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2.Os Géneros, a Ficção e a Realidade

Uma das questões fundamentais quando se fala de literatura é a relação entre ficção e realidade; se a ficção se identificar demasiado com a realidade corre o risco de perder a sua identidade, contudo, ao texto ficcional, como construção imaginária, está subjacente a criação de mundos, parecidos ou não com a realidade, mundos que se constituem como alternativos ao mundo objetivo, embora plasmados na realidade.

Assim sendo, a ficção consubstancia uma forma de representação a partir da qual, e através da transformação da realidade, os autores constroem mundos verosímeis – a verosimilhança entendida como uma das características primordiais

da arte literária, tal como era entendida por Aristóteles, como a analogia do que é verdadeiro, daquilo que não sendo real possa sê-lo, daquilo que deveria ser credível. (Ricoeur;1987:32)

Desde a antiguidade clássica, nomeadamente com o entendimento e reflexão sobre a arte como representação da natureza, que o conceito de mimesis deixa de ser entendido como um mero processo ou capacidade de imitar algo e assume-se como uma das particularidades fundamentais da maneira como se fazia a poesis/ literatura. Platão, na República defendeu que a mimesis deveria ser sobretudo produção de imagens e resultado de pura inspiração e do espanto do artista perante a natureza das coisas aparentemente reais (a aparência permitida pelas sombras). Aristóteles, na Poética, considerou o poeta como um imitador do real por excelência, o intérprete de um mundo que deveria ser descrito através da mimese das coisas possíveis, não como cópia mas de uma forma de representação indireta, a referida verosimilhança.

Em Literatura a representação da realidade, e a sua transformação em mundos paralelos, carreou a noção de mundo possível, ou seja, um mundo ficcional concebido pela emergência de um domínio referencial do próprio texto correlacionado semanticamente com o mundo real através da representação mimética ou da transfiguração do real.

Para Roland Barthes o texto literário constrói-se a partir do momento em que o escritor transforma o ‘real’ em objecto, não no sentido de fazer uma cópia mas antes um decalque, “(…) por meio de uma mimese segunda copia o que já é cópia(…)”(Barthes;1999; 47), ou seja, Barthes considera a arte, sobretudo as manifestações artísticas inerentes a uma estética realista, tanto pictóricas como literárias, como representações “despintadas” do real.

Réne Walleck e Austin Warren consideram a literatura “ uma instituição social que utiliza como meio de expressão específico a linguagem – que é criação social”

(

Walleck; Warren: s/d:113–115) embora não concebam que a literatura seja um espelho que reproduz fielmente a sociedade admitem a função social da literatura na medida em que a literatura ‘representa’ a vida, de alguma forma, imita-a na sua condição de realidade social; “(…) uma grande maioria das questões suscitadas pelo estudo da literatura são, pelo menos em última análise ou implicitamente, questões sociais: relativas à tradição e à convenção, às normas e aos géneros, a símbolos e a mitos (…)”.(Walleck; Warren: s/d:113)

Tendo como subjacente a teoria de Popper sobre a possível constituição do mundo em, pelo menos, três submundos ontologicamente distintos, sendo que o

primeiro é o mundo físico, ou o mundo dos estados materiais; o segundo, o mundo mental, ou o mundo dos estados mentais e o terceiro, o mundo dos inteligíveis ou das ideias no sentido objetivo, sendo este o mundo dos objetos de pensamento possíveis, o mundo das teorias em si mesmas e de suas relações lógicas, dos argumentos e das situações, aquele que permite as criações artísticas, o mundo dos produtos mentais (K.Popper:[1963]:2003), Thomas Pavel considerou como mundos possíveis, tanto aqueles criados de forma análoga ao mundo real, como os mundos ontologicamente impossíveis (Pavel:1988:59-68); e é também neste sentido que Albadalejo propõe a noção de Modelo do Mundo que consubstancia a explicação conceptual das relações entre o mundo efetivo/ a realidade global e os mundos paralelos, que, não deixando de ser reais, são fruto de representações mentais. (Albadalejo Mayordomo;1986:75-79)

Estes mundos construídos pelo autor, e entendidos e interpretados pelo leitor, são imagens de uma realidade também ela construída de acordo com determinadas instruções imanadas do mundo real, que lhe está subjacente, e das crenças, sonhos e vontades de quem os constrói. Assim sendo, são possíveis, todos os mundos que têm como suporte referencial o mundo efetivo, real. Albadalejo considera a existência de três tipos básicos de modelo de mundo, a saber: o modelo da realidade efetiva, o modelo da ficção verosímil e o modelo da ficcionalidade não verosímil.

O primeiro modelo, sendo baseado no mundo da realidade efetiva, pode, o seu conteúdo, ser verificado empiricamente e corresponde ao conteúdo dos textos não literários, mas imbuídos de cientificidade.

O segundo modelo contém instruções diferentes daquelas que orientam uma narração de carácter científico, ou seja o ‘narratio’ da própria realidade; contudo o mundo construído, esteado no mundo real, tem com este grandes semelhanças, ou seja, é um mundo que se parece com o mundo objetivo. Deste modo, todos os mundos criados/construídos de acordo com o modelo de ficção verosímil constituem-se como mundos possíveis e estão subjacentes a uma parte significativa dos textos literários, nomeadamente os de carácter realista.

A realidade verosímil que estes textos literários referenciam depende do próprio entendimento que os seus autores têm do real, em consonância com os seus valores culturais e as convenções literárias, sobretudo os géneros em que os textos se inscrevem. Na antiguidade clássica, quando Aristóteles entendia que a poesia se concretizava em diferentes géneros que emergiam da mimesis, uma das

suas formas de distinção fazia-se pelo modo de mimesis ou imitação do real; a imitação narrativa23 ou a imitação dramática24.

