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Instâncias de enunciação/personagens

2.3. OS LIVROS DE CONTOS

“Os chineses acreditam que os sân – leng voltejam inseparáveis em cima das suas cabeças em forma de invisíveis halos e não há chinês, por mais valente que seja, que não viva obcecado pelo receio dos espectros, cuja fé na sua existência lhe vem sendo instilada no seu espírito através de centenas de gerações e cuja noção lhe é incutida desde criança” (Gomes;1994:153)

Os dois livros de contos/ histórias têm por títulos Nam Van contos de Macau e Mong-Hà. O título do primeiro remete imediatamente para a opção do género literário, embora o autor justifique a escolha da denominação chinesa, na enunciação autoral ‘Nota de Abertura’:

Nam Van é o nome chinês da Praia Grande. O longo areal de antanho, de curva graciosa, transformou-se, no deslize de séculos, em artéria elegante, centro nevrálgico da vida de Macau e zona residencial preferida pela população.

Nasci nas suas proximidades e grande parte da minha infância decorreu à sombra das suas árvores centenárias (…) a Praia Grande, com a paisagem dos seus juncos e a odisseia dos seus lorcheiros (…) heroicos alimentou o fundo da minha sensibilidade (…). Eis a justificação do título em homenagem a um recanto da terra do Nome de Deus (…). (Nam Van:3)

Estabelecendo, também, um pacto de leitura, ao justificar a escolha do género literário dos textos:

Apresento aos meus leitores um punhado de contos e recordações, rabiscados já há alguns anos. Quási todos viram a luz da publicidade no diário “ Noticias de Macau, entre os anos de 1972 e 1975, sendo inéditos “Candy” e a “Desforra de um China Rico”.

“A-Chan, a Tancareira” mereceu a forma de um livro, na coleção cadernos capricórnio do Lobito [1973] (…) como a edição fosse limitada (…) resolvi incluir o conto para que não ficasse (…) perdido.

(Nam Van:3)

E explicando a intenção da escrita: “A intenção deste trabalho é de contribuir dalguma forma para a literatura de ficção macaense, tão paupérrima ou quási inexistente (…)” e das linguagens: “ Mal ou bem, o livro aqui está. Que me perdoem os puristas da madre língua portuguesa se, de propósito138, empreguei

uma ou outra expressão ou frase de construção macaense” (Nam Van:4)139

O título do segundo livro, Mong-Há, também é justificado pelo autor, num frontispício, onde, primeiro explica o que é Mong-Há, num longo excurso descritivo, do qual retiramos um pequeno excerto e, posteriormente informa os leitores sobre a razão e o tipo de textos que reuniu:

Mong-Há, hoje descaracterizada pelo avanço implacável da cidade (…), é uma vasta área que (…) se estende da zona da Flora e da Montanha Russa até ao Porto Interior, confinada à esquerda (…)pela Avenida Horta e Costa, o Patane e o Bairro de San-Kio, cercando, doutro lado, a Colina dos Diabos Pretos até à Areia Preta e a Zona das Portas do Cerco e Ilha Verde. (…)

O leitor poderá estranhar o título da obra, pois aparentemente não parece relacionado com qualquer da estórias que se seguem (…) No entanto a sua gestação nasceu precisamente na Pousada de Mong- Há, encravada na colina do mesmo nome e conhecida pelos chineses como Hak-Kai-Sán, a colina dos Diabos Pretos (…) Tarde memorável aquela, em que, de conversa em conversa se falou de tudo (…). Quando saímos, íamos confortados, mas nostálgicos. Alguém tocou-me no braço e sugeriu:

― Porque não escreve aquilo que nos contou? (…). (Mong-Há:7)

Na finalização desta enunciação o autor refere num tom de entrega: “ Eis aqui, submetidas ao juízo e à curiosidade do leitor, produto de dolorosa elaboração as minhas estórias em que se misturam recordações, experiências

138 Nosso sublinhado.

139 Referência subtil a uma alusão negativa à sua sintaxe publicada nas duas recensões aos seus livros na

vividas e páginas de pura ficção”; são as estórias da memória e da nostalgia o que, maioritariamente, o autor propõe ao leitor neste livro, sem genologia definida.

