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Recém-chegado e ignorando totalmente as línguas do Levante, Marco Polo só podia se exprimir extraindo objetos de suas malas: tambores, peixes salgados, colares de dentes de facoqueros e, indicando-os com gestos, saltos, gritos de maravilha ou de horror, ou imitando o latido do chacal e o pio do mocho.

Nem sempre as relações entre os diversos elementos da narrativa resultavam claras para o imperador; os objetos podiam significar coisas diferentes: uma fáretra cheia de flechas ora indicava a proximidade de uma guerra, ora uma abundância de caça, ou então a oficina de um armeiro; ora uma ampulheta podia significar o tempo que passa ou que passou, ou então a areia, ou uma oficina em que se fabricavam ampulhetas.

Mas o que Kublai considerava valioso em todos os fatos e notícias referidos por seu inarticulado informante era o espaço que restava em torno deles, um vazio não preenchido por palavras.

Ítalo Calvino, As cidades Invisíveis

Este envolvente trecho acima marca o momento do primeiro encontro entre Marco Polo e Kublai Khan. Notamos como a relação entre os personagens vai sendo traçada a partir de imagens pouco definidas mas com alta potência inventiva. De um lado, o viajante, forçado a ter que criar formas de diálogo com o imperador, arriscando maneiras de dizer e fazer-se compreensível entre gestos e objetos. De outro, a atenção de seu interlocutor e as formações geográficas produzidas em sua mente. Do encontro entre os dois, cidades invisíveis vão ganhando vida. Vida que

acontece por metamorfoses. Vida indefinida que se movimenta em imagens imaginárias. Vida que se espraia nos encontros temporários através de uma língua inacabada e por vir.

A supor que o personagem Marco Polo tivesse de fato percorrido as cidades que narra ao imperador, a geografia que se apresenta, ainda assim, é outra na articulação com a fala (desajeitada). O dito, já poderia ser um outro lugar que se experimenta. Uma outra geografia sendo criada. Há um trecho em que isso fica mais claro: “para cada cidade que Marco lhe descrevia, a mente do grande Khan partia por conta própria, e, desmontando a cidade pedaço por pedaço, ele a reconstruía de outra maneira, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os.” (CALVINO, 2015, p. 43). Gestadas na escuta daquelas (e)histórias, carregadas de um realismo fantástico, detalhadas a partir de palavras inventadas num misto de sons e mímicas improvisadas, produzidas por imagens transitórias entre as conexões sutis de um diálogo pouco informativo, uma experiência geográfica que acontece por relação entre diferentes (o viajente o imperador). Os lugares produzidos pelo diálogo entre os personagens não se aparecem sob a ótica e julgamento do mais ou menos reais. Ao contrário, eles acionam sentidos e produzem cortes, como filmes que agenciam uma realidade que passa pela linguagem. As cidades invisíveis convoca relações em suas existências, nos dispõem diante da inevitável negociação produtora de um aqui-agora. O retorno da experiência vivida através do dizer — acerca das cidades supostamente percorridas —, já não representa a mesma experiência (é outra, necessariamente). A principal lição coletada por nós não é a de que os lugares são produtos da imaginação, é o contrário, a imaginação que é parte desse composto multiforme a que chamamos de lugares . 9

A geógrafa Doreen Massey (2008), em sua obra Pelo espaço: uma nova

política da espacialidade, nos ajuda a conceber melhor essa ideia. Seu combate

Apesar disso aparecer de modo mais intuitivo no livro de Calvino, podemos destacar alguns

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trabalhos científicos que na fronteira entre arte e geografia nos confirmam tal intuição. Por exemplo a tese de Ana Preve (2010) Mapas, prisão e fugas: cartografias intensivas em educação, em que é possível notarmos que os mapas produzidos pelos internos do Hospital Psiquiátrico são também uma forma de compor com aquele lugar, de habitá-lo nas suas formas de expressão. A imaginação se dá no contexto espacial a que os internos estão submetidos, é do vivido e vivível daquele lugar que se faz possível imaginar todo um conjunto de representações espaciais expressadas nos mapas que a pesquisadora analisa.

