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2. RASTROS INTRODUTÓRIOS

2.5 O cinema como encantamento ou como sobra?

No início de um capítulo intitulado Reflexões sobre algumas experiências

de cinema e educação, Adriana Fresquet (2013) nos apresenta um cenário em

expansão: “os possíveis vínculos entre o cinema e a educação se multiplicam a cada momento, a cada nova iniciativa ou projeto que os coloca em diálogo.” (FRESQUET, 2013, p. 20). De fato, a aprovação da lei 13.006 e toda a gama de interesses em torno dela são resultados de um momento de marcante presença do audiovisual, não só na escola mas em práticas variadas com a educação — universidade, cursos de formação continuada, exposições de arte, etc. Cenário que vem possibilitando ações interativas que muitas vezes sugerem a arte como um caminho alternativo para a escola. Muitas pesquisas apostam no cinema como um modo de promover encontros que, em geral, apontam um certo encantamento com o audiovisual — como aposta em uma educação mais criativa e mais interessante para os alunos, sobretudo aqueles da educação básica.

Quando a educação — tão velha quanto a humanidade mesma, ressecada e cheia de fendas — se encontra com as artes e se deixa alargar por elas, especialmente pela poética do cinema — jovem de pouco mais de cem anos —, renova sua fertilidade, impregnando-se de imagens e sons. (Ibidem. p.20).

Assim, nesse mesmo sentido, buscando intensificar experiências com imagens que realizem a defesa do cinema nesses espaços “ressecados”, alguns trabalhos esforçam-se em qualificá-lo como possibilidade de ação intensiva, ou como disse a autora, de “fertilidade”. Esta ideia encontra-se dispersa e anunciada de diversas maneiras, mas quase sempre de modo marcando em publicações da área. Como no trecho de uma pesquisa que cita “É porque acredito que o cinema é um dispositivo educativo sedutor e potente, que desenvolvi esta pesquisa para pensar o cinema enquanto um acontecimento capaz, tanto de expressar pensamentos,

quanto de suscitar pensamentos.” (GUIDOTTI, 2013, p. 15). De fato — Bruzzo já abrira essa seara em 1993, e não só ela —, seja produzindo, assistindo ou conversando, num contexto onde tantas pessoas se encontram, em que várias trajetórias educativas se cruzam (ou podem se cruzar), concordamos com trabalhos dessa ordem, que vem em coro defender pesquisas em torno de uma educação mais criativa, com políticas publicas que valorizem as ações de projetos com imagens na escola. Se pudermos investir em filmes de estilos muito variados, melhor ainda, olhando para as diferenças que eles podem causar em nós e no mundo, percebendo e inventando outras maneiras de expressar os fluxos que nos compõem. Porém, gostaria de pensar aqui algo muito breve e que se adensará no capítulo seguinte, em que trataremos do campo da pesquisa. Trata-se de uma sensação nossa, de que a relação cinema-escola é sugerida como uma espécie de ilusão. Talvez emprestada de um dos princípios básicos da origem do cinematógrafo, como modo de ludibriar os espectadores fazendo-os crer que as coisas acontecem independentes deles.

É nítido aos trabalhadores e trabalhadoras da educação um esgotamento nas relações com o trabalho escolar. Hoje em dia a tensão que corre entre os meios educativos, em detrimento de uma política pautada na tradição e pouco ampliadora das múltiplas formas do pensar. Como educador em escolas de educação básica e um leitor interessado em filosofia da educação, noto que tanto as condições de trabalho quanto de pensamento sofrem hoje em dia no Brasil uma precarização estrutural. Faz-se perceptível, de um modo geral, que a desvalorização tanto profissional quanto ética é um sintoma presente tanto na educação básica quanto no ensino superior — apesar das diferenças de remuneração profissional e investimento em pesquisa (em queda vertiginosa). Como exemplo disso, movimentos de ocupações de escola públicas vem proliferando pelo país — força que teve início em 2015 e que anda um pouco sossegado demais. Esse esgotamento nos empurra, nos impele, violenta nossos corpos e nos força a enfrentar as forças de um mal perverso. Um mal que está aí e trabalha exatamente com formas de ludibriar massivamente a população. Como se não tivéssemos aprendido com as estratégias de Goebles em sua propagando nazista. Nos mexemos porque caímos em um abismo sem fim. Ao cair um corpo se move e

acontece. Assim, aproximações ao universo das criações artísticas parecem sugerir caminhos alternativos, onde tal esgotamento — entendido como crise produtora — 25

