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A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO CONSTITUINTE

2. A MOBILIZAÇÃO POPULAR

2.2 As emendas populares

Após o resultado das eleições, verificou-se que a composição do Congresso Constituinte era bastante desfavorável aos interesses populares. Partindo disso, cresceu em importância a batalha pelo regimento interno a que se lançaram muitos movimentos, para garantir que os trabalhos da Constituinte tivessem o mínimo de participação popular. Articulando-se para atingir a meta proposta, o movimento unificado conseguiu fazer uma pressão de peso. Na data da instalação da ANC, cada parlamentar recebeu um impresso contendo as reivindicações dos plenários e, ao mesmo tempo, era passada uma lista de apoio entre os constituintes, referente à inclusão da iniciativa popular de emenda no

” ^BRAS1L. A SSEM BLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. A n tep ro jeto da C om issão da S o b eran ia e dos D ireitos e G a ra n tia s do H om em e da M ulher. Brasilia: Centro Gráfico do Senado Federal, ju nho de 1987. art. 3.°, III, e. Em entrevista concedida em 16.12.96, o ex-senador justifica seu texto com as seguintes palavras: “Com a minha experiência de juiz eu sabia que um texto genérico que perm ita interpretações ele é sempre distorcido pelos preconceitos e pelas ideologias. Então em m atéria de igualdade da m ulher eu coloquei um texto direto, repetitivo e que fechava toda e qualquer possibilidade de interpretação. Esse texto é incrível. Toma nota do que eu estou te dizendo: daqui a alguns anos o pessoal vai se dar conta. Esse texto é um a coisa raríssima em direito. Ele não permite outra interpretação que a literal. Esse era o segredo dele. E não é uma linguagem literária, é uma linguagem jurídica para evitar o jogo herm enêutico. Trabalhei muito, dia e noite, eu sozinho trabalhei. Fui debater no Rio, em São Paulo e tal. Quando começava, era um a gozação. Quando terminava, eu era aplaudido de pé. Pelos homens. As mulheres achavam que os privilégios delas iam cair também e ficaram [apreensivas?]. E tinham razão, porque eu acabava tam bém com alguns privilégios delas. Eu estabelecia igualdade mesmo, exceto naquilo que era especificam ente feminino. Não tinha interpretação possível. Esse texto aí, tom a nota, vai ficar na história, vai vir daqui a uns tempos, o pessoal vai trazê-lo de volta. Olha aí o jeito de colocar um a coisa que não tem como m udar depois” (Cfe. BISOL, José Paulo. Entrevista, em anexo).

^''O tem or das m ulheres em perder a conquista na redação do substitutivo (o chamado “Cabral I”), realm ente se verificou com a supressão do texto (cfe. J o rn a l do B rasil, 23.8.87 e O G lobo, 5.9.87), em bora o princípio da igualdade tenha se mantido, com uma redação lacônica no art. 5°, I (até por ser um princípio), e várias regras no corpo da CF que o densificam, explicitam e detalham - como no caso do art. 7°, XVIII e XX, e do art. 226, § 5°.

regimento interno. Conseguindo importantes apoios (14 senadores e 76 deputados, fora o apoio partidário do PT e do diretório regional paulista do PMDB), só faltava a pressão ao relator do regimento, senador Fernando Henrique Cardoso, que recebeu mais de mil telegramas favoráveis à medida e acabou por defendê-la e incluí-la, enfim, no

regimento” ^

Foi a primeira - e única - grande vitória obtida pelos plenários, movimentos e comitês pró-participação na Constituinte visando modificar as condições de participação política da sociedade. Todavia, isto não foi pouco, pois propiciou sem dúvida a maior participação da sociedade na elaboração de uma Constituição neste País. A grande novidade era a iniciativa popular, mecanismo de democracia direta utilizado em vários países na elaboração de leis, desta vez prevista para a feitura da própria Constituição^^'^.

