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Uma pausa na continuidade do texto para uma escuta com dois filmes realizados por professoras

4. POVO QUE FALTA: UM CONCEITO

4.1 Uma pausa na continuidade do texto para uma escuta com dois filmes realizados por professoras

Ainda navegando no pensamento com Lapoujade (2017), quero, com calma, observar a seguinte passagem:

Penso em uma criança que dispôs diversos objetos, grandes e pequenos, cuidadosamente, longamente, de uma maneira que ela achou bonita e ornamental, sobre a mesa de sua mãe, para “agradá-la”. A mãe chega. Tranquila, distraída, pega um desses objetos do qual vai precisar, recoloca um outro no seu lugar de sempre e desfaz tudo. E quando as explicações desesperadas que acompanham os soluços contidos da criança lhe revelam a extensão do seu pouco caso, ela exclama desolada: ah, meu amor, eu não vi que era alguma coisa! (SOURIAU, apud LAPOUJADE, 2017, p.43).

Mas o que ela não vê, afinal, nos perguntamos? O que não estaria sendo percebido pela mãe? O que ela não vê é o modo de existência do ponto de vista da criança. Ela não percebe a relação da criança a partir da composição com os objetos. “É uma virtualidade que ela não percebe, assim como um caminhante distraído não vê o esboço de uma ponte virtual numa sucessão de pedras alinhadas

atravessando o riacho.” (LAPOUJADE, 2017, p. 44). Como alguém que tem o olhar fixo em apenas um ponto, obstinada, ela não consegue desviar sua atenção para perceber algo. A partir disso, gostaria que o leitor examinasse conosco dois filmes produzidos no contexto do Programa Cinema e Educação: a experiência do cinema

na escola de educação básica de Campinas. É importante destacarmos que cada

um deles foi realizado em escolas diferentes, em situações distintas, cada um por uma professora em sua prática cotidiana de trabalho, porém, ambos estão atravessados pelo cinema como força de povoamento na escola. Ambos no contexto de experimentações propostas pelo Programa mencionado, ou seja, existem a partir de experimentações audiovisuais na escola, com aquilo que vem sendo nossa política em torno da produção de outras formas de pensar e produzir imagens.

No filme Silêncio podemos tomar como eixo principal a relação entre 51 duas crianças diante de uma câmera que filma, sendo que uma delas assume o papel de entrevistadora e a outra de entrevistada. O contexto de produção desse experimento é a parte importante que trataremos de trazer ao leitor (ainda que ela esteja por ali, de alguma forma expressada através das imagens).

O processo tem início quando a professora das duas meninas me procurou dizendo estar intrigada com relação a duas irmãs gêmeas de mais ou menos 6 anos. Mais especificamente com uma delas. Acontece que havia uma das meninas que não conversava absolutamente nada com a professora e isso a intrigava demais. A outra irmã, por sua vez, tinha uma relação de conversa relativamente tranquila.

“Por que ela não fala comigo?”, perguntou-me nos bastidores de um de nossos cursos no MIS (Museu da Imagem e do Som de Campinas). Após algumas trocas de ideias, estabelecemos que seria preciso tentar alguns exercícios usando a câmera para investigar o assunto. Intuíamos que este era um bom problema para se experimentar. A produção de vídeos na escola era uma aposta que fazíamos para poder tentar escutar algo que não sabíamos o que era.

No filme há uma composição sutil e envolvente com o espelhamento das gêmeas — cenário arranjado a partir da percepção da professora. O diálogo entre elas é algo que convida a escutar e perceber de modo mais sensível alguma coisa,

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7gb_o9keC3M&feature=youtu.be>. Acessado

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algo que não se revela com tanta certeza, mas, que é capaz de manter a pergunta pulsando: mas por que ela não fala comigo?