possa retornar sobre si e desdobrar outras possíveis alternativas nesse cenário de reivindicações por direitos básicos. “Trata-se de um saber sobre o sofrimento” (PELBART, 2013, p. 37) que nos empurra, e, faz da crise “uma espécie de decisão, não o resultado de uma série, mas antes o começo, uma origem, que cria um espaço e um tempo próprios […]” (Ibid. p.37), uma espécie de genealogia dos processos de criação que, longe de espantar as crises e os esgotamentos, faz dela um terreno fértil. Nos parece que muitos trabalhos vão mais ou menos nessa direção ao apostarem na invenção de processos outros em educação, com alguma ressalva: a de encantamento pelo cinema como um agente salvador da escola — como se ele mesmo pudesse dar um respiro as pressões. É comum que, diante de tamanha aridez, nossa sede por soluções emergenciais emirja como uma espécie oásis — uma paisagem ilusória.

A pesquisa de Tatiana Mendes Pinto (2015) aplica-se em um projeto de cinema na escola intitulado Cinema para Todos . Entendendo a escola como 26

reprodutora das relações sociais na contemporaneidade, essa autora aponta a necessidade de fazer do ambiente educacional um lugar onde as imagens e os meios de produção e reprodução digitais estejam mais afinados com a realidade daqueles que a frequentam (PINTO, 2015). Um princípio interessante do ponto de vista dos direitos e lutas pela igualdade das possibilidades.

Quando Nietzsche descreve o que é o mundo enfatiza o complexo de forças, sempre em

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movimento, sempre em alternância, sempre em retorno e mudança. “eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio […] esse mundo é a vontade de potência […]” (NIETZSCHE, 1983,p.397). Esgotamento enquanto crise que empurra as forças, a criação do novo é um conceito que encontra ressonância nessa proposição de mundo, sobretudo, se tomarmos emprestado os escritos de Pelbart que parece sugerir o esgotamento como um estado de criatividade, valendo-se de autores como Agambem, Tosquelles, Deleuze, Simondon, Guattari. “Não estamos nós todos nesse ponto de sufocamento, que justamente por isso nos impele em uma outra direção?” (PELBART, 2013, p.34). Gostaríamos que os leitores pudessem compreender nossa escrita sobre esgotamento nesse sentido.

O Programa Cinema Para Todos é uma iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, através 26

da parceria entre a Secretaria de Estado de Cultura (SEC) e Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC), sendo uma ação do Rio Audiovisual – Programa de Desenvolvimento da Indústria Audiovisual do Estado do Rio de Janeiro. O Programa é realizado pelo ICEM – Instituto Cultura em Movimento, que estimula e democratiza o acesso dos alunos da rede estadual às salas de cinema, provocando debates e reflexões dentro e fora da sala de aula.

Uma grande aposta com o cinema e as questões sociais é fazer dele um mecanismo produtor de vínculos entre os diversos sujeitos. Segundo sua pesquisa: “o objetivo principal era analisar em que medida a experiência com o cinema poderia gerar vinculações sociais dos alunos entre eles e em relação às suas comunidades.” (PINTO, 2013, p. 160). Quantos de nós educadores já não nos deparamos com a necessidade de fazer com que os alunos se identifiquem com as escolas? Em tempos de crise a escola acentua suas funções sociais de proteção, controle e assistência. Mas também de encontros. Diante disso há uma força tremenda em vincular pessoas em torno de processos artísticos que transformem os meios em que elas estão inseridas. Aliás, sem vínculo, sem a confiança necessária (quase sempre demorada e penosa), pouco acontece. O problema não é o vínculo, mas como e por quais caminhos ele se dá. A arte tem esse poder.

Diante disso, é possível situarmos a relação cinema e escola num viés mais ou menos de encanamento do primeiro sobre o segundo. O que nos esboçaria uma espécie de escola genérica — lugar de crise na educação — e do cinema como arte que transforma as realidades (também genérico). O mais interessante, ao que nos parece, tem sido encontrar experiências que escapam dessa tendência genérica sem perder de vista os ganhos que essa relação propicia. Apostas que fazem da escola e do cinema algo singular, pensado num contexto muito específico a cada experiência vivida, assim, seria mais interessante apontar aquela escola e aquele cinema. Ambos como processos por vezes carregados de desvios e frustrações.

