uma obrigação como dever é necessário o conceito de “dever”, único instrumento teórico que nos permite representar algo como um dever. Não é necessário ter a palavra “obligation”, mas tem que haver um “aparato conceitual” bastante rico para representar estruturas normativas e institucionais, a saber, o que Searle chama “deontology”.

Mas é verdade que os seres humanos são os únicos animais em condições de agir à luz de normas? Além disso, é verdade que a linguagem é uma pré-condição necessária para o agir nômico? È a estas interrogações que é dedicado o presente ensaio.

Sem dúvida, muitos etologistas, para descrever, e às vezes, explicar o comportamento animal, recorrem abundantemente às categorias “norma”, “regra”, “lei” e “dever”. Por exemplo, Niko Tinbergen, no livro Social Behavior in Animals (1953; trad. it.: 110), escreve que existem algumas espécies de animais sociais cuja vida do grupo é regulada de forma intensamente hierárquica, por uma série de “nomotheti” (em cujo vértice está o macho alfa, o déspota) os quais ditam leis aos indivíduos inferiores: “Um só é “déspota”, e comanda sobre todos os outros; há o indivíduo inferior ao déspota, que por esta razão dita leis ao resto do grupo; segue, no terceiro lugar, o animal que tolera imposições apenas do déspota e de seu sucessor imediato: e a hierarquia continua neste passo, compreendendo todos os

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Encontramos uma análoga imagem de dominante como “legislador” em Frans de Waal (1991: 340), o qual fala de “formação de regras desde cima”. Segundo de Waal, os membros dominantes de um grupo social “põem limites ao comportamento dos membros subordinados”:

Rule-formation “from above” may well have been prototypical during the evolution of human systems of morality and justice. It is noteworthy that we observe the anticipation of punishment mainly in species with a strong sense of hierarchy; it is much less pronounced in nonhierarchical species (negative evidence is a notoriously difficult issue, but I do have a lifelong familiarity with domestic cats and have never observed a trace of disquietude even after the most serious breaches of house rules in my absence). Fear of disciplinary actions by dominant members of the group, although not the same as guilt, probably represents an early stage in the evolution of a moral sense.

Com isto permanece em aberto o duplo problema da consciência com o qual os etólogos utilizam estas categorias da normatividade10. Uma resposta negativa para

a questão de os seres humanos serem os únicos animais em condições de agir à luz de normas, provém de diferentes investigações que recentemente foram conduzidas por etólogos, juristas, e filósofos sobre o hipotético agir moral, jurídico e normativo dos animais não-humanos11. Em particular, estas diferentes vozes que

10 Aqui, a pesquisa filosófica pode certamente auxiliar a pesquisa etológica.

11 Junto destas pesquisas, existem também numerosos estudos etológicos sobre a

capacidade dos animais de seguirem “normas culturais” relativas à utilização de instrumentos. Para poder falar de normas culturais, os etólogos sublinham a importância de que elas são convencionais, isto é, relativas a uma determinada comunidade animal (por exemplo, ver Whiten, Horner & de Waal 2005). Em particular, sobre os critérios para investigar a natureza cultural dos “social customs”, ver McGrew & Tutin 1978. No presente

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especulam sobre a possibilidade de um agir normativo animal parecem abrir a via para um novo campo de pesquisa: a etologia da normatividade.

Lembro que nos anos 60 do século passado, também Friedrich August von Hayek, no ensaio Notes on the Evolution of Systems of Rules of Conduct, 1967, considera a questão do comportamento normativo dos animais não-humanos, quando investiga as regras de conduta nas sociedades humanas e animais:

A society of animals or men is always a number of individuals observing such common rules of conduct as, in the circumstances in which they live, will produce an order of actions.12

Segundo Hayek, os casos mais evidentes de comportamento normativo animal consistem em “modelos espaciais” de ações, durante transferências e operações de defesa ou de caça realizadas por grupos:

The arrow formation of migrating wild geese, the defensive ring of the buffaloes, or the manner in which lionesses drive the prey towards the male for the kill, are simple instances in which presumably it is not an awareness of the overall pattern by the individual but some rules of how to respond to the immediate environment which co-ordinate the actions of the several individuals.13

Neste ensaio, embora me deslocando entre investigações sobre a moralidade e

ensaio focalizarei a atenção fundamentalmente sobre “normas sociais”.

12 Hayek [1967]2014: 279. A mesma tese reaparece em Hayek alguns anos depois

([1973]1982; trad. it.: 97): “O estudo comparado do comportamento mostrou que em muitas sociedades animais o processo evolutivo de seleção produziu formas de comportamento muito ritualizadas, governadas por regras de conduta cujo efeito é reduzir a violência e outros métodos danosos de adaptação, e portanto, assegurar uma ordem pacífica”.

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também sobre a juridicidade do agir animal, gostaria de me concentrar especificamente sobre a questão da normatividade do agir animal, provavelmente uma pré-condição da moralidade e da juridicidade, que frequentemente é deixada em segundo plano14. Apresento, neste momento, uma reconstrução das três

principais pesquisas que contribuíram para a investigação sobre o agir normativo dos animais não-humanos.

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