Sem se deixar cair pela expressiva relação de dominação (presente nas imagens), ainda que ela esteja ali e dê muitos indícios para percebermos que há algo nitidamente comunicador do tipo de ralação entre as irmãs, não nos satisfazemos simplesmente com isso. Há um pensamento que quer continuar sua crescente energia. A menina está sentada, distraída, enquanto a outra diz: “vai, fala!”. Ela se levanta, vai até a janela, manda embora uma outra criança que parece atrapalhar seu momento de filmar, retorna e continua: “pó fala, pó fala, pó fala”. O conjunto de imagens vai fazendo emergir diferentes modos de existência das gêmeas. Um misto de fala imperativa e silêncio subserviente. É como se a mecânica de uma agisse sobre a mecânica da outra, evidenciando uma relação de poder atravessada por uma câmera que filma. Penso a partir da menina, que em seu silêncio contido, força a outra a ter que agir de modo enérgico. Certo momento do filme, a irmã que filma e insiste no “pó fala”, começa a solicitar que a irmã repita o que ela diz. É a partir daí que emergem alguns traços de algo que está para além da relação entre as duas crianças, mas, também, porque uma delas é a que filma. Quero dizer algo atravessado por quem está no poder da câmera. Ela (a que filma) atira um objeto no chão que parece quebrar, a outra, delicadamente se levanta, vai até o objeto e sobre ele se abaixa, e, como se tentasse refazê-lo, deixa passar pela imagem seu ponto de vista sobre a coisa e também sobre si. É mínima essa existência e pode ser extraída daí, de um filme/experimento investido por uma professora interessada em cinema, de uma escola que se abre para compor processos educativos com arte e de todo um investimento em termos de uma política pública que tenta configurar linhas de ação na educação básica.

Poderíamos ficar aqui fazendo aquilo que normalmente se espera de uma análise da imagem, mas, para que não estreitemos os sentidos do leitor, para que não vinculemos seu olhar, vamos a algo mais interessante que o próprio filme. A conversa com a professora nos parece mais instigante que a própria imagem. É por notar nessa ação a presença de uma educadora motivada em lidar com um problema, sem necessariamente buscar resolvê-lo, de modo sensível ao que se passa, que me envolvo e percebo os indícios da tese que se apresenta. Ela (a professora) parece sugerir de modo muito sutil a necessidade de escutar com

sutilezas o que se passa nos interstícios da sua prática na vida escolar. Não se trata de utilizar a câmera para filmar o que ela procura — ver o porquê a menina fala. Mas de usar a câmera como forma de criar uma situação, uma conexão, um encontro, um cenário. Esse encontro conecta as duas meninas, a câmera ligada na sala espelhada e uma professora/experimentadora. Junte-se a isso todo o conjunto aleatória e múltiplo que produz/emerge (d)aquele lugar. É como se ela dissesse: vou ligar a câmera para ver o que acontece. Claro que ela pode fazer isso de infinitas maneiras. Mas o que a faz escolher aquelas meninas, naquela locação arranjada daquela forma? Isso é algo em torno de uma intuição, de certo ponto de vista da professora, desassossegada por uma questão que inside sobre sua prática docente naquela escola e que para continuar essa conversa só ela mesma para nos escrever.

(PA) A professora pode ter acreditado talvez que a câmera causaria uma

mudança no comportamento da menina entrevistada, mas aparentemente a mudança mais significativa ocorreu na entrevistadora, como você bem coloca. Mas eis que há também um espelho. E esse espelho não parece afetar o comportamento de nenhuma das duas. Ele se coloca quase neutro no filme, não fosse por produzir uma imagem para a qual as meninas ainda muito jovens não puderam se atentar, mas a professora sim.

Num outro filme, Mil reais , o que se passa é a presença de dois garotos 52

(mais ou menos 10 anos), sendo entrevistados por uma professora que não aparece na imagem, mas dá indícios de sua presença. A professora em questão é conhecida pelos diversos experimentos que realiza desde que iniciou seu percurso no Programa de cineclube, e, naquele momento estava tendo contato com o filme As

canções (2011), de Eduardo Coutinho, no curso de cinema realizado 2016 o qual

pude ter o prazer de ministrar. Esse filme feito por ela é, portanto, parte de um exercício de filmagem com o dispositivo As canções . 53

O modo como os garotos produzem seu ponto de vista através da letra de um funk, usando a música como forma de manifestação da amizade entre eles, é algo que extravasa a finitude de qualquer explicação ou análise dessas imagens,

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Gn2MIfwUTrA&feature=youtu.be>. Acessado

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em 05/09/2018.

Pedir para alguém da escola cantar alguma canção relevante para ela e, a partir disso, tentar

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