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Capítulo IV – Da Literatura Macaense

2. A genologia do Corpus.

As obras literárias constituintes de parte significativa do corpus integram- se nos dois géneros que mais se aproximam: o romance e o conto; tradicionalmente herdeiro da literatura oral, o conto identifica-se por ser uma narrativa curta; focando, geralmente, um episódio, um caso humano ou uma situação exemplar. Caracteriza-se por uma forte concentração da intriga (unidade de acção), uma forte concentração do espaço (unidade de espaço), uma forte concentração do tempo (unidade de tempo), por um número reduzido de pausas descritivas, relevando significativamente os espaços de diálogo; consubstancia uma intensidade afetiva devido à concentração de acontecimentos no tempo e no espaço. O conto, “(…) em última instância, desloca-se no plano humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência.” (Cortázar: 1986:147-163). Os contos que integram o corpus são a materialização do citado; são estórias – memórias.73

O romance surge em contestação a toda a fundamentação teorética e agregando em si vários subgéneros num hibridismo genológico. Considerado por Hegel como a ‘moderna epopeia da burguesia’ ou como género autónomo ‘cuja originalidade consiste em ser a antítese da epopeia’, de acordo com Bakhtin, há sem dúvida particularidades no género romance que substantivam a sua diferença e que se prendem com o facto de ser o género literário que melhor representa o dialogismo entre a literatura e a sociedade.

A obra literária, através dos seus modos de representação, liga-se à sociedade e à história; o escritor, vivendo num tempo e num espaço concretos, em diálogo com a sua cultura e com o imaginário que a consubstancia, representa uma mundividência onde transparece a relação com o seu tempo e espaço histórico; esse dialogismo relacional pode estar imbuído de representações (tanto de forma implícita como por vezes explicitas) dos temas figuras e eventos, figurações do contexto sócio cultural e histórico, i.e., do mundo real do escritor.

Considera Bakhtin que o dialogismo inerente às diversas esferas da actividade humana carreia modalidades comunicativas infinitas, que consubstanciam infinitas formas de discursividades; uma delas, a narrativa literária que se realiza através da prosa romanesca tem acumulado diacronicamente elementos que permitem compreender aspetos do mundo contextualizadores de épocas específicas e perspectivadores do devir histórico; sendo o romance o único género que melhor permite a visualização do decurso, de parte da humanidade, através das suas representações culturais e sociais. (Bakhtin:1981)

De acordo com o que foi referido, a obra literária, embora através dos modos de representação, dialoga com a sociedade e com a história. O seu autor, vivendo num tempo e num espaço concretos em dialogismo com a sua cultura e com o imaginário que o substancia, representa uma cosmovisão refletora da relação com o seu tempo e espaço histórico. Dessa cosmovisão, mundividência ou visão de mundo, emergem temas e valores relativos ao mundo, aos seus problemas e contradições. Um aspeto da cosmovisão prende-se com o modo que enforma o dialogismo entre autores/ escritores e o seu contexto sócio - cultural e histórico, podendo resultar em representações explícitas de figuras e eventos, embora a interação da obra com o seu tempo sócio – histórico não tenha necessariamente, do ponto de vista da cronotopia, de ser expressa.

O texto narrativo literário caracteriza-se fundamentalmente pela forma como é enunciado: um narrador, explicitamente individuado ou reduzido ao grau zero de individuação, funciona em todos os textos narrativos como a instância enunciadora que conta uma história – relata uma sequência de eventos ficcionais ou ficcionados, originados ou sofridos por agentes ficcionais antropomórficos ou não, individuais ou coletivos, situando-se tais eventos e tais agentes no espaço de um mundo possível74.

Manifesta-se no texto narrativo uma necessária polaridade entre autor textual e o mundo narrado – o desígnio central que rege o romance é a vontade de construir um mundo possível que possua nítida independência em relação ao romancista – desígnio de objetivar na escrita acontecimentos, estados, personagens e coisas, ou seja construir um universo diegético. Entre este mundo construído e o romancista podem-se estabelecer múltiplas relações axiológicas –

74 Tais eventos, segundo Lubomir Doležel, estão semântica e pragmaticamente submetidos às restrições

modais. A relação das estruturas narrativas com sistemas lógicos modais possibilita distinguir segmentos atómicos ou elementares. (Doležel:1989) No entender de Gerard Genette o mundo possível assim considerado consubstancia o universo diegético no romance.

ódio, indiferença, nostalgia, ternura, etc. – mas, estas relações não aniquilam a fundamental alteridade das produções romanescas ante o seu autor textual e o seu autor empírico. A presença ou ausência do autor empírico na sua obra (problema debatido entre os partidários do romance subjetivo e do romance objectivo) não constitui entrave para a apreciação da alteridade.

Os heróis dos romances podem constituir, como referiu André Malraux (Malraux:1977:130-132), virtualidades do seu autor, projeções dos seus estados de consciência, mas deve-se reconhecer que, todavia, não se trata de um processo produtor identificável, pois, uma exigência fundamental do romance consiste em construir um mundo peculiar povoado de personagens secundárias e heterogéneas irredutíveis a projeções de estados de consciência do autor.

O romance consubstanciou a mais profunda e sensível representação da evolução da própria realidade humana, na medida em que só o que evolui pode entender a evolução (Bakhtin:1981); ao representar o presente vulgar, instável e transitório e elegendo-o como forma primordial de temporalidade, recriou o próprio conceito nocional de tempo inscrevendo-o no espaço da representação.