― Nam Van/ Mong-Há

Nan Van, é constituído por seis contos: A-Chan, A Tancareira140; embora a estrutura seja do género literário sugerido no título, Nan Van Contos de Macau, a riqueza da composição da personagem remete-nos para o bosquejo de um romance141. Neste conto, mais do que contar uma história, o autor dá-nos a

imagem de um drama social de certa recorrência no território: as ligações entre portugueses, homens em comissão de serviço, e jovens chinesas ou macaenses, geralmente de estratos sociais mais baixos, constituindo relacionamentos assimétricos, em termos de relação de poder, que tinham a duração da comissão e dos quais, algumas vezes, resultavam crianças que, ou eram abandonadas/ não reconhecidas pelo progenitor, ou, como nos descreve o conto, ‘retiradas’ às mães, sempre o lado mais frágil destas relações142.

A-Chan uma jovem mulher chinesa, tancareira de profissão, relaciona-se com um marinheiro português, Manuel. Dum relacionamento de silêncios e sombras noturnas nasce uma criança, menina, Mei-Lai. Depois de uma breve passagem por terra numa casa à qual A-Chan se submeteu, por cultura, tradição e trajetória pois, pertencia ao grupo das muitas meninas chinesas, oriundas da China tradicionalista, que foram vendidas como mui-tcháis, no seu caso à ‘Velha’ dona do tancá com quem aprendeu a profissão, e num ato de ancestral submissão à vontade masculina e profunda resignação materna, deixa a filha ir com o pai, para o Sai-Iong143 longínquo, conformando-se com a esperança na desesperança “Se a

filha ficasse, que seria do seu futuro? Ela podia sofrer porque fora criada no sofrimento, vendida pelos pais a mãos empedernidas. Mas nunca a Mei-Lai, que era tão bonita e se parecia tanto com o marinheiro de olhos azuis” ( Nam Van:17). Esta mesma temática é retomada em Mong-Há, mas com um final diferente, porque diferentes também são os atores sociais; no conto “Um milagre de Natal”, cuja trama consubstancia a estória de uma rapariga, da burguesia

140 O autor escreveu este conto quando era ainda estudante em Coimbra e, com ele, ganhou o Prémio

Fialho de Almeida dos Jogos Florais da Queima das Fitas, de 1950, da Universidade de Coimbra.

141 O “romance breve” no entender de Ítalo Calvino. Esta situação pode ser comparada aos ‘ensaios’ ou

bosquejos de romances de Eça, nomeadamente no que concerne ao conto Civilização a partir do qual o autor estruturou o romance A cidade e as Serras.

142 Este conto “ (…) indica a aproximação, mesmo que de forma desvanecida, do seu autor à

mundividência anticolonial”; (Venâncio; 2006: 11)

macaense, que empobrece ao ficar inesperadamente órfã, descendo na hierarquia social para o estrato mais baixo da comunidade. Apaixona-se por um militar português que a abandona grávida, o que leva ao ostracismo da comunidade. Ostracismo, esse, que se projeta no filho “um filho trás da porta”. A sobrevivência desta mulher é garantida pelo seu trabalho de costura para uma das famílias ricas. Depois do narrar de muitas humilhações, onde está patente o preconceito social, o afrouxamento dos laços de solidariedade de grupo e a descrença num Deus justo, o conto tem um explicit encantatório com a chegada do ‘pai pródigo’ que assume a família numa esperançosa manhã de Natal.