Enfim, o regimento interno da ANC, em seus artigos 16 e 24, previa que a população poderia apresentar emendas ao projeto de Constituição, desde que contassem com o mínimo de 30 mil assinaturas, endossadas por três entidades legalmente

” ^Cfe. M ICHILES, Carlos et al. op. cit., p. 57-59. Fazendo um contraponto ao prism a apresentado, N elson Jobim, com o ponto de vista de quem esteve envolvido diretamente com a questão (pelo lado de dentro da À ssem bléia Constituinte), emite opinião contrária. Para ele; “Começou a se form ar uma teoria sobre a elaboração do regimento interno. Eu me divertia muito quando assistia às conversas, às análises de juristas, de sociólogos sobre o regimento interno. Tudo aquilo era racionalização de um processo que não tinha nada a ver com aquilo. Aquilo foi um problema político. M ontamos aquele troço porque não tinha outra coisa a fazer” . Perguntado sobre como se deu a inclusão das audiências públicas e das emendas populares no regim ento interno, deu a seguinte resposta: “A questão foi: como fazer? Esse povo vai receber papel em branco. O processo era um processo de auto-gestação. Não tinha papel nenhum oficial [por não haver um projeto inicial a ser discutido]. E o que se fez? Vamos discutir o fluxogram a de trabalho de cada subcomissão. N a montagem do fluxograma, tínhamos que abrir um m omento de discussão e debate, mas não era porque tinha de ser, porque teoricamente era... Vamos deixar bem claro isto, Não era porque era democrático, porque era assim, digamos, moral. Não era nada disso. Era porque não tinha outro jeito. Os outros tam bém eram morais, os outros sistemas. Vamos fazer debates. Vamos possibilitar que todo o m undo venha aí falar. Então, naquele momento iniciai, não era porque nós fizemos um m odelo que entendíam os que todo o mundo tinha que falar. Não! Pelo contrário, nós não tínham os outro jeito de fazer, fez-se aquele. Esse aí apareceu como necessário, dentro do processo. Não foi ele que condicionou o processo. Ele surgiu dentro do contexto do processo, que ficou dessa forma. Aí deu certo aquele debate inicial. Era o quê? Tem que ter um papel. Não dá para começar um a discussão sem ter um papel. A Comissão abre suas sessões, ouve todos os setores, que começam a fazer sugestões. O relator da subcomissão, que era chamado de sub-relator, junta esse material e produz o texto, que vai para a comissão. Como é que vai produzir o texto? Havia duas alternativas: ou um texto produzido só pelo relator, ou ele procurava fazer um texto que tivesse uma certa legitimação” (JOBIM, Nelson. Entrevista, em anexo).

constituídas. Cada cidadão só poderia assinar três emendas. Tais emendas poderiam, ainda, ser defendidas no plenário da Comissão de Sistematização da ANC” ^

A aprovação deste dispositivo causou reações contrárias, até iradas, de alguns parlamentares que se sentiram diminuídos no seu papel de representantes do povo, como o deputado Samir Achoa, do PMDB-SP, indignado com essa inovação de democracia direta"*.

Entretanto, a possibilidade de emenda popular à Constituição, como previsto no relatório da Comissão dos Direitos Políticos e no anteprojeto da Comissão de Sistematização, não vingou na forma fmal, conforme se vê no art. 61"®.

Dentre as estratégias montadas para a otimização da participação popular na Constituinte, é de se mencionar a organização da “Articulação Nacional de Entidades para Mobilização na Constituinte” com o propósito de unificar as pressões dos diversos movimentos sociais, racionalizando o processo de coleta de assinaturas de emendas. Tal iniciativa, entretanto, teve, ao longo de sua existência, vários percalços causados principalmente pela dificuldade de conviver com as diferenças, o que lhe retirou muito do seu potenciaP'*®.

Mas não foi só através das assinaturas em emendas que o povo participou da Constituinte. Para Dalmo Dallari, “houve também a presença constante do povo, através de manifestações levadas a efeito nos Estados e também pela presença de numerosos e agressivos grupos populares em Brasília, vigiando de perto os constituintes e exercendo

” ’Cfe. M ICHILES, Carlos, op. cit., p. 5-11. ” ®idem, ibidem, p. 7-9.

