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CONQUISTAS CONSTITUCIONAIS

4. O REFLUXO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR CAUSAS

4.1 A visão dos entrevistados

Pelo relatado até aqui, já foi possível visualizar que não houve uma continuidade da mobilização social ocorrida durante a Constituinte, o que se percebeu de forma clara quando da revisão constitucional de 1993-1994. Mesmo antes, no entanto, já se apercebia essa situação. Em 1990, o congresso era mais conservador ainda do que aquele que fez a Constituição, o que levava ainda mais o povo à desmobilização e à desesperança, e significava, na prática, a negativa de votar as leis implementadoras da Constituição'’''^

Confira-se, na visão das pessoas entrevistadas para este trabalho, que participaram diretamente do processo constituinte, quais seriam as causas desse refluxo. Para a professora Sidnéya de Oliveira, no caso específico da Ação Catarinense Pró-Constituinte e Constituição:

Primeiro, a necessidade sem pre de um a coordenação. A universidade trabalha com mandatos. Enquanto eu estava na pró-reitoria, eu tinha um tem po disponível para isso. Depois, voltei para a sala de aula, e como professora já não dava. A administração que nos seguiu também não teve... parou, porque o objetivo era discutir aquele m om ento da Constituinte, da Constituição, e esse acompanhamento foi realmente... não sei o porquê, assim as razões. Devem ser as razões de todo g ru p o : tem um tem p o p a ra n ascer, p a ra desenvolver e p a ra m o rre r. É um ciclo. Mas eu acho que, ainda que indireta, de um a outra categoria, ainda há essa preocupação. Pelo menos a associação dos professores daqui - APUFSC -, que também tinha representantes na época, o SINTUFSC [sindicato dos funcionários da UFSC], o próprio DCE também. Eu acho que esse trabalho político continua. Não na proporção da época. E, agora, também não haja agora tanta necessidade, porque nós não tínhamos um Presidente eleito, agora já temos. Arcamos com a responsabilidade...

Eu realmente não saberia te dizer porquê. Talvez seja pela falta de um engajamento maior, de um a liderança. E tam bém é um processo que cansa. Poderia ter sido outro tipo de trabalho, quem sabe? Não sei... do governo do Estado, de alguma ONG, de algum sindicato. Eu acho que a esquerda, ou a oposição, que nem sempre é de esquerda, tem feito alguma coisa (grifos nossos)'“'®.

Para João Gilberto,

''‘’’Cfe. AGUIAR, Roberto. Notícias-Constituintes: Avaliação de um instrumento transformador. In: CNBB. P a rtic ip a ç ã o p o p u la r e cid ad an ia: a Ig re ja no Processo C onstituinte. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 61.

Não sei se houve um pouco de cansaço, depois de toda aquela energia, ou se houve um desvio do foco das lutas, das pressões. As pessoas passaram a operar

noutros campos, implementação de políticas, todo esse equipamento que a própria Constituição montou e que aos poucos vai acontecendo, como os conselhos, etc. Quer dizer, as energias se redirecionaram. Fora isso, a regra constitucional a respeito da iniciativa popular, para se fixar nesse ponto, ela ficou muito pesada. Talvez seja isso, em termos de números, porque é um volume grande, o percentual, etc. É de se observar que os municípios, muitos municípios estão praticando isso, aqui no Estado do Rio Grande do Sul avançou-se algum a coisa: o orçamento estadual admite emendas de iniciativa popular durante sua elaboração - todos os anos tem, e então se discute para onde devem ir mais recursos, se para a saúde, etc., tudo feito através das emendas populares. Além de outras experiências. Eu acho que a participação popular existe em boa escala no Brasil. A Constituinte era um evento singular,

naturalmente que as energias convergiram para ela, e ela não deixou de existir depois. Estranha-me que o mecanismo da iniciativa popular, pelo menos no plano

federal, ele não voltou a ser utilizado com aquela força, mas não que eu ache que tenha havido um a desistência da população em participar. Não está havendo aquela concentração de energia específica para esse tema, ela está distribuída em outras formas de pressão e participação (grifos nossos)'*'’’.