teórico no campo da geografia coloca o espacial em outras bases. Ao assumir que espaço e tempo não podem estar separados e que tanto um quanto outro são dinâmicos, ela opera conceitos diferentes para dizer: “espaço e tempo, juntos, resultado desse múltiplo devir.” (MASSEY, 2008, p. 201). As cidades — que supomos visitadas por Marco Polo — retornam intensivamente sobre a frágil língua que as (re)criam para se transformarem com as palavras e continuarem seu movimento perpétuo de diferenciação (devir). Portanto, “os retornos são sempre para um lugar que se transformou. [são] Camadas como adição de encontros.” (Ibidem., p. 202). O lugar como um arranjo de “constelações temporárias” (Ibidem., p. 209), produzido nas negociações, pelo estar-juntos, necessariamente relacional.

O conto de Calvino (2015) nos é caro por alguns motivos. Um deles (talvez o mais importante) é a atenção especial ao lugar como uma multiplicidade de encontros. Gostamos de pensar a geografia dessa maneira. Ao mesmo tempo que é criado é também criador de novas trajetórias espaciais. A segunda, em consonância com nossos escritos iniciais, é que o termo cidades invisíveis equivale ao termo

escola, tomado por nós enquanto um conjunto de trajetórias espaciais que atuam

com outras na produção dos lugares (MASSEY, 2008). A terceira, pode colocar bem nosso problema é: se o encontro entre diferenças é capaz de produzir invenções, o que seria possível de se inventar através desse estar-juntos com escola e cinema?

Tomemos as Cidades Invisíveis na perspectiva dessas três considerações. Pensemos com as cidades as possibilidades criadas para que pudessem existir — do encontro do viajante com o imperador e dos modeos de composição de ambos. Ao que se passa sobre elas passa também as possibilidades que as engendraram, passa, sobretudo, um novo possível que se abre à diferença como potência de devir. Essa meditação que nos coloca diante das possibilidades de interlocução criadas entre os personagens, sobretudo, através de Polo e sua experimentação com a língua que não domina, e de um possível potencial inventivo desdobrado dessa interlocução, permitindo a nosso ver uma geografia fabulada, com a (na) qual o imperador percorre seu império sem sair de seu palácio. Algo que nos lembra o próprio cinema.

1.3.1 Introdução à ideia de vazio

Há uma visão interessante numa passagem retirada desse livro, que remete diretamente aos momentos de busca por algum entendimento entre os dois personagens, e, que é chamado por Kublai de “vazio valioso”. Esses vazios carregados de incerteza e gigantesca força inventiva, por vezes presentes em nossas relações com o mundo. Quantas vezes não nos pegamos movimentados por não saber bem ao certo o que fazer? Ou mesmo quando sabemos o que temos que fazer mas não compreendemos ao certo o que se passa de fato? Esta sensação de movimento e ao mesmo tempo incerteza, pode ser compreendida a partir de uma noção muito instigante desenvolvida por Nietzche: “[…] este mundo: uma monstruosidade de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas transmuda […]. Esse mundo que é a vontade de potência — e nada além disso!” (NIETZSCHE, 1983, p. 397). O vazio como vontade de potência, ou seja, como força indizível de algo sem uma linguagem a priori que possa lhe dar a existência apreensível. É possível ler as palavras de Khan numa ótica ainda mais criativa, ao mirarmos os vazios com a percepção que no mundo há muito dessa

vontade de potência, porque todas as forças procuram a sua própria expansão e

elas se expandem no risco e incerteza da carga de devir que são capazes de acionar. Processos que se abrem para que algo venha acontecer. O por vir. Cada força constitutiva disso que chamamos por mundo, ao abrir novos horizontes de possibilidades, encontra (ou faz encontrar) novas passagens para devir ainda outras. Trata-se de mirar o real a partir da criação de novos caminhos, articulando outros possíveis. Vazio, portanto, não tem nada haver com falta, ao contrário, o que interessa são os excessos de potência. Quando trazemos essa ideia para compor com nossas questões, desejamos chamar atenção do leitor para esses vazios que a escola agencia, tanto para si quanto para o cinema, como vozes inaudíveis que adormecem no vazio pulsante de possibilidades. Criar, significa ser ativo no mundo, criar suas próprias condições de potência, fazer emergir as vozes que precisam de outra espécie de sonoridade. Não há falta a ser preenchida, somente excessos que transbordam o vivido e vivível. Como conseguir ver, ouvir, perceber isso na escola?

