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Literatura macaense – que Literatura?

Capítulo IV – Da Literatura Macaense

1. Literatura macaense – que Literatura?

Em Macau nunca houve condições para desenvolver uma verdadeira literatura macaense. (H. de Senna Fernandes: 2010: anexo1)

Em que literatura se poderá integrar a literatura macaense? A integração da literatura macaense, como aqui é entendida, na literatura portuguesa é controversa, e de facto não faz parte do campo literário português, por razões

66 Por parte das instituições públicas, pois os editores privados não consideraram a sua pertinência. 67 Henrique de Senna Fernandes; entrevista (anexo 1)

que se prendem sobretudo com o acervo literário produzido no território, o que pode justificar a sua não integração no cânone nacional, sobretudo se atendermos à definição de cânone de Lauter (Lauter:1991: IX), já referido; embora a produção dos Macaenses, se possa considerar de interesse cultural e constitua parte dos bens simbólicos de Macau, (não nos referimos só à ficção pois, por exemplo, a obra de Luiz Gonzaga Gomes contém riquíssimo manancial do ponto de vista da investigação sobre o oriente, sendo praticamente desconhecida em Portugal), o facto é que, salvo raríssimas exceções, nunca fez parte dos circuitos editoriais de comercialização, o que leva à distinção entre o que se constitui como as produções literárias dos autores macaenses68 e as obras produzidas em Macau por

outros escritores.

Poderia ser embrião de uma literatura nacional emergindo numa situação do despontar de um novo estado/ nação. Mas, não é o caso; o Macau textualizado, em todas as suas dimensões, por macaenses foi um fenómeno que surgiu, predominantemente, na segunda metade do Século XX com uma maior incidência nas duas últimas décadas, foi, talvez a forma de fazer perdurar o lugar/emoção, a Mátria, o reforçar de um traço identitário que, tal como o renascer do pátoà, a partir de 1994, se deveu à emergência da distinção da comunidade como única, num momento em que o quadro político-administrativo obrigava os seus membros a tomar consciência da perda69.

Poder-se-ia considerar com parte integrante de uma literatura regional, na medida em que esta forma particular de entender se deve ao pressuposto genérico que consubstancia um tipo de literatura produzida numa determinada área geográfica e cultural, remetendo-nos para a dicotomia urbano/rural, no sentido em que denota um fenómeno específico de manifestação local integrada e referenciada como variação de uma literatura nacional. No âmbito da literatura portuguesa, considera-se dois momentos estético-literários no que concerne à integração de obras na denominada literatura regional: um primeiro momento associado à estética romântica, onde se constata as idealizações dos lugares ligados a imagens imbuídas de saudosismo e associados à nostalgia do universo rural, numa versão do imperium/otium horaciano; o segundo momento enquadra- se na estética realista cuja preocupação temática focalizava a descrição das terras e das gentes, não no sentido de descoberta exótica, mas com o intuito de refletir

68 Os filhos da terra, macaenses strictu sensu de acordo com a escolha do Professor José Carlos

Venâncio

69 Os vários momentos de indefinição depois de 1887 - Declaração de Amizade, a primeira tomada de

consciência que Macau era um lugar imaginado e transitório como lugar de pertença. Declaração

a condição humana, ao textualizar as assimetrias entre espaços, investigando o homem na sua relação com a paisagem, reportando a variação linguística, a realização cultural, utilizando na discursividade as particularidades das regiões.

A expressão literária de especificidades locais tende a ser instrumento de preservação de formas identitárias próprias, configurando-se como referencial de tensões entre um mundo urbano, globalizante e descaracterizador, e a manutenção de uma interioridade ritualizado pelo tradictio, que se debate contra o esquecimento e a invisibilidade. Embora com caraterísticas de literatura regional, na medida em que traduz especificidades locais, expressa momentos históricos70, realidades sociais, dando-nos a impressão da ‘cor local’, as

escrituralidades dos macaenses transmitem-nos, sobretudo, as histórias de vida, as imagens identitárias de um território /de uma comunidade. São as intersecções, as partilhas de culturas, toda uma construção urdida no contacto de vidas experienciadas, de escolhas, transformações e rejeições, profundamente ligadas a um pedacinho de chão que abrigou num determinado instante um povo de identidade arlequinada71.

A literatura macaense constitui-se, pois, como uma literatura, outra, resultado de vivências, outras, fruto de uma comunidade inserida numa realidade sociocultural diferente e “ ganharia se fizesse parte do cânone lusófono” 72 na

medida em que a sua integração num espaço literário de língua portuguesa projetado como veículo de culturas, dado que na sua interação partilham muitos dos fios de uma mesma tessitura, permitiria uma maior visibilidade da comunidade macaense em diáspora.

70 A realidade do universo social de uma região, num determinado momento histórico, foi-nos

transmitida exemplarmente por Aquilino Ribeiro nas suas obras, consideradas durante muito tempo como formas literárias regionais (e até, por isso, menores) embora hoje esse entendimento não encontre, nem eco, nem justificação.

71 Termo utilizado por Derrida ao refletir sobre o hibridismo étnico quando utiliza a analogia com a

tatuagem: “ [na tatuagem] o sangue mistura-se com a tinta para deixar ver todas as suas cores [resultando] uma nova composição corporal que deixa à mostra uma identidade arlequinada” (Derrida;1996 b): 86

72 Opinião expressa pelo Professor José Carlos Venâncio. Ainda a propósito deste tema, Venâncio; “ Na

impossibilidade de se equacionar (…) um campo literário macaense, a valorização das obras literárias em língua portuguesa produzidas em Macau ou ao território referidas continuará a processar-se através da sua indexação, ou à tradição literária portuguesa ou (…) pelo cânone das Literaturas africanas e asiáticas em língua português (…) cânone lusófono.” (2006: 5)