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As digressões Interétnica e Intercultural

3.Representação e Identidade

2. As digressões Interétnica e Intercultural

“ (…) o macaense é aquele que tem Macau por referência e um sentido especial de portugalidade”

Henrique Senna Fernandes Se das origens de Macau, o pouco que se conhece está envolto numa neblina, das origens dos macaenses várias são as teorias que procuram consubstanciar a sua especificidade étnica e cultural. A possível origem desse grupo/ comunidade cultural/ étnica advém de uma miscigenação do luso/ocidente e de um oriente difuso que poderá conter Goa, Ceilão, Java e terras Malaias, quiçá o Japão e, porventura, o vasto e diversificado sul da China, não permitindo vislumbrar resposta concreta a tal origem.

Dos primeiros estudos antropológicos realizados sobre os macaenses, o do Professor Almerindo Lessa refere o seguinte:

(…) os «Portugueses de Macau » podem ser considerados como um dos grupos mistos mais estáveis da Ásia. A sua genealogia é fruto de múltiplas hibridações, compilada ainda pela enorme riqueza genética das suas raízes (…). (Almerindo Lessa; 1995: 394)

Segundo este Antropólogo, o macaense, ‘”o homem novo luso – tropical do estuário do rio das Pérolas”, resulta da miscigenação do europeu/ português com as mulheres de toda a área indonésia e com as chinesas de Cantão.

De acordo com Ana Maria Amaro os macaenses são fruto da adaptação equilibrada, no decorrer dos séculos, em relação ao meio adverso encontrado pelos ‘homens da Europa’:

A princípio, registava-se grande mortalidade entre os europeus, mas, em breve, os seus filhos euro-asiáticos, naturalmente seleccionados na infância, encontraram melhores condições adaptativas, do ponto de vista morfo-fisiológico. Por outro lado criaram-se paralelamente ao longo dos séculos, formas culturais de sobrevivência, muitas delas originais. Tanto as formas biológicas como as culturais foram seleccionadas pelo meio e nasceu o macaense e a sua original cultura (…); (Amaro:1991:96-103)

O estudo de Pina Cabral e Nelson Lourenço (Cabral; Lourenço: 1993: 20) entende que os macaenses não constituem um fenótipo caracterológico específico, como foi defendido por outros autores, mas constituem-se como uma identidade étnica contextualizada historicamente no âmbito da complexidade cultural e genética que tem consubstanciado as sociedades meridionais da Ásia; no que concerne às origens, consideram estes autores que “Num contexto de pluralidade étnica, o discurso sobre as origens é mais enfático, assumindo geralmente um forte conteúdo emocional.” (Cabral; Lourenço;1993:56). Considerando lato sensu os macaenses resultado da miscigenação europeia e asiática, defendem que a condição de ser macaense está intrinsecamente ligada a três vetores que permitem a auto e hétero - identificação, a saber: a língua, a religião e a raça (Cabral e Lourenço;1993:22), embora admitam a possibilidade de a pertença ao grupo não carrear a totalidade dos vetores e, até, conter um elemento de escolha pessoal.

Deste modo consideram estes autores que a comunidade macaense é formada pelo grupo de pessoas que partilham um conjunto de instituições e que objetivam a reprodução de um projeto étnico comum (Cabral; Lourenço;1993:19). Neste sentido, o referido grupo integra um núcleo de construção de identidade, constituído pelas pessoas e famílias que, reunindo os três vetores, são o cerne que permite que a identidade se auto construa como comunidade. Por outro lado, consideram também que “encontrando-se numa encruzilhada de culturas e de povos, tendo acesso relativo a qualquer um deles, mas não pertencendo a nenhum

em absoluto – a identidade étnica macaense surge como ambivalente e potencialmente problemática.”(Cabral; Lourenço;1993:59)

A razão desta ambivalência, ainda segundo os referidos autores, deve-se essencialmente ao facto de, na explicação da origem desta comunidade, estarem subjacentes duas versões contraditórias: uma que defende que os macaenses são originários da miscigenação entre homens portugueses e mulheres chinesas provenientes dos estratos sociais mais baixos da população de Macau (esta versão é defendida pela população chinesa e pode-se considerar valorativa negativa) outra, carreada pela própria comunidade macaense51, considera que a origem se

encontra na miscigenação luso - asiática (malaia, indiana, etc.) que terá ocorrido no primeiro século. (Cabral; Lourenço;1993:60,61)

Entendem, Pina Cabral e Lourenço, que perante tais hipóteses, passivas de aceitação, se podem considerar, também, duas formas de entrada para o grupo étnico: a primeira, resultante de “ casamentos entre pessoas que já eram macaenses ou casamentos com portugueses que se integraram na vida social macaense”, a qual denominaram de contexto matrimonial de reprodução e uma outra que advém de “casamentos entre pessoas que não são necessariamente macaenses”, o contexto matrimonial de produção52.

Do ponto de vista de Carlos Piteira, que propõe a abordagem da questão étnica dos macaenses num contexto de mudança

(

Piteira:1999), enquanto comunidade étnica os macaenses são o fruto “ (…) da primeira geração de ‘portugueses orientais’ (oriundos de filhos de malaias, siamesas japonesas e

indianas) que irão proporcionar as bases antropogenéticas das futuras gerações de

«Macaenses – Filhos da Terra» ”; ainda segundo este autor “(…) a constante ausência de mulheres europeias (lusas)(…) originou estratégias de matrimónios entre a população local, (…) os primeiros ‘doadores de esposas’ situam-se essencialmente nas zonas onde Portugal tinha já consolidado as suas feitorias reais na zona da Ásia(…) seguindo uma politica de povoamento que era então dominante na nossa estratégia de colonização.” (Piteira;1999:123-124).

