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Os Filhos da Terra – A construção de uma Identidade

iniciação ou por uma escolha de destaque da sociedade estabelecida realizam formas novas de

3. Os Filhos da Terra – A construção de uma Identidade

Pode-se considerar que Macau foi cenário de uma colonização atípica56; a

intenção primordial dos portugueses foi fazer daquele pequeno istmo um interposto comercial, rapidamente transformada numa vontade de se estabelecerem tendo em conta que o vislumbre de uma boa mercancia se ia tornando realidade. O assentamento teve contingências várias, pois, o pedacinho de terra pertencia ao Império do Meio, e assim ficou para todo um tempo, embora Portugal mantivesse a ilusão de ter uma colónia.

Há colonização quando uma nação soberana ocupa e domina uma região e o seu povo. Há colonização quando a dicotomia, colonizador/colonizado é uma realidade, de acordo com a visão maniqueísta da colonização e defendida por Said,(Said:2004) e contestada por Homi Bhabha considerando este autor que “ a relação entre colonizador e colonizado não pode ser vista de forma tão simplista nem homogénea, pois é uma relação rica em contradições e ambivalências, passível de ser analisada à luz de uma teoria psicanalítica em que seja posta em evidencia a dimensão inconsciente das relações que muitas vezes se materializam na dicotomia repulsa/ desejo, Identificação/ condenação.”. (Bhabha:1994:11-12)

Se, num primeiro momento, o número de reinóis no enclave era significativamente superior à pequena comunidade chinesa de pescadores que habitava a aldeia da baia de Á Ma, esta, progressivamente, vai aumentando com um fluxo migratório contínuo vindo da região de Guangdong, assumindo a terra sua e recusando sistematicamente um governo estrangeiro na medida em que para tal tinham um mandarim enviado do Imperador chinês. É sabido que por parte dos chineses o território sempre foi pertença da China, e o estatuto que lhe é atribuído de Território Chinês sob Administração Portuguesa em 1976, só textualizou essa realidade.

De Portugal chegavam sobretudo mercadores e missionários, não se verificando um movimento de famílias da metrópole para se estabelecerem no reduto chinês, como aconteceu nos outros territórios colonizados, condição

56 É de referir que, por exemplo, as leis orgânicas de 1914, referentes ao conjunto das colónias

portuguesas, não se aplicaram a Macau, reconhecendo-lhe, o Estado, uma situação excecional, nomeadamente no que respeita à questão de cidadania, na medida em que os habitantes de Macau tiveram sempre garantida a cidadania nacional, o mesmo não se passando com os habitantes das outras colonias que até à revogação da lei, em 1961, mantiveram o estatuto de assimilados.

necessária para a constituição de uma elite colonizadora; a maior parte das famílias fundadoras surgem no próprio território e como resultado de casamentos mistos.

É pois deste cadinho que se formam os Filos da Terra e se a cultura do pai é imposta pela educação porque proveniente da nação dominante (o domínio da Macau cristã) a cultura materna é transmitida no aconchego do berço, resultando numa identidade híbrida, processo dialógico entre o ocidente e o oriente, forma de crioulização que, tal como a imagem do oriente e do ocidente, é uma construção intelectual. (Said:2004)

Assim, o que subjaz à construção da identidade dos filhos da terra é uma forma de transculturação57 que fluiu naturalmente na identidade híbrida; de

acordo com Stuart Hall, a copresença espacial e temporal de sujeitos anteriormente isolados, histórica e geograficamente, e o consequente intercambio cultural leva a um processo no qual os grupos selecionam e recriam o que lhes é transmitido pela cultura metropolitana dominante. O hibridismo é pois o resultado de um processo contínuo de transculturação e a identidade híbrida não é mais do que uma nova identidade que guarda traços das identidades originais. (Hall;1996:1-18)

A comunidade macaense embora constituindo-se como um grupo minoritário (em termos percentuais) em relação ao exogrupo constituído pela população chinesa teve um comportamento de cultura/ sociedade dominante, mas perante a sociedade/cultura dominante da qual provinha individualizou a sua cultura e construiu uma identidade própria “ a construção da identidade é um processo de negociação entre a “mêmeté”, a continuidade da pessoa no tempo e a integração das representações e novas experiências (Camilleri:1990:33).