Dom Cândido Padin, respondendo à pergunta sobre diminuição da atuação da CNBB na defesa da Constituição e sua ligação com movimentos de base, como as CEBs, por influência do Vaticano, entende que

Nessa área não há interferência do Vaticano. O que houve, e isto é compreensível, é que a CNBB, como disse, durante o regime autoritário, exerceu uma ação de suplência. Cabia ao próprio povo a ação de defesa dos seus direitos, mas não podia, por causa do regime. Então, hoje em dia, em que há instâncias populares, instâncias de reclamação, por exemplo... vou citar apenas um exemplo: as leis orgânicas dos municípios, pela nova Constituição, são promulgadas pela própria Câmara, e não pelo Prefeito, é um regime diferente. Garante a autonomia da instância dos vereadores. Eu mesmo, em muitos dos encontros que orientei convidado pelas dioceses, em m uitas dioceses foram feitos encontros com vereadores, por ocasião da preparação da Lei Orgânica dos Municípios, eu recomendei que houvesse na Lei a instituição de um a Tribuna Livre nas Câmaras M unicipais. M uitas delas atenderam a essa sugestão. Elas têm a Tribuna Livre, de modo que qualquer pessoa do povo pode chegar nessa Tribuna Livre, na Câmara, e reclam ar a inoperância ou a má forma de atuação dos vereadores. Portanto, foram criadas instâncias populares para que isso pudesse vir, começar a existir. Claro que aí varia muito o nível de consciência popular em uma região ou outra região, no Norte, por exemplo, isto ainda não está muito atuante.M as mesmo no Nordeste, no Centro-Oeste e aqui no Sudeste, e no Sul, essa consciência existe e é muito atuante. De modo que a gente deve isso exatamente às novas disposições da Constituição.

Portanto, a CNBB verificou que já não cabia aos bispos uma atuação mais direta. N a m edida em que outras instâncias começaram a funcionar, a CNBB diminuiu - não digo que se retirou - mas diminuiu sua instância. Agora, aumentou a atuação da

CNBB no setor social, através da Pastoral Social e das Semanas Brasileiras de Ação Social, que vai se realizar a terceira no ano que vem. Isto no campo mais amplo, menos, digamos, da regulamentação da lei, mas de consciência popular. É nesse campo que a CNBB está atuando. O bispo responsável, D. Demétrio Valentim, que, aliás, é de origem sulista, tem tido atuações de grande porte para a continuação dessa consciência social.

Pérsio - E quanto à atuação das CEBs? Saiu na imprensa um a reportagem...

D. Cândido - É, a imprensa tem uma malícia realmente má, que é a de exagerar certos aspectos... a imprensa tem tido ultimamente um a atuação muito pouco ética e honesta, porque com relação às comunidades de base procurou interpretar que a Igreja m udou a sua estratégia, no lugar de estar defendendo mais diretamente os aspectos de Direito e de respeito à consciência popular... um problem a nos incom oda a todos que desejam um a religião autêntica, uma religião que seja sincera e que não seja manipulada. E infelizmente muitas dessas seitas, igrejas recentes que foram fundadas por iniciativa de pessoas inteiramente inescrupulosas, está m udando o conceito de libertação da pessoa: em lugar do que a Teologia da Libertação procurou despertar que é a libertação de uma atuação social completa, integral, está levando para uma libertação puramente interior, em função da presença do demônio. Hoje em dia há várias dessas igrejas que quando alguém chega e traz um sofrimento, um a situação difícil em que está, começam então a gritar: “você está sendo possuído pelo demônio, nós vamos libertar você”. Ora, isso não é libertação nenhuma, é um estado puramente emocional. Terminada aquela sessão, desaparece completamente o efeito de m odo geral. Ora, a imprensa está exagerando esse aspecto. Nós sempre recom endam os nunca m anipular os sentimentos e as emoções das pessoas. Mas, fazer com que as pessoas tenham consciência dos seus direitos e da sua atuação. É esse o verdadeiro sentido das comunidades de base. Do ponto de vista da intensidade das CEBs, evidentemente, conforme as regiões, houve uma diminuição dessa presença, mas isso é puram ente circunstancial. Tanto é verdade que a participação neste encontro de agora foi de milhares de pesssoas, pessoas pobres que vieram de ônibus, até de pau-de-arara e alguns a pé, mas foram a São Luís para mostrar o seu interesse na participação. Portanto, continua a haver esse vigor das comunidades de base e nós vamos continuar a incentivar a formação das CEBs"''*.