Khan parece sugerir uma outra direção, que, ao invés da falta, tem a oferecer outras perspectivas mais criativas. Para toda possibilidade há um outro possível que já se apresenta, em função de seu esgotamento inevitável, nem sempre percebido, nem sempre identificável. O possível se faz na/pela negociação com aquilo que existe. Faz-se por desajustes e novas composições, está na relação. Zourabichvili (2000), por exemplo, em um texto que está a pensar aspectos políticos do pensamento de Gilles Deleuze, menciona em certo momento algo caro para nosso trabalho, que o possível é algo que se cria, “o que é possível é criar o possível […]. O possível chegando pelo acontecimento, e não o inverso.” (ZOURABICHVILLI, 2000, p. 335). Para este autor, o possível se coloca na conexão com o acontecimento que o engendra e o desfaz. É, antes de mais nada, uma questão de agir. Ou, como melhor expressado pelo cineasta Cao Guimarães , ao invés de 10

produzirmos imagens como forma de contemplar o real, pode-se lançar-se nesse real como alguém que mergulha num lago e de dentro compõe outras intensidades. Imagem sugestiva para uma prática de cinema na escola, não?

Usando o exemplo de Polo e Khan para pensarmos melhor nisso, afirmamos que ambos (os personagens) são afetados e agem na tensão que estabelece o diálogo entre eles, porém, seguem em direções diferentes. Ocupam no mundo conexões distintas. Pólo, o viajante intermitente. Khan, o imperador sedentário em seu palácio. Nesse processo de invenção — da fala e na audição (ambas ativas) —, em que uma língua menor vai devindo sua existência (e 11

partilhando a existência de um momento entre os dois), criando outros possíveis para a relação que se estabelece, as cidades invisíveis ganham formas e

Há uma belíssima entrevista de Cezar Migliorin conversando com Cao Guimarães que ajuda a

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pensar melhor essa questão de agir com a arte e que pode ser acessada em <http:// www.caoguimaraes.com/wordpress/wp-content/uploads/2012/12/cinetica-cinema-e-critica-2006.pdf> acessada em 28/06/2018.

O conceito de língua menor, desenvolvido por Deleuze e Guattari (1977), cabe aqui para

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pensarmos essas línguas inventadas no interior de línguas maiores. Estamos tratando de Polo inventando sua própria língua no interior do Mongol (que ele não domina), mas, que também nos serve para pensar o cinema na escola como uma minoria que, desde dentro do que já se estabeleceu como maior nessa relação, cria brechas e dá passagens a novos processos (menores). “Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura, deve escrever em sua língua, como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um usbeque escreve em russo. Escrever como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto.” (DELEUZE, GUATTARI, 1977. p. 28).

intensidades que não se vinculam necessariamente a representação das formas e verdades geográficas. Ao mesmo tempo que se desfazem das linhas que as configuram, elas se abrem também em outras possíveis geografias (a serem fabuladas), compõem com trajetórias espaciais literárias imaginadas.

A respeito dessa ideia entre invenção e geografia, tomamos duas contribuições que elucidam outras maneiras de conceber a geografia escolar. Na primeira delas, Doreen Massey (2008) nos ajuda a pensar o lugar a partir dos encontros efetivados, o lugar como uma eventualidade, “em parte, no simples sentido de reunir o que previamente não estava relacionado, uma constelação de processos, em vez de uma coisa.” (MASSEY, 2008, p. 203). O lugar, portanto, como algo inapreensível — seja através de uma palavra, seja através de uma imagem —, como algo inacabado que nos convida a perceber (e agir em) processos. Seriam as