” ®idem, ibidem, p. 14-18. No projeto de Constituição da Comissão de Sistematização, ver art. 118, I . A Constituição do Estado de Santa Catarina, no entanto, prevê a iniciativa popular de em enda constitucional, em seu art. 49.

^'•“Em C id a d ã o C o n stitu in te: a saga das em endas populares, cit., encontra-se a lista de todas as entidades participantes, ligadas a movimentos sociais de todas as matizes (p. 68), bem como o histórico detalhado da “Articulação Nacional” e um a extensa crítica a seus desvios, de onde retiramos o seguinte parágrafo:

“Em seu início, todavia, a Articulação mostrou-se uma experiência prom issora de ação unitária das forças progressistas da sociedade. Ao longo, os velhos vícios, mais uma vez, se evidenciaram. D iferentem ente do processo da ação unitária levada pelas bases populares que conseguem com êxito aglutinar-se quando defrontadas com seus problemas permanentes, algumas lideranças acabam fazendo do acessório m otivo de irremediável divisão. Insistem no desvio impondo sua forma de pensar e reduzem a dinâm ica do m ovim ento popular a um esquem a dogmático que estabelece objetivos a serem atingidos, sem cuidarem dos m étodos e das mediações que levam àqueles objetivos” (p. 70).

sobre eles a pressão legítima, justificada por ser o povo o verdadeiro titular do poder constituinte”^'*'.

A campanha para o esclarecimento da população sobre as emendas populares ganhou as ruas em maio de 1987^'’^ Em todo o Brasil, começa a coleta de assinaturas.

Em Florianópolis, as entidades que encabeçaram emendas populares foram a UFSC, a Fundação Catarinense de Desenvolvimento da Comunidade e a Prefeitura Municipal, versando sobre saúde, educação e previdência sociaP'*^. A partir daí, a “UFSC tenta obter 90 mil assinaturas” para as três emendas populares escolhidas como prioritárias pela população catarinense. A Ação Catarinense pró-Constituinte, na pessoa de sua coordenadora, professora Sidnéya de Oliveira, juntamente com o prof. Nilson Borges Filho, promoveu uma peregrinação pelas principais cidades do Estado em busca de apoio das prefeituras à coleta de asinaturas^'*''.

O dia 15 de julho de 1987 foi o marco inicial para o recebimento das emendas populares^''^ Entretanto, por uma questão de estratégia, o dia 12 de agosto fai escolhido para a entrega conjunta de mais de 60 emendas, por coincidir com a greve geral marcada pela CUT, já que os dois eventos significam uma luta por “melhores dias para o Brasil”, o que levou temor ao relator Bernardo CabraP'^^.

^'"DALLARI, Dalm o de Abreu. A participação popular e suas conquistas. In: MICHILES, Carlos et al.

Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Neste m esm o

livro, que inventaria toda a participação popular na Constituinte, são m encionadas várias caravanas que se deslocaram de m uitos pontos do País em direção a Brasília, como na instalação da ANC, na entrega das emendas populares, em agosto de 1987, e em fevereiro de 1988 para protestar contra as manobras do Centrão. Nos períodos de votação, muitos grupos de pressão populares revezavam-se pelos corredores do Congresso. Entre eles: professores, estudantes, índios, aposentados, trabalhadores rurais, artistas, ecologistas, etc (p. 72).

Jornal do Brasil, de 29.5.87, noticia que cerca de 40 entidades populares, entre as quais a CUT,

CONTAG, CONAM (Confederação Nacional das Associações de Moradores) e ANDES (Associação Nacional dos Docentes no Ensino Superior), deflagram a campanha.

” ^Diário Catarinense, 31.5.87. Em Porto Alegre, na mesm a época, é inaugurado, na “Esquina

D em ocrática”, o primeiro posto de coleta de assinaturas da “Campanha Nacional Iniciativa Popular Constituinte” (Diário Catarinense, 5.6.87).

^''Diário C atarinense, 13.6.87.

^‘'^O Estado (de S. Catarina), 15.7.87.