Cezar Migliorin em seu trabalho com o projeto Inventar com a Diferença 27

guarda uma parte em seu livro (2015), na qual se dedica a meditar sobre os necessários fracassos gerados na relação do cinema com a escola. Uma mescla de percalços e oportunidades que nos colocam diante daquilo que não se realizou, ou seja, uma espécie de desencanto com algo que parecia ser a aposta inicial e cedeu lugar a desajustes. Necessários? Certamente que sim. Aliás, encontrei muito pouco desse tipo de escrita que nos indica aquilo que não se efetivou, que nos dá margens para encontrarmos questões sobre o que escapou. Esse tipo de informação contribui demais para vislumbrarmos movimentos educativos, através de uma força

O projeto visa oferecer formação e acompanhamento a educadores de escolas públicas de todo o 27

experimental de fato, aquela que não deixa de acontecer. Percebemos que há um esgotamento também no modo como idealizamos/escrevemos nossos projetos, quase sempre viciados de objetivos com uma educação escrava de expectativas. Trazer para o universo da divulgação científica nossos equívocos e aprendizagens decorrentes de nossos felizes “enganos” é algo que precisa acontecer em maior número de páginas. Seria nosso encanto com a dita escrita acadêmica? Pois escrevamos cada vez mais acadêmicos alterando as formas consagradas de fazer ciência, é ela também um plano de pensamento e re-existência.

A escola está repleta de problemas, e, felizmente o cinema que sobre ela se aventura também transborda deles. Isso é bem observável quando tentamos reproduzir filmes pouco conhecidos para jovens pouco habituados com alguns estilos. Certa vez, por exemplo, tentei passar um filme de Eduardo Coutinho para uma turma de oitavo ano, numa disciplina de geografia que eu ministrava no SESI Campinas. Tentava compreender a relação urbano e rural através das falas dos personagens. Levei o filme “O fim e o princípio”. Frustrei-me ao perceber que mais da metade da sala dormiu antes da metade do filme. Dias depois eu ainda pensava naquilo e me interrogava de maneiras diferentes do por quê. Na interrogação é possível já perceber algumas forças que nos governam e delineiam nossas ideias sobre ser um bom ou mal educador. O sono é uma das dádivas do ato de viver. Empolguei-me com essa situação quando entendi o que aquilo que intrigava estava me dizendo. Não lhe parece óbvio, agora?

Semanas depois tomei a decisão de produzir um filme na escola com aqueles mesmos alunos “dorminhocos”. Busquei impulso então no próprio filme de Coutinho, que vaga a “esmo” no início do filme em busca talvez de uma comunidade. Explorando as relações no pátio da escola como quem deriva a procura de algo que possa surgir, com minha câmera me lancei através de entrevistas com aqueles jovens que passeavam nos primeiros momentos da manhã — momento em que os alunos e alunas estão chegando, se espalhando, iniciando os primeiros contatos do dia, das conversas sobre o que rolou ou pode rolar, sobre qualquer tipo de situação que a a convivência entre humanos seja capaz de produzir. A sensação era que o filme de Coutinho continuava nas lentes de minha câmera mas de outro modo eu me encontrava em outro tipo de interação. Eu-

professor, conhecido por uma relação de confiança sempre muito viva com os alunos — algo que aprendi a ser quando aluno —, chamando a atenção deles pelo simples movimentar-me pela manhã no pátio da escola com uma câmera na mão. As imagens realizadas são interessantes do ponto de vista da presença da câmera em contato com questões específicas daquele lugar. Depois de finalizada a produção de um pequeno filme em que eles apareciam obtive o maior entusiasmo deles em querer ver e conversar sobre o que tinha virado filme. O interesse deles 28

era muito maior agora. O ato de ver-se na projeção fazia com que buscassem entender melhor o que as imagens queriam dizer. “Olha lá a Camila, kkkkkk”, era o que fazia com que todos entrassem na imagem. Ninguém dormiu, considerei bom, mesmo eu gostando muito de dormir. Assim, o objetivo de ver um filme era alcançado por outros caminhos. O próprio objetivo se transformara.

