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2. RASTROS INTRODUTÓRIOS

2.6 As crises e as criações

Criar, um verbo tão buscado que por vezes pode cair num corriqueiro modo de utilização. Deleuze e Guattari (2010) em O que é filosofia? nos ajudam a perceber melhor isso, ao tratarem daquilo que é específico da filosofia: criar conceitos. Para esses autores o pensamento ocorre porque é impelido por problemas, eles são o cerne de toda criação, “[u]m conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma e n c r u z i l h a d a d e p r o b l e m a s e m q u e s e a l i a a o u t r o s c o n c e i t o s coexistentes.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 26). É preciso juntar aqui a noção de problema à de crise, para podermos entender o que se passa quando falamos de crises e criações na educação. Qual é a força disso para que novos processos

(éticos e estéticos) possam encontrar passagens na escola e no cinema? Que os problemas nos permitem a instabilidade necessária para pensarmos, a isso estamos aliados à filosofia da diferença, queremos agora é partir disso para interrogar o que fazer com eles na educação escolar através de práticas com o cinema.

Há uma espécie de angústia quanto a educação escolar, algo que empurra algumas pesquisas a adotarem estratégias que visam, na melhor das intenções, contribuir para alguma espécie de saída alternativa — e quando se fala da escola pública isso é ainda mais evidente: “Como ultrapassar e caminhar para melhor no contexto atual da escola pública?” (TOMAZI, 2015, p.11). Não é algo específico desse ou daquele trabalho, em muito do que se lê da produção brasileira sobre a escola na relação com algum tipo de arte aparece algum sentimento de superação daquilo que a escola se tornou. Temos interpretado nossa passagem pela escola através dos vários encontros críticos com ela, como sacudidas necessárias para a invenção de outros processos em seu interior. Há uma espécie de alegria desconfortável, a qual muito me atrai não só como pesquisador, mas como professor da escola pública. A maneira como interpreto isso, segue próximo a que Peter Pal Pelbart (2013), ao buscar certos conceitos na obra do psiquiatra François Tosquelles, escreveu: “a reação catastrófica, que no homem se manifesta como angústia, não seria o fim, porém condição para um novo começo.” (PELBART, 2013, p. 39). É com essa perspectiva que entendemos que a criação na escola pode se fazer potente, não pela vontade de ser criativo, mas por uma necessidade de viver em meio ao labirinto. Longe de criticarmos trabalhos que se produzam noutras políticas com as imagens e com a escola, nosso esforço é sempre de ressaltá-los, de apontar quantos caminhos tem sido abertos para experimentações com cinema na escola. Também não é nossa tarefa realizar a crítica à escola, há muitos escritos nesse sentido. Acreditamos ser por um esgotamento das possibilidades que novos possíveis se apresentam. É com eles que navegamos.

Em se tratando de encarar a escola como lugar (MASSEY, 2008), qualquer crise é potencialmente inventora de novos devires, os quais agem em detrimento de suas múltiplas conexões, de modo pouco previsível “[…] [em] um tecer de estórias em processo” (MASSEY, 2008, p. 191). Esse tecer em processo que nos coloca sempre pelo meio, que acentua os meandros por onde tentamos

escapar, que nos força para percebermos os entres e não os fins, nos parece que esse tecer é constante e em ritmos variados. Nos movimentamos, as vezes mais lento outras vezes com mais fulgor. De qualquer forma, toda espécie de crise em uma escola é parte do que circula por ali, daquele aqui e agora que compõe as conexões, e, elas carregam em si aberturas as quais não se pode parar, muito menos prever quais movimentos desencadearão, nem mesmo se com elas novas crises se instalarão naquele lugar. É o tecer de cada lugar.

A força de algumas imagens de cinema — ao menos ao tipo de arte que tentamos fazer — está para a escola mais na ordem do desassossego que o contrário. É a dobra do espacial sobre a arte, e da arte compondo dobras num espacial que não cessa de se transformar. Cada dobra uma crise. A crise e a criação são partes de uma mesma composição.

Em defesa das crises e não da superação delas, em face dos processos e não tanto dos objetivos, interpretamos as tensões oriundas de todo processo com a arte como pequenas fagulhas riscando faíscas na paisagem escolar, que, em algum momento se encontram, aumentam de força e tamanho, arrastando consigo a terra, a casa e o entorno, “[c]omo se o esgotamento do possível (dado de antemão) fosse a condição para alcançar outra modalidade de possível (o ainda não dado)” (PELBART, 2013, p. 45). E o cinema, parte desse tecer de estórias em processo, como mais uma trajetória na constelação espacial da escola, vem participar do incêndio no lugar. Temos encarado o cinema como uma forma não de apagar o fogo que já pulsa na escola — por vários motivos ali tudo ferve. Ele vem atuar num território movediço e por vezes já em ebulição. Ocupa o espaço e dele participa, participando transforma-se junto com o que se passa. Queremos chamar a atenção que o cinema não pode ser tomado simplesmente como uma linguagem pronta que pode ser utilizada pela escola em seu benefício, ele também é detentor de processos que fazem emergir devires em sua relação com o mundo. Poroso aos fluxos escolares que o desterritorializam, torna-se também um território movediço. Este parece ser um aspecto interessante para nossa pesquisa, sobretudo, como modo de estar na escola fazendo um tipo de arte que parece se alimentar de tudo aquilo que é tenso — impossível de ser modelada. Por que viver é tenso, e não se trata de usar as angústias do mundo como tinta para pintar uma tela que depois vai

para um grande museu, não é disso que se trata. Tão pouco de usar a arte como forma de entretenimento amortecedor das dores e ódios que nos produzem. Mas, de entendermos que a verdadeira criação não se faz de outra forma senão pelas crises. Todo artista é um ser perturbado pelas flechadas do mundo. Por isso a escola é um lugar imensamente potente para se fazer arte.

É necessário pensar também que processos são esses que a escola impõe ao cinema, criando bons problemas também para ele — enquanto uma arte inacabada que se produz com o mundo —, nos forçando a ter que experimentar outras maneiras de ver, sentir, ouvir, filmar, editar, montar, etc. Verbos oscilantes quando operam na escola, nos indicando o quão fértil pode ser essa relação, para que uma outra educação possível — com arte — possa não por fim as crises, mas instalar outras.