Uma das teorias das estratégias identitárias (Camilleri:1990) perspetiva a aculturação como negativa considerando que o indivíduo em situação de aculturação assume a desvalorização dos estereótipos e pré-julgamentos negativos intuídos das relações assimétricas entre a sociedade de acolhimento e o grupo de origem. Camilleri concebeu o seu modelo de análise tendo por base o estudo de grupos de imigrantes e as relações entre estes grupos e as sociedades de acolhimento/culturalmente dominantes, dai que considere que mediante uma serie de situações negativas e desestruturantes, os indivíduos do grupo tenham de criar estratégias que lhes permitam a sobrevivência social e, sobretudo, lhes

57 De Fernando Ortiz (1940), modo de aculturação em que ambos os segmentos se modificam gerando

permitam o equilíbrio satisfatório entre as duas funções de identidade, a função ontológica58 e a função pragmática59; este modelo é passível de ser adaptado à

sociedade macaense, embora se considere que a situação de Macau seja substancialmente diferente, tendo em conta que é nossa convicção não ter havido aculturação, mas sim transculturação na construção identitária dos Filhos da Terra60.

Destarte, o grupo foi criando um conjunto de estratégias ao longo do seu processo identitário, que permitiram a coerência entre as duas funções de identidade objetivando estabelecer uma unidade de sentido que, de certo modo, obviasse o conflito com o exogrupo que partilhava o território; mas, também, lhes proporcionasse uma relativa harmonia com o campo de poder, que se consubstanciava na presença de autoridades governativas metropolitanas, a personificação do poder colonial.

As referidas estratégias podem passar por duas formas de coerência: coerência complexa que consubstancia, por um lado, a resolução das contradições por si, e não em si, segundo uma lógica afetiva não relacional procurando maximizar as situações de vantagem e reinterpretando os códigos de modo egocêntrico, por outro lado, através de uma lógica racional que passa pela reapropriação, valorização do espírito e suspensão da aplicação dos valores61; e

pela moderação de conflitos que leva as comunidades a tomarem atitudes que permitem, a ponderação diferencial dos valores que se opõem, a limitação de situações sentidas como penalizáveis e que levam necessariamente a uma alternância de códigos.

Entende Camilleri que existe uma relação de complementaridade entre a socialização e a dinâmica identitária e que essa relação depende da estabilidade do contexto social; assim qualquer mudança no contexto social pode provocar a modificação do sistema social de valores, ou seja, da identidade que assume uma dinâmica através da qual o indivíduo tenta, a partir do interior, compensar e dominar as mudanças da realidade exterior, de modo a colmatar uma possível desestruturação; nesta situação a identidade assume um papel ativo de regulação

58 i.e. A referência a certas manifestações e valores considerados fundamentais 59 i. e. A adaptação ao meio envolvente

60 O termo transculturação foi criado na década de 40 por Fernando Ortiz em Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar, correlacionado ao universo das trocas culturais. Este mesmo conceito foi, na década

de 70, utilizado por Angel Rama nos estudos literários; em Imperial Eyes, Mary Louise Pratt, (Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque, Routledge, 1992) faz o uso extensivo do conceito de transculturação reportando-se a um universo mais amplo, que é o da constituição de um universo simbólico, imagens e discursos que consubstanciam um modo ou estilo cognitivo e um repertório semântico e imagético por meio do qual o outro colonial passa a ser abordado.

61 Considerando que estas são estratégias problemáticas que não permitem evitar os conflitos

da socialização; as estratégias identitárias são, pois, instrumentos de regulação da actividade quotidiana e a sua escolha depende tanto da situação individual como da situação da comunidade, tendo o contexto cultural e social um papel predominante.

A cultura pode ser entendida como uma matriz da qual cada um extrai o sentido da sua própria identidade cultural

(

Bernardi:1982), ou seja, a partir duma matriz cultural, de um modelo específico de cultura, no caso concreto a cultura portuguesa, a comunidade macaense definiu os seus valores e interpretações culturais em formas de representação motivadas e adaptadas segundo o contexto espácio-temporal. São os processos dinâmicos da cultura que permitem a apropriação e a assimilação de valores e comportamentos pelos indivíduos; ao experienciarem esses valores e comportamentos, ao vivenciá-los, tornam-se parte activa do processo cultural, seus intérpretes, na medida em que, não só são criaturas de cultura, no sentido em que são seus portadores, mas também seus criadores.

Certos comportamentos específicos, expressão de um sistema padronizado de atitudes emotivas, constituem-se como representação do ethos de uma comunidade e a partilha do mesmo ethos traduz-se num processo simultaneamente de identificação e de distinção pois, permite, através da identificação com o seu grupo, a distinção do outro.