São problemas que a escola, e se é educador nela isso é ainda mais intenso, tem a oferecer ao cinema. Problemas como singulares modos de vida que podem em algum momento nos despertar a atenção. Muitos e variados modos de

existências que florescem e fazem ramificar o lugar. Outra coisa ainda diz respeito a

tentativa de produção audiovisual com a juventude de seres dotados de uma legislação específica. Que considero necessária e passível de uma revisão mais técnica e apurada sobre as questões com a imagem. As questões em torno dos direitos de imagens, por exemplo, dos compartilhamentos na Web e dos inúmeros riscos com os efeitos disso, as proibições decorrentes dos medos institucionais, que fazem andar pouco os experimentos e que buscam proteger ao mesmo tempo que restringem as possibilidades de invenção. Enfim, fazer imagens na escola é talvez o melhor assunto para uma imagem existir. A escola pode se tornar ponto de criação ao próprio cinema se nos desfizermos de qualquer função inicial dele. Se conseguirmos permitir que ele seja qualquer cinema por ali. Desde que sejamos convictos na segurança física e psíquica não só na infância, mas para todos os envolvidos. Isso nos impediria de filmar? Considero um dos mais importantes problemas para a relação cinema e escola. Para isso vale retornarmos a ideia de que o cinema é muito mais do que o filme, ele configura processos com as imagens

O filme “Intervalo” (2015) pode ser acessado em <https://www.youtube.com/watch?

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e com os sons, e com as pessoas e com as máquinas. A escola como um conjunto de trajetórias humanas e inumanas (como lugar) tem a oferecer potentes para que o cinema possa ser inventado de outras maneiras, experimentado com aquilo que ainda não existe, com um porvir inapreensível, mas que pulsa em algum outro ponto. Por isso não podemos filmar? O que é cautela?

(PA) Como criar cinemas possíveis num espaço constrito, limitado, habitado

por uma diversidade de pessoas, luzes, regras e sons? Senti que em determinado ponto sua tese me direcionou a revisitar esse pensamento que sempre me acompanhou durante as formações e as oficinas de cinema com os alunos. Principalmente quando você descreve o conceito de “prisão” em Coutinho, pois é exatamente o gatilho para entender o cinema como criação de [mais] problemas.

Silva (2014) exalta em sua dissertação o modo como alinhou seu projeto, seu cronograma, seus prazos, suas vontades de pesquisadora com o cinema e com a infância. É um trabalho inspirador, sobretudo por dar muitas indicações de como essas experimentações com arte passam por caminhos imprevisíveis e de improviso. Ela inicia seu percurso de contato em uma escola para realização do campo da pesquisa de mestrado. Começa a estabelecer o vínculo (passo um), executa algumas metas de produção (escritas) e inicia os encontros periódicos para ver e estimular filmes com crianças. Dado andamento já de bons investimentos, pra sua surpresa, a escola é demolida no período de férias, algo que ela fica sabendo no retorno das atividades pedagógicas. Bem, é isso. O que a pesquisadora tem é um bom problema no sentido que possa mesmo tirar-lhe o chão. Como é difícil prever o que pode o cinema realizar na escola. Junto com a demolição da escola, desmorona também os objetivos iniciais da pesquisa. É necessário paciência e insistência (no mínimo), só a Nádia poderia nos contar isso pessoalmente — apesar do belo modo como ela descreve o que se passou. Reconstruir contatos meses depois, em outro contexto, outras pessoas, outras prazos, um outro lugar. A perda do vínculo estabelecido inicialmente, o recrudescimento do processo de criação em que estava inserida, fatores que desajustam. A autora coloca isso em um trecho de seu diário de campo:

Todos ficamos sem rumo, sem saber para onde ir. As crianças que voltavam animadas, os pais já cansados de as ocuparem durante as férias e eu ali num misto de ansiedade e preguiça. Todos nós nos encontramos no vazio. Sem rumo, todos ficamos atônitos, mergulhados em frustração e tristeza. (SILVA, 2014, p. 42, grifo nosso).

O que há de cinema nisso que escapa aos encantamentos? Um vazio que

se assemelha aqueles que Calvino (2015)? Seriam sobras esses desajustes produtores de outras possibilidades? Que potências são essas que Migliorin (2015) se ocupa ao tratar como necessários fracassos? Essas são questões merecem destaque ao desatar os laços de um cinema salvador, numa educação “marcada” por crises. Elas são talvez a parte mais importante de uma pesquisa com cinema na escola. Escrevamos mais sobre isso. Justamente por fazer dos problemas com uma educação escolar a fonte para que um cinema (outro) possa emergir, e, ao emergir daí, se diferencia enquanto experimentação audiovisual — por vir. Essa parece ser uma boa perspectiva para escapar dos encantamentos que inundam a educação e, por vezes, nos parecem românticos demais diante da crueza da vida escolar em sua prática cotidiana. Talvez mais trabalhos possam se ocupar de indicar o que deu “errado” no encontro do cinema com a escola, e, no lugar de investir muitas palavras sobre a concretização de objetivos pré-estabelecidos, possam lançar questões que nos permitam continuar processos inventivos ainda mais potentes.