O conto memorialista “Uma Pesca ao Largo de Macau” tem uma forte referência ao real concreto consubstanciando uma autodiégese numa amálgama narrador / autor, na medida em que o narrador em primeira pessoa inicia o conto Do seguinte modo: “ O meu Avó Conde era um homem com defeitos e qualidades (…)”,(Nam Van:33). A estória recupera Macau dos finais do Século XIX através da imagem da elite macaense patriarcal, nas vivências da sociedade “ Como os seus conterrâneos dos fins séc. XIX, recebia muito, e a sua mansão à Praia Grande, primava pela hospitalidade (…) entre (…) amigos que não se esqueciam do café do meu Avó figurava o Governador de então (…)”(Nam Van:33)e na própria representação do patriarca macaense consubstanciada na figura do avó, “extremamente rico” “crente sem ser beato”; “Na Procissão Cruz acompanhava o calvário do Senhor (…) desde Stº Agostinho até à Sé, vestido de preto, a rigor (…) como todo macaense dos fins do séc. XIX, além de ténis, praticava dois desportos em voga, a pesca e a caça”( Nam Van:34-35).

Neste conto Senna Fernandes guia-nos através de um Macau, do qual pretende preservar a memória, e onde atesta a importância social da elite macaense (e do seu habitus de classe) em traços de distinção que perpassam na descrição minudente dos saraus de música da casa dos Avós “minha Avó era uma exímia pianista”, das refeições “o refinamento dos bons pitéus”, os serões com os jogos sociais: «o gamão» e «o ‘bafá’»; o número imenso de criados «muito serviçais, com as suas imaculadas cabaias compridas e o rabicho bem penteado» e na religiosidade profundamente católica.

Estas práticas culturais, que se constituem como traços de identidade, e a utilização dos bens simbólicos que perpassam as textualidades, consubstanciam os marcadores privilegiados das distâncias sociais e das estratégias utlizadas no narrado para afirmar essa distinção, na medida em que não só se verifica a

expressividade dos gostos e das práticas correspondentes ao habitus de classe, como também as próprias escolhas lexicais carreiam signos distintivos.

Este Avó, assim apresentado é matéria do narrado pela sua relação com um homem chinês salvo, das águas escuras do rio das Pérolas e da lancha das autoridades alfandegárias chinesas que o perseguiam, pelo Avó que, num ‘pu- tong’144 com amigos, dava um passeio de pescaria. O chinês assim resgatado

apresenta-se na mansão da Praia Grande, umas semanas depois, para agradecer o salvamento e selar a relação fraternal que os uniria futuramente de acordo com a tradição chinesa.

É uma imagem estereotipada145 do chinês rico que o autor/narrador

transmite, e o total alheamento entre as duas comunidades: “ Um homem sumptuosamente vestido de cabaia comprida de cerimónia, o rabicho luzidio de óleo as mãos metidas nas mangas largas (…) emanando saúde e riqueza”, não só na descrição citada, mas na sua dupla imagem “afinal era um pirata” mas, também era, em Macau “um cidadão pacífico de bem com a lei e com os homens, que vivia numa casa ajardinada na Praia do Manduco, no meio do carinho de duas concubinas, comerciante registado, com loja e tudo”.

Do mesmo modo encontramos a recorrência imagética do estereótipo no conto “A Desforra do China-Rico”, do mesmo volume, em que a temática nos introduz na referencialidade caraterizadora do povo chinês associada à noção de vingança imbuída de uma temporalidade durativa e carreadora da imagem exótica da China146. É, segundo José Carlos Venâncio, o olhar ocidental sobre o mundo

chinês: “O conto «A desforra de um china-rico» (…) é, porventura, o texto mais elucidativo desse olhar que, não obstante a distância, não deixa de ser comprometido, como era aliás, o de Pearl Buck.” (Venâncio:2006:13)

A distinção social e as relações de aceitação/rejeição entre a comunidade macaense e a pequena comunidade de portugueses ‘metropolitanos’ são abordados no conto “Odio velho não dorme”, no livrode contos Mong-Há, através da trajetória de Júlio, um rapaz metropolitano, filho de um funcionário público que estando em comissão de serviço em Macau é preso porque “envolvera-se numa falcatrua qualquer”. Esta história surge quando “ao retirar um livro da minha estante, caiu-me dentre as folhas um velho postal de Boas Festas do Júlio. (…) A lembrança do Júlio perseguiu-me, pairando à minha frente…” ( Mong-Há:171).