Já na visão de José Paulo Bisol, o refluxo se deu

Porque esta Constituição está ligada ao Welfare State, ao Estado Social. E o Estado Social está sendo desmanchado, destruído pelo neoliberalismo, pela filosofia da globalização que emergiu nos fins da... Até na Suécia, onde o Welfare State tirou o país da pobreza, enriqueceu a Suécia em poucos anos. Até a Suécia está decaindo economicamente porque está abandonando o Welfare State e abraçando com arroubo estas teses do neoliberalismo, está decaindo como sociedade'*''®.

‘'‘'^Entrevista, em anexo. A reportagem sobre as Comunidades Eclesiais de Base referida é de Eduardo

Junqueira, e foi publicada pela Revista V eja, em 30.7.97, com o título E D eus ganhou. Frei Betto, no entanto, revela uma visão divergente do problema, pois com a perseguição aos defensores da Teologia da Libertação e a acomodação de muitos bispos outrora progressistas aos m ovim entos espiritualistas (supostam ente não políticos), o m ovim ento popular e o PT “já não contam com o celeiro de animação e m ilitância representado pelas CEBs nas décadas passadas” (op. cit., p. 15).

Percebe-se em todas essas afirmações que alguns fatores são comuns. Quais seriam esses fatores? Primeiramente, o momento do processo constituinte era um momento único e deve ser entendido necessariamente com relação ao momento anterior, da repressão do regime militar. Então, havia uma necessidade de participar, de colocar para fora tudo aquilo que estava represado por causa da repressão sobre esses movimentos. E isso se deu de uma maneira grandiosa. Depois, reorganizada a sociedade, pelo menos em termos formais, voltando-se a uma vida normal, com a democracia formal, não é tão mais premente a necessidade de organização. Esta é uma das causas.

Outro ponto em comum também levantado nas opiniões dos entrevistados é que, por outro lado, a própria Constituição veio trazer outros mecanismos que necessitavam de implementação. Isto se diz com respeito à elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas dos Municípios. E nesses processos se empenharam de alguma maneira aqueles movimentos, dando seqüência à participação, ainda que em outro nível.

Outro aspecto a ser destacado, e que fica bem claro na entrevista de José Paulo Bisol, é a mudança ocorrida no mundo, depois de 1988 - ou talvez até antes, nos países de primeiro mundo, mas que veio a atingir o Brasil no começo da década de 1990. É a chamada globalização da economia, o que veio desestruturar o movimento sindicalista em todo o mundo, por mudar completamente as relações de trabalho, uma vez que os trabalhadores têm que passar a se preocupar com questões mais urgentes, mais imediatas e menos estratégicas. Então, passa-se a viver o aqui, o agora, o imediato, sem tempo para se questionar sobre questões políticas mais amplas, principalmente aquelas de cunho constitucional.

Outra questão a ser levantada - e talvez já tenha ficado claro - é o fato de que a batalha pela regulamentação da Carta Magna, com a sucessiva ausência de consenso ou hegemonia no Congresso Nacional, fez com que houvesse uma certa paralisia governamental - e aqui podemos relembrar aquele dado trabalhado por Faria - e uma certa “retórica da intransigência”, com relação à ingovernabilidade. Então, na verdade, muito daquilo que foi conquistado no papel não foi passado para o que Faria chama de o Brasil real. A partir disto houve uma desistência (ou diminuição da intensidade) de participação.

Porém não se pode esquecer que a Constituinte foi um processo que consumiu energias muito grandes, direcionadas para o mesmo foco. Com certeza, após houve um certo cansaço e um retorno àquelas atividades mais imediatas.