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3. CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO

3.2 Os Direitos Sociais e o Welfare State

Assim, em virtude de vários fatores, como a gritante desigualdade social perpetrada pelo liberalismo; a alternativa revolucionária proposta pela teoria socialista, especialmente o marxismo; a eclosão da Revolução Russa de 1917, e a atuação

®‘Idem, ibidem, p. 11.

“ SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit., 1994, p. 204-207. “ Idem, ibidem, p. 207.

sindicalista no século XIX, fazendo valer coletivamente os direitos civis dos trabalhadores e criando uma nova forma de atuação política, vai se modificar o quadro político e constitucional dos países capitalistas centrais.

Na alvorada do século XX as necessidades do próprio sistema capitalista impõem 0 abandono do dogma da separação completa entre Estado e Sociedade Civil (política e economia) e uma progressiva intervenção estatal na economia, regulando a atividade dos particulares, por meio de um planejamento com escopo de otimizar as economias nacionais frente ao mundo.

Nessas condições, surgem, no âmbito de algumas constituições, os primeiros direitos sociais. São referências pioneiras desses novos direitos a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição alemã de Weimar, de 1919. A só inclusão de normas constitucionais obrigando o Estado a garantir saúde, educação, previdência, a despeito de sua programaticidade®'*, não pode deixar de ser considerada uma revolução jurídica, uma nova fase do Estado de Direito.

É principalmente no segundo pós-guerra, no entanto, que o Estado intervencionista (regulador do mercado, mas não seu agente principal) toma de fato uma nova feição com relação à implementação dos direitos sociais já há décadas enunciados em algumas constituições. Tem lugar o Estado de Bem-Estar Social {Welfare S ta te f\ que

‘’''As cham adas norm as programáticas são as que estabelecem programas a serem realizados pelo Estado. A princípio, eram consideradas meros conselhos, sem vinculatividade. Hodiernamente, não se pode conceber um a Constituição, o conjunto de preceitos jurídicos que encerra a organização do Estado e do Direito, e de onde prom ana todo o restante da ordem jurídica estatal, senão como dotado de normatividade. Portanto, não há dispositivo na Constituição que não obrigue, que não imponha condutas ou tarefas. Com vistas a solucionar o problem a da eficácia das normas constitucionais programáticas, várias classificações das normas constitucionais foram criadas. Entre elas, a do constitucionalista pátrio José Afonso da Silva (op. cit., 1982), que separa as normas constitucionais segundo os graus de eficácia e aplicabilidade: a) de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) de eficácia contida e aplicabilidade imediata; c) de eficácia limitada e aplicabilidade mediata: c l) de princípio institutivo, c2) de princípio programático. Estas últimas são as de m aior interesse para o que aqui se comenta, são as que impõem programas, e cuja eficácia (entendida como capacidade de produzir efeitos jurídicos, e não no viés sociológico) depende, para se tornar plena, de legislação infra-constitucional. Até que esta não se realize, a norma não produz efeitos. Entretanto, esse m ínim o de eficácia garante, ao menos, um a vinculação do legislador ordinário que, se é devedor de sua função implementadora, por outro lado fica proibido de legislar em contrário ao sentido da norma. Rem ete-se o leitor, em especial, para os Capítulos 3 e 4, onde se tecem considerações a esse respeito, com enfoque no m andado de injunção.

'^^Utilizaremos indistintamente os termos Estado de Bem-Estar Social, Estado Social, Welfare State e Estado assistencialista com a mesma conotação. Autores de Direito Econômico vão preferir a expressão Estado Econôm ico com Fins Sociais, para diferençá-lo do Estado Econômico do início do século,

intervém na sociedade civil (econonomia) garantindo condições mínimas de vida (bens e serviços essenciais) por meio de medidas assistenciais, para reduzir as diferenças de classe, modificando o padrão global da desigualdade social. São exemplos de direitos sociais o direito à educação, à saúde, a um salário não inferior ao mínimo legal, férias, assistência e previdência social.

É importante lembrar que o Estado assistencialista não aparece ao mesmo tempo em todos os lugares, nem com as mesmas características. Estudando o caso inglês, o sociólogo T. H. Marshall, na clássica obra Cidadania, Classe Social e Status, traça um quadro das vantagens advindas com o sistema de assistência social, na sua fase de apogeu, entendendo, no entanto, que, se a barganha livre foi invadida pela declaração de direitos, isto não quer dizer que se tenha resolvido o conflito básico entre direitos sociais e o valor de mercado.

É célebre a tipologia, feita pelo autor, dos direitos de cidadania, ao estabelecer três “gerações” de direitos do homem: os civis, no século XVIII, os políticos, no século XIX, e os sociais, no século XX. Desta sua classificação, podem-se recolher algumas contribuições, mas também apontar limites®®.

