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O ESPAÇO E O TEMPO DOS ROMANCES

Instâncias de enunciação/personagens

2.2. O ESPAÇO E O TEMPO DOS ROMANCES

A literatura trata de experiencias humanas, sendo “o tempo e o espaço as duas «intuições puras» que fundamentam todas as nossas experiências” (Kant;1985:61-78). São as categorias de tempo e espaço que consubstanciam o construto da nossa perceção do experienciado, é através delas que apreendemos o mundo.

O texto literário dá-nos várias dimensões destas categorias, não só na tessitura narrativa mas também na própria conceção genológica, entendendo que a relação da espácio - temporalidade permite aferir a cronotopia da obra literária.

O tempo do romance é um tempo múltiplo; há um tempo diegético que estrutura a ordem temporal da sucessão dos eventos, o tempo do universo diegético, mundo ficcional fruto do imago autoral. Este mundo pode conter ele próprio vários tempos, e tendo em conta que nos romances se enleiam materiais diversos que concorrem para a sua tessitura, são várias as digressões para outros tempos-espaços que se consubstanciam em outros tempos e em outros espaços num jogo discursivo entre a verdade e a verosimilhança:

O tempo da cronologia “último quartel do século XVIII e na primeira metade do século XIX” nos vastos espaços dos portos da China onde os Frontaria mercadejavam e pelejavam contra os piratas e o tempo difuso da origem onde só o espaço refere a pátria “o fundador da família, Bernardo Frontaria, fora um grumete algarvio que aportara a Macau”

(

ADP); O tempo do momento da História dos Homens nos espaços exteriores ‘A Guerra do Ópio, a fundação de Hong Kong, a Guerra da Manchúria, a Primeira Grande Guerra”; e no espaço mátria “Tanto eles, como o pai, ex-grumete participaram, sob o comando do Ouvidor Arriaga na acção contra o pirata Cam Pou Sai, ao largo da ilha de Lin Tin” (

ADP):

‘O Crash na Bolsa de Hong Kong’ cujos efeitos são sentidos em Macau; a explosão no Paiol da Flora; a chegada dos refugiados e os primeiros ventos da modernidade.

É este o tempo dos objetos imigrantes (Parsons;1980:51

),

os realia históricos modelizados no romance “A Revolta dos Faitiões, o assassínio do governador Ferreira do Amaral e as incursões de Vicente Nicolau de Mesquita ao Passaleão” o tempo composto por factos de determinadas épocas históricas que se vão amalgamando com a ficção; de igual modo as tessituras consubstanciam o tempo do devir de uma comunidade que se fez diáspora: “iniciou-se uma enorme emigração (…) Entre os emigrantes figuravam os Frontaria da terceira e quarta geração.”

Um tempo objetivo, diegético, com indicadores de ordem cronológica, “As casas alumiadas a petróleo, naquele ano de 1905” (

ADP:5)

; “Naquele dia de Outono de 1908” (

Os Dores; 15),

e necessariamente um outro espaço, o Macau - outro que abarca a primeira metade do século XX textualizado pela saudade da memória; e, ainda outro, constituído por informações do tempo objetivo cósmico “Fazia frio. (…) o vento agreste da nortada soprava fúrias siberianas pelas esquinas (…)”(

ADP:9)

“«Verão de S. Martinho» continuava luminoso” (

Os

Dores:15)

mas os universos diegéticos contêm outro tempo, mais fluido e consequentemente mais complexo, um tempo subjetivo, relativo, refratário à linearidade do tempo absoluto; o tempo vivencial das personagens, dos ressaltos

da memória o tempo que vai confluir com os espaços e se textualiza na tessitura descritiva; o tempo que permite que, por exemplo, Amor e Dedinhos de Pé seja um romance em media res e se estruture em ressaltos analépticos extensos; que as anacronias temporais nos romances, A Trança Feiticeira e Os Dores sejam analepses completivas referenciais às personagens, não ao coletivo como no primeiro romance

É o tempo da estória contada; tempo igualmente múltiplo porque a sua vivência desenrola-se pelas multipersonas dos universos diegéticos. Da infância dos protagonistas – meninos no espaço-lugar protetor, as casas: a da tia Beatriz – Títi Bita e a dos pais de Adozindo - no Bairro de Stº António, a zona residencial das mais antigas famílias macaenses; o lugar da ‘cidade cristã’ como referente identitário. Mas também a casa da Calçada de Stº Agostinho que albergou mas não protegeu Leontina das Dores. È o tempo da infância; é também para eles o tempo da adolescência. Outros tempos, associados a lugares vão tomando conta do narrado.

A casa do beco do Lilau, a S. Lourenço, onde Victorina se encontra com a sua identidade e retoma o estatuto social que sempre lhe pertenceu e que a comunidade lhe negou. O convento das canossianas, ao largo de camões. E a cidade chinesa - o lugar simbólico da transição das trajetórias das personagens mas da imutabilidade do tempo “A cidade chinesa permaneceu impermeável às inovações, nas suas prédicas, costumes e tradições, costas voltadas ao quotidiano ocidental”

(

Os Dores76) ou como a descrição de Cheoc-Vai-Un, em A Trança

Feiticeira, assim o demonstra.

O espaço como referente do real permite-nos a segmentação da ‘cidade cristã’ por lugares de prestígio; no campo de lazer: o Clube de Macau, da elite macaense, o Grémio Militar, para as altas patentes, e o Clube dos Sargentos; os lugares de residência sempre associados à importância de uma igreja, núcleo atrativo da sociedade macaense, e à distância relativa ao palácio do Governador, à área de influência da Praia Grande; São Lourenço, A Penha, a zona de S. Francisco, tidas como as zonas nobres da cidade cristã da «aristocracia»; os bairros dos estratos elevados da classe média: Stº António, São Lázaro e as imediações da rua do Campo; e permite-nos a caraterização edénica da ‘cidade cristã’: “Toda a orla do casario da Praia Grande, em curva graciosa (…) resplandecia, ornada de árvores frondosas (…) as lindas vivendas disseminadas entre a vegetação bem tratada. Viam de longe (…) gente bem vestida, crianças bem alimentadas”.(ADP)