Os géneros literários entendidos, desde a Poética de Aristóteles, como formas de classificação dos textos, devem a sua distinção às suas qualidades conceptuais e formais e agrupam-se por categorias estéticas fixas e codificadas; de acordo com as teorias da literatura um género literário é um universal em si mesmo e nele convergem as questões ontológicas e epistemológicas que se colocam ao fenómeno literário. São formas discursivas históricas de representação e de produção literária (Wellek; Warren: cap. XVII).

A mudança de paradigma, que se foi configurando a partir de setecentos, promoveu o surgir de novas formas literárias numa atitude de rejeição da teoria clássica dos géneros e afirmativa de uma liberdade criadora e individual;para esta situação muito contribuiu Madame Germaine de Staëll (1766 – 1817) não só com a sua produção literária romanesca: Delphine: 1802 e De L’Allemagne: 1810 que, embora alvo de fortes criticas dos seus coevos, foram contudo considerados os primeiros romances da modernidade, introdutores do Romantismo na Europa, mas, sobretudo, com a publicação da obra De la littérature considerée dans ses

rapports avec les instituitions sociales (1800) que suscitou inúmeras criticas pelo

facto de a autora considerar que a literatura, nomeadamente alguns géneros, constituía um dos fatores do gradual desenvolvimento das capacidades humanas. Madame de Staëll, durante toda a sua vida, proclamou, em viva voz, o direito dos indivíduos, tanto homens como mulheres, à liberdade de palavra e de conduta, sendo, também, ela a primeira a manifestar a importância da literatura como ‘retrato’ da sociedade.

É num contexto de mudança sociocultural e económica, impulsionada pela burguesia emergente, ávida de cultura, que o romance, herdeiro híbrido da epopeia, se impõe como o género literário ganhando uma importância crescente ao libertar-se do estigma de forma literária meramente lúdica, alarga o âmbito das suas temáticas e introduz novas técnicas, não só no que concerne à estilística, mas dando forma a novas temporalidades narrativas.

A partir do Século XIX o romance emerge como o arauto da mudança, veículo de uma cosmovisão dialógica com a sociedade e os valores que contextualizam os autores (Bakhtine:1997). Ao tornar-se matéria de estudo da alma humana, das relações sociais, substancia-se como fonte de reflexão e de

23 A epopeia. 24

testemunho, adquirindo o estatuto da mais importante e complexa forma de expressão literária da modernidade.

A literatura, através da sua discursividade, passa a representar a sociedade em mudança. As narrativas romanescas revelam as contradições sociais do tempo e pela observação introspetiva e prospetiva os autores descrevem os costumes as atitudes os comportamentos, i.e. falam-nos do seu tempo. Lukács considerou que a imposição do romance como género eleito pela burguesia se deveu ao surgimento de uma sociedade em que a heroicização do coletivo, apanágio da epopeia, já não se coadunava com a valorização do ser humano pleno na sua individualidade; para Lukács “o romance formou-se no processo de destruição da distância épica, no processo de familiarização cósmica do mundo e do homem, de rebaixamento do objecto de representação artística ao nível da realidade contemporânea, inacabada e fluente”. (Lukács1970:69,79)

O romance, sobretudo com o romantismo, dá-nos a expressão das grandezas e misérias da condição humana. A “moderna epopeia burguesa” (Hegel;1977:15) permite-nos o vislumbre, seja ele uma tentativa de refletir o real ou através dum imaginário ficcional consubstanciado na verosimilhança, das mutações sociais e políticas, dos avanços científicos e técnicos, dos conflitos existenciais do homem, da sua busca constante de se compreender e de se encontrar.

Assim, a forma híbrida, miscigenada, durante muito tempo considerada como um subgénero de uma literatura menor, assume-se como género maior, construtor de modelos de mundo25 ao registar ficcionalmente o devir do Homem

como entidade histórica e social, dando voz a uma sociedade constituída por pessoas comuns apresentadas na sua diversidade de crenças e desejos e capaz de cativar gente comum que se vê representada na verosimilhança; o romance compreende um dialogismo transtemporal na medida em que é o único género que ao saber representar o devir histórico congrega em si, tanto as representações culturais formadas ao longo do tempo, como matéria que permite compor o futuro.

Ao libertar-se do espartilho que as constrições estéticas impunham aos géneros e sendo muito permeável à absorção do novo, tanto ao nível da técnica como da temática, o romance torna-se difícil de definir na medida em que se constrói plasmado na hibridação genológica, conjugando a realidade e a

25 O entendimento do romance como género modelizante advém da corrente semiótica da escola de

Tartu, ao considerar que a modelização é concebida como construção de modelos de mundo cuja estrutura e representações emergem de um sistema semiótico. (Faccani e Eco; 1969:38).

ficcionalidade, por vezes numa amálgama textualizada, que dificulta a distinção entre o real, o verosímil e o ficcional. A temática permite-nos de certa forma estabelecer essa distinção, mas, independentemente dos temas ou das verdades, ao (re)nascimento do romance moderno subjaz a intenção de narrar acontecimentos críveis, de representar o mundo real; “O romance é uma resposta dada pelo sujeito à sua situação na sociedade burguesa ou estruturada em termos burgueses; essa resposta supõe uma operação textual sobre o real, o qual é assumido por uma narrativa que implica a existência de um ou vários narradores. A figura do narrador é, quer o duplo do autor-sujeito, quer uma estrutura de ligação dialetizada entre o autor-sujeito e o real.” (Krysinski: 1981:7)