^“^Jornal de S. Catarina, 24..7.87. É interessante m encionar que as emendas apresentadas pela CNBB

foram entregues em outra data, 29.7.87, para evitar que houvesse hostilização da CNBB por grupos de esquerda em função das emendas sobre aborto e liberdade religiosa (cfe. Jornal do Brasil, 24.7.87). Este fato revela a ambigüidade das posições da Igreja Católica: extremamente conservadora nas questões de moral sexual, e “progressista” com relação às questões econômicas e sociais.

Entre as propostas de emenda popular, de grande destaque foram as que tratavam da iniciativa popular. Várias entidades, entre elas a ABI e a ANDES, apresentaram proposta que “assegura a iniciativa popular de lei, no processo legislativo, mediante proposta subscrita por setenta mil eleitores no mínimo. Possibilita também a qualquer cidadão propor diretamente ação de inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público”^''^

No dia previsto, as emendas populares são entregues por Lula, deputado do PT, e Jair Meneguelli, então presidente da CUT, com a presença de outras entidades e cerca de 2000 pessoas. No ato, o presidente da ANC, deputado Ulysses Guimarães, é vaiado^''*.

Merece realce também um fato, para mostrar que nem todas as emendas populares foram “progressistas”. A FIERGS entrega sua emenda contra estabilidade dos trabalhadores no emprego^'*®, semelhante a algumas outras como a defendida por Mário Amato, da FIESP, sobre os princípios da livre iniciativa, com o fortalecimento da economia de mercado.

Entre as emendas populares, talvez a que tenha sido mais diretamente aproveitada no texto da Constituição seja a da participação popular (na verdade, eram três emendas que propunham a adoção dos mecanismos de democracia direta)^^®. Apesar da iniciativa popular de emenda constitucional ter sido barrada, não é pouco o que consta do art. 14 e do art. 61, § 2 .°'".

Para Carlos Michiles, “o Estado, enquanto instituição que centraliza e concentra o poder, não constitui um bloco homogêneo de poder, mas estabelece uma relação

^""Folha de S. P aulo, 26.7.87. '"*Folha de S. P aulo, 13.8.87. ^'’^Folha de S. P aulo, 14.8.87.

^*°Sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular, ver BENEVIDES, M aria Victoria de Mesquita. A C id a d a n ia A tiva. São Paulo; Ática, 1990, e MOISÉS, José Álvaro. C id ad an ia e P articip ação . São Paulo: M arco Zero, 1990.

^^'José Afonso da Silva, jurista que teve um a participação brilhante antes e durante a ANC (foi m em bro da Comissão Afonso Arinos, candidato derrotado à ANC e assessor da liderança do PMDB), defendendo as propostas populares, advoga a tese de que, mesmo não constando explicitamente no texto constitucional, a iniciativa popular de em enda constitucional deve ser admitida, segundo interpretação sistemática da CF, “com base em normas gerais e princípios fundamentais”, como o do parágrafo único do art. 1° e o do art. 14, utilizando-se para seu exercício os mesmo critérios cabíveis na iniciativa popular de lei (SILVA, José Afonso da. C u rso de D ireito C o n stitu cio n al Positivo. 9. ed., 3. tiragem. São Paulo: M alheiros, 1993, p. 61-62).

heterogênea de dominação com os movimentos populares”, o que propiciou a irupção das camadas de baixo na tentativa de assegurar mais espaço de soberania na relação com o Estado, reivindicações presentes nas organizações de participação popular, o que de certa forma se alcançou com a iniciativa popular de lei, conquistada, e não concedida pelas

elites'^^

Como atesta Regina Prado, o êxito da campanha foi evidente: 122 emendas populares foram entregues à ANC, com mais de 12 milhões de assinaturas. Destas, a maioria teve sua origem a partir de três tipos de organização social: “Igreja Católica e movimentos religiosos de base, tipo pastorais; as próprias plenárias populares; e os sindicatos de trabalhadores rurais (até mesmo quando se tratava de questões correlàtivas aos trabalhadores urbanos)”" '.

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