Bernardi considera quatro aspetos fundamentais no processo dinâmico de cultura, o anthropos, ou seja a convergência de indivíduos que provoca o surgimento do ethnos que corresponde ao processo de formação de uma comunidade a partir da ideia de communitas, um tipo de associação humana sem estrutura definida e fruto da necessidade de sentir comum, até à estabilização da sua estrutura e passagem a comunidade onde a cultura se torna um bem comum e se afirma como património; neste processo comunitário de cultura, a partilha de uma língua e de um território são valores fundamentais, encontrando cada comunidade a sua própria forma de cultura, o seu contexto identitário, a sua estrutura de pertença que permite aos seus membros distinguirem-se dos outros indivíduos e das outras comunidades.

O segundo aspeto, que denominou oikos, corresponde à ideia de território, e assume-se como o garante da continuidade; a terra é sentida como pertença, e a continuidade da terra torna-se sinónimo de continuidade da comunidade. Outro aspeto é o tempo, chronos, que está profundamente interligado com a estruturação de uma cultura, e das três dimensões da temporalidade absoluta, são

o passado e o presente, as que detêm um valor mais significativo na medida em que a cultura percorre o tempo como um legado geracional tomando a forma de traditio. (Bernardi:1982)

Os aspetos individuais da cultura consubstanciam-se em antropemas, ou seja, determinados princípios de interpretação que permitem ao indivíduo ou à comunidade uma orientação nas suas escolhas e são a matriz de expressões particulares de cultura; quando os antropemas se articulam entre si de forma sistemática originam os etnemas, ou seja, as manifestações coletivas da cultura.

Pode-se, também, entender que a cultura é objeto de um contínuo processo com duas vertentes: de transformação, tanto interna, cuja emergência se deve tanto aos antropemas expressos pelos membros das comunidades, como pela aculturação; e de conservação, que se traduz na manutenção da integridade dos seus etnemas estruturais. (Piteira:1999)

A heterogeneidade cultural das sociedades em contexto pluriétnico consubstancia transformações no seio das culturas em contacto dando origem a fenómenos de aceitação, rejeição e de adaptação ou adoção, em suma originando processos de aculturação, simbiose e de sincretismo. Estes processos são diacrónicos e embora intencionais por parte dos agentes portadores de transformação, são, na generalidade, seletivos por parte da cultura recetora pois esta só assimila o que lhe é “útil” rejeitando o que lhe é contrário.

No que concerne à identificação étnica e identidade cultural, neste tipo contextual, o que subjaz é a forma como o ‘eu’ se define perante o ‘outro’ num mesmo espaço comum e necessariamente partilhado, “Ethnic identities are products of classfication, ascription and self-ascription and bound up whith ideologies of descent. From this point of view the study of ethnicity is related to the study of ideology and of cognitive systems. In this sense ethnicity is part of culture. It is also meta-culture in the sense that it is a reflection on what ‘our’ and ‘their’ culture is about.” (Vermeulen; in Barth: 2000:4)

Macau pode ser definido como o lugar de encontro de duas comunidades que ao longo de séculos tiveram o destino conjunto de partilharem o mesmo espaço: a comunidade chinesa, maioritária, profundamente ligada à terra mãe que acaba por ser dominada administrativamente, mas não colonizada culturalmente. A cultura desta comunidade de chineses de Macau tem as especificidades próprias de um sincretismo cultural fruto de um contacto secular, a matriz é a milenar cultura chinesa, sempre entendida pelos próprios como superior a todas as outras culturas; a comunidade macaense minoritária mas dominadora a coberto de um

estatuto de portugalidade que lhe advinha da ascendência e de uma vivência

cultural com fortes liames da cultura de origem dos seus avoengos.

Uma comunidade mestiça resultado da transculturação caracterizada por traços identitários distintivos perante a outra comunidade: uma portugalidade mais pressentida e assumida do que vivenciada; uma religiosidade de total pendor católico, mas experienciada de forma, por vezes, sincrética; uma língua pátria, a portuguesa, numa realização linguística dual variando de acordo com os níveis e os registos: o português, próximo da norma mas com os laivos da especificidade no léxico, na morfologia e na estrutura frásica, realizado em situações de comunicação formal; e o português crioulizado, ou até a língua doce crioula, língua íntima, familiar, o Patois ou Doci Papiaçam di Macau.

Os macaenses partilham um conjunto de crenças, valores e representações que consubstanciam o universo simbólico carreador do sentido e da coerência da sua existência; as representações desse universo simbólico dos macaenses, que perpassam nos textos dos seus autores, e que substanciam o seu construto identitário são, pois, a nossa matéria de análise.