Piteira considera ‘O Período de Ouro de Macau’, espaço temporal entre 1557 e 1685, caracterizado por uma forte expansão mercantil e comercial fomentadora do alicerçar religioso, cultural e patrimonial dos portugueses no

51 E defendida por Almerindo Lessa e Ana Maria Amaro.

52 Os autores consideram neste contexto os descendentes de casamentos entre portugueses/ chineses,

macaenses /,chineses, “ou qualquer um destes com pessoa originária de outro referente étnico exterior ao Território”. (Cabral; Lourenço:1993:61)

território, como o momento caracterizador em termos antropogenéticas da população de Macau:

(…) os homens deveriam ‘esposar’ as mulheres orientais que fossem cristãs ou se convertessem ao cristianismo. Dada a impossibilidade desta situação em Macau, pela [quase] ausência de uma adesão á conversão católica, a mulher em condições de esposar surgia como uma necessidade de ‘importação’ que era necessário dotar o território (…) Malaca, a feitoria que contava já cerca de 45 anos de ocupação, foi aquela que primordialmente enviou para o território ‘jovens esposas’ com vista á política de miscigenação que permitisse a fundação de uma cidade católica (…).(Piteira:1999:124)

Entende, também o autor que após este período, e sensivelmente até

meados do Século XIX, Macau consolida a sua dimensão de cidade multicultural.

(

Piteira:1999:125) A questão da identidade macaense emerge de dois aspetos fundamentais: a face especular dos próprios macaenses, um grupo que se entende como tal, e a imagem que os outros têm, que permite identificá-los como elemento de pertença ao grupo. Os estudos antropossociológicos que até hoje se fizeram sobre a origem desse grupo, comunidade cultural/ étnica, possível resultado da miscigenação do luso/ ocidente e do oriente difuso, não permitem vislumbrar a resposta concreta, objetivável, à questão das origens dos macaenses uma origem que não encontra baliza na cerca de centena de almas que se estabelecem numa pequena baía de um minúsculo istmo perdido na imensidão de uma costa de um, também ele imenso, império; o império do meio.

A comunidade macaense resulta de uma teia genética urdida ao longo de quinhentos anos, cujo primeiro fio foi concebido por ‘bravos’ mais ou menos robustos marinheiros/mercadores vindos de ocidental praia, e frágeis e corajosas damas órfãs do reino, exoticamente miscigenadas pela península indiana ou malaia; e esta profícua miscigenação foi permitindo o crescendo de almas que, segundo os cronistas, no fim de quinhentos já se somavam em mil.

Muitos outros fios orientais foram compondo a urdidura de um grupo humano, inicialmente com características de communitas53, uma associação

53). Turner entende por communitas “(…) uma relação entre indivíduos concretos, histórica, de sentir

comum. Estes indivíduos não são fraccionados em cargos, mas organizam a vida em termos do eu e do tu. O tipo de sociedade em que se integram é homogéneo, sem estrutura…”, como refere Bernardi “…neste tipo singular de associação confluem indivíduos, e todos aqueles que, devido a um período de

motivada pelas contingências contextuais que leva um grupo de seres humanos a relacionarem-se e a associarem-se de modo a garantirem, no caso do grupo primordial de Macau, a sobrevivência. À medida que o grupo estabiliza no aspeto organizacional, quando, segundo Bernardi “a espontaneidade cede perante a estabilização da organização, que se faz estrutura, à petrificação da forma que se torna lei”

(

Bernardi:1982:62) a communitas transforma-se em comunidade. A comunidade que dinamicamente foi emergindo em Macau congregou a sua constituição essencialmente em dois fatores aglutinadores: uma língua partilhada e reinventada pelos seus membros, e uma vivência de religiosidade, para a qual muito contribuiu a presença da igreja católica através das ordens religiosas.

O território de Macau sempre foi sentido pela comunidade chinesa como uma parte da China ‘provisoriamente’ ocupada por um país estrangeiro; segundo Montalto de Jesus “Assim para o chinês comum e particularmente para os mandarins de Cantão, Macau passava por ser um arrendamento meramente tolerado em solo chinês (…) ao velho arrendamento tornado enclave não era permitido qualquer direito a águas territoriais (…) as quais o tratado de 1887 insiste em deixar por definir.” O tratado de 1887 entre Portugal e a China “(…) confirmou a ocupação e o governo perpétuos de Macau e de suas dependências por Portugal como em qualquer outra possessão portuguesa [e compromete Portugal] a nunca alienar Macau e as suas dependências sem a concordância da China.”; Neste tratado as fronteiras do território ficaram por definir, mas fica significativamente definida a soberania chinesa, com o parágrafo do compromisso. (M. de Jesus:1990:288). Se a impressão desse sentimento não foi relevado pelas autoridades administrativas do território, ao nível das hierarquias de poder, não deixou, contudo, de estar sempre presente no seio das comunidades que o partilhavam, acabando por se tornar expressão através da oficialização da entrega de Macau.

A comunidade macaense, ao longo dos anos, constituiu-se como um grupo de apoio ao poder dominante, pois era composta por indivíduos que assumiam e lhes era reconhecida uma ascendência portuguesa, falantes da língua lusa, mesmo que, na esfera privada, realizassem um crioulo, de base portuguesa, ‘o pátoà maquista’ e eram naturais de uma terra que, para efeitos de imagem de portugalidade, era parte integrante do ‘império colonial português’.