Quanto às contribuições, deve ser destacada em primeiro lugar a dinamicidade do conceito de cidadania, sua historicidade; do mesmo modo, merece relevo a inclusão dos direitos humanos na cidadania (muito além da visão liberal e juridicista) e, ainda, a consideração da cidadania como processo inacabado.

No tocante aos limites, há que se apontar de início a inserção histórica e ideológica do autor (da qual aliás não poderia escapar, como qualquer pessoa), como um social-democrata da Inglaterra da primeira metade do século XX; da mesma maneira, sua visão evolucionista e linear da história e da cidadania (cada geração de direitos restrita a um século determinado, surgindo como um patamar progressivo em relação ao anterior, já completamente consolidado), o que implica em ausência de visão dialética, ou seja, falta de percepção dos avanços e retrocessos da afirmação dos direitos, e de sua

intervencionista mas não redistribuidor. Ver, a propósito: BORGES, Alexandre Walmott. Alterações na

Ordem Econôm ica e Financeira com a Reforma Constitucional de 1995: intervenção do Estado em regime de m onopólio. Dissertação de Mestrado apresentada ao CPGD/UFSC. Florianópolis: UFSC, 1996,

ambigüidade intrínseca, como concessão estatal e conquista popular, e, na esteira, é também limitada sua abordagem da relação Estado-cidadania, pois parte de uma óptica estritamente estatalista.

Para Boaventura Santos, retomando aqui suas análises sobre subjetividade e cidadania na Modernidade, com a emergência da cidadania social nos países centrais, ocorre um equilíbrio entre o princípio do mercado e o do Estado, propiciando uma

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integração política dos trabalhadores no Estado capitalista, o que, contudo, traz consigo um aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação'^^

No entendimento de Maria de Lourdes Manzini Covre, a cidadania do “consumismo”, do Welfare State, “não se baseia na ação de sujeitos que contribuem para a questão da coisa pública, restringindo-a a uma proposta de atendimento das necessidades básicas e de acesso aos bens da civilização, proporcionados pela tecnologia”. Na feliz expressão da autora, “é um aceno de conteúdo passivo à igualdade”, o que a caracteriza como “uma cidadania de não-sujeitos, de seres passivos, de conformismo com a sociedade, de preocupação com o consumo”“ .

Com a crise do Welfare State^^, do modelo de capitalismo “organizado” baseado no regime fordista™, dá-se na dimensão politico-cultural uma revolta da subjetividade contra a cidadania (os cidadãos haviam se alheado da representação sem contudo

“ Conforme análise da professora Vera Regina Pereira de Andrade, transm itida em sala de aula. ^’SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit., 1994, p. 211.

•^^COVRE, M aria de Lourdes, op. cit., p. 71-72.

®Para Carlos Nelson Coutinho, numa visão neomarxista, o limite do reform ism o social-democrata reside no fato de que a ampliação crescente dos direitos sociais é, a longo prazo, incompatível com a lógica da acumulação capitalista (limite máximo: déficit público, excesso de tributação - bloqueio do capital global). A crise do Estado de Bem -Estar Social, revelada sobretudo no plano fiscal, fez com que o reform ism o fosse barrado pelas necessidades de reprodução do capital (Reagan e Thatcher). Em vez de levar adiante as reformas, garantindo a cidadania m esmo que desafiando o mercado, os partidos e governos estão se alinhando ao neoliberalismo, como na França e na Espanha (COUTfNHO, Carlos Nelson. Dem ocracia e

Socialismo. São Paulo: Cortez, 1992, p. 43 e 68).

’“Regime fordista ou fordismo pode ser entendido como o “conjunto de métodos de racionalização da produção elaborados pelo industrial norte-americano Henry Ford, baseado no princípio de que um a em presa deve dedicar-se apenas a um produto. Para isso, a em presa deveria adotar a verticalização, chegando até a dom inar as fontes de matéria-prima (borracha, ferro, carvão) e os sistemas de transporte das m ercadorias. Para dim inuir os custo, a produção deveria ser em massa, a mais elevada possível e aparelhada com tecnologia capaz de desenvolver ao máximo a produtividade por operário. O trabalho deveria ser também altamente especializado, cada operário realizando determ inada tarefa. E para o operário ter boa produtividade, deveria ser bem remunerado e ter uma jornada de trabalho menor. Os princípios do

desenvolver outras formas de participação política), marcada sobremaneira pelo movimento estudantil dos anos 60 que, no que nos interessa, teve o grande mérito de declarar o “fim da hegemonia operária nas lutas pela emancipação social” e legitimar a “criação de novos sujeitos sociais de base transclassista”’’.