Cidades Invisíveis de Calvino geografias inventadas na relação com a arte de

narrar? Na segunda, agora na visão de Oliveira Jr., que, ao pensar a presença das imagens na escola — a fotografia, o vídeo, o filme, etc. — como formas outras de grafar o espaço — para além do mapa extensivo, explodindo a representação, acionando a invenção como política educativa —, dá passagens ao que o autor chama de geografias menores. Segundo ele: “estas são como ilhas no entorno do continente da geografia maior, são potências de expansão desse continente, são também as primeiras aproximações desse continente para quem vem do oceano livre e flutuante do pensamento …” (OLIVEIRA JR, 2009, on line). O que teriam de geografias menores na relação de Khan e Polo que poderia nos sugerir pensar também o a escola? Ao tomarmos as imagens (sejam via literatura, cinema, fotografia, etc.) como outras potências de grafar os espaços, não estaríamos correndo o alegre risco de encontrar esses vazios que nos permitissem imaginar outras geografias? O que estas duas contribuições fazem em comum é nos ajudar a perceber o lugar não como algo parado e inerte no tempo, mas, ao tomá-lo como processo, apontam que é nas ligações realizadas que podemos perceber uma geografia sendo produzida.

Dito isso, gostaria de poder mesclar essa conversa inicial da obra de Calvino (2015) com algumas questões que pautam nossa pesquisa, afinal de contas trata-se de estabelecermos com a escola uma conexão mais sutil acerca dos

processos que a produzem daquele, e não de outro, jeito. Quando lemos, dizemos ou ouvimos a palavra escola — a mim pelo menos —, parece que por apagamento, todas as singularidades cedem a um traço comum: a escola como instituição. A título de exemplo, o mesmo ocorre com a palavra cidade, que parece grudar um conjunto de elementos quase que homogêneos que a referenciam na concepção de urbanidade. Também a palavra escola assim o faz, gruda para si sentidos duros e homogêneos que logo nos faz mirá-la sob um determinado prisma. Por isso é comum dizermos: “na escola as coisas são assim” ou “trabalhar na escola é lidar com isso”. Ainda que a trajetória institucional seja forte na produção do lugar escola, outras tantas (diferentes e menores) estão sendo produzidas e desarticulando-se em seu seio. Como não queremos perder estas outras de vista, temos que nos manter atentos pela escrita, de modo a encadeá-las no bojo de nosso trabalho. Dessa forma é que nos interrogamos: e se pensarmos o lugar-escola não só a partir da força institucional que certamente a constitui mas na comunhão com tantas outras trajetórias que a cortam e a produzem também?

Assim, tomar escola no sentido que Doreen Massey (2008) aponta para a noção de lugar: “Como um tecer de estórias em processo, como um momento dentro das geometrias de poder, como uma constelação particular, dentro das topografias mais amplas de espaço, e como em processo, uma tarefa inacabada” (Ibid., p. 191). Escola como um momento? Sim. Ainda que carregue em si os traços comuns a que a palavra escola está sujeita, quais diferenças poderiam emergir se nos permitimos estar atentos a esses vazios que copulam outros possíveis? Para isso, apostamos em lidar com o cinema dentro da escola como um encontro engendrado por processos de experimentação e diferenças de um sobre o outro, que — assim como no caso de Khan e Polo — podem formar cidades invisíveis.Que vazios e possíveis podem um cinema e uma escola quando se encontram? Ou melhor, quais experiências nos permitem conectar escola e cinema? Esta pergunta é uma espécie de vela para nossa navegação.

Porém, trataremos disso somente no capítulo três, buscando lidar com elas e com as várias negociações que atravessaram o nosso fazer em uma escola municipal. Inicialmente, julgamos procedente identificar quais possíveis a relação cinema e escola já vem produzindo na atualidade. Nos determos a seguir em tratar

da consulta sobre algumas teses e dissertações, buscando perceber quais outras pistas elas nos dão para investir sobre as questões já colocadas. Identificamos uma diversidade de ideias nas experimentações e políticas com as imagens. Porém, alguns cortes necessários nos ajudaram a trazer para o corpo da pesquisa apenas trabalhos acadêmicos que conversassem a partir da produção de imagens audiovisuais em contexto escolar.