144 Embarcação de recreio.

145 Imagem construída pelos primeiros portugueses e que emergindo dos registos muitas vezes imbuídos

de mirabilia dos primeiros contatos, se vai cristalizando na imagética simbólica.

Tendo como contexto espacial e temporal as vivências dos alunos do Liceu de Macau, nos anos 30, onde a aceitação do Outro, metropolitano, pela comunidade macaense, era condicionada pela posição que os progenitores tinham no campo do poder e pelas marcas de distinção, o narrador /autor narra-nos em primeira pessoa, as evocações de memória lapidadas pelo tempo.

Júlio era ostracizado pelos colegas, não fazia parte do grupo “Ora, tudo isto vivemos à margem do Júlio” (

p.

177), porque “O físico não ajudava. Era curvado de ombros, franzino, pálido, pouco limpo (…) uma dentuça penosamente irregular (…) a sua apresentação na escola, na igreja, na rua raiava o desmazelo (p. 177) imagem associada à representação de um estrato social baixo, tendo em conta que, como refere o autor: “ a meio do período apareceu um novo aluno, chegado fresquinho de Portugal. Era filho de um alto funcionário da Administração (…) arrogante, uma estampa de jovem atleta, olhando com indisfarçada superioridade para os novos colegas como se tratassem de ‘indígenas’ (…)”(p.

181).

A rejeição a Júlio aumenta gradualmente depois da detenção do pai, embora o narrador justifique “não se gostava de Júlio pelo que ele era e não por causa do pai (…)”(p.

178)

continuando num tom judicativo refere que: “O pior era a sua incapacidade de suscitar simpatia”; “as meninas apelidavam-no de ‘enjoado’ ou ‘porcalhão’; e em tom de desabafo “ eu perfilhava da mesma opinião”. Por outro lado os ares de superioridade e arrogância de Fernando o menino da ‘elite

autorictas’ é imediatamente aceite pelas meninas, “tinha estilo”, a distinção que

lhe dava prestígio, e foi, gradualmente, assumido ou assumindo o grupo de rapazes que passa a liderar por livre cedência do ‘líder’ do grupo, numa evidência do posição de submissão perante o poder.

É de referir que este ‘líder’ do grupo de garotos pertencia também à comunidade portuguesa metropolitana, podendo ser interpretado como uma escolha de prestigio, o que os macaense expressavam como ‘rolar com’, neste caso com os filhos da classe dominante, e mesmo dentro desta se verificava, no caso em apreço, as distinções entre as frações superiores.

A situação de Júlio agrava-se em termos de integração pois Fernando faz dele o alvo de todas as humilhações. Neste ponto da estória o narrador demarca- se e num segmento narrativo explica que o Fernando lhe era antipático e que “ a minha antipatia latente por Fernando mais se acentuou” no momento em que, na iminência de uma festa organizada por aquele, constata que só o Júlio não foi

convidado. Em vez de ir á festa, o autor/ narrador vai ao cinema. “Fernando não me perdoou”. Júlio fica-lhe agradecido o resto da vida.

Anos mais tarde, uma evidente alteração de trajetória leva á ascenção social de Júlio, e numa posição de prestigio que o cargo de diretor geral do Ministério do Ultramar lhe assegurava, vinga-se das humilhações da sua adolescência, casando com a noiva de Fernando. O conto encerra com a expressão d o Autor/narrador: “Eu pertenci ao lado afortunado dos que ele amou”. Mais do que o mero preconceito e as disposições incorporadas, neste conto perpassam as ambiências e idiossincrasias da sociedade colonial.