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4 O CONCEITO DE LAZER

4.4 AS FUNÇÕES DO LAZER

Verificou-se, no capítulo anterior, que o lazer teria seu conteúdo ligado a questões referentes a atividades físicas, artísticas, práticas, intelectuais e sociais. Nesta senda, determinaram-se, por vias transversas, os meios pelos quais o lazer é usufruído pelos indivíduos, uma vez que, ao delimitar o conteúdo do mesmo, acabou-se por transcrever atividades consideradas como lazer.

Assim, o indivíduo em gozo de lazer pode estar realizando diversas atividades em prol de beneficiamento próprio na sua busca por prazer, de modo a contribuir para o seu desenvolvimento pessoal e, por conseguinte, consagrar a dignidade humana.

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MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do lazer: uma introdução. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2002, p. 18.

Pois bem, o conceito de lazer não delimita seu conteúdo, até mesmo porque definir todas as atividades tidas como lazer seria basicamente impossível. O conceito de lazer acaba por excluir as obrigações, descanso e trabalho, no sentido de que essas atividades estariam ligadas ao tempo livre, com exceção do trabalho.

O conceito de lazer também não consagra suas funções, afinal, nada sobre aquilo que o lazer traria de benefícios para o ser humano. Nesta ordem, e partindo-se de tal constatação, faz-se necessário delimitar aquilo que seria função do lazer, sempre a coadunando ao seu conteúdo.

Determinar as funções do lazer significa muito mais do que dizer que diversão faz bem para a saúde física e mental ou que, com o lazer, o estresse do dia a dia é aliviado. Tais concepções, advindas de concepções populares, não se encontram erradas. Contudo, as funções de lazer perpassam não somente por aspectos físicos e psíquicos do ser humano no sentido de sua saúde, como adentram em outras questões igualmente importantes.

Bárbara Iwanovicz, partindo da concepção de pesquisadores poloneses, em especial Roykiewickz, afirma que o lazer possui algumas funções básicas:

a) as funções educativas caracterizadas pelo interesse próprio dirigido para a ampliação dos horizontes mentais, busca de novas experiências e de novo conhecimento.

b) as funções de ensino que compreendem a assimilação ou aprendizagem das normas culturais, de ideais filosóficos ou políticos, das normas de convivência social ou de comportamento.

c) as funções integrativas, que têm por objetivo formar ou solidificar os grupos, principalmente os familiares, de amizade-companhia, de interesses comuns, os quais poderiam estar satisfazendo a necessidade de pertencer a alguém ou de realizar as metas, de ser reconhecido.

d) as funções recreativas compreendem a atividade relacionada com o descanso psicológico e físico.

e) as funções culturais referem-se à compreensão e assimilação dos valores culturais ou à criação de novos.

f) as funções compensadores seriam as atuações que, de alguma forma, nivelariam as insatisfações das outras áreas de vida, levando a pessoa a uma atitude de “viver a toda” aquilo que, nas outras situações, não pôde ser realizado300.

Nesse rol, há uma valorização dos conteúdos apresentados como integrantes do lazer, porque consagram os meios educacionais, integrativos, recreativos e culturais. Dessa forma, as funções educativas e de ensino acabam por se relacionar com o conteúdo do lazer intelectual e artístico, uma vez que determinam que os indivíduos

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IWANOVICZ, Bárbara. Aspectos psicológicos do lazer In: BRRUNS, Heloisa Turini (org.). Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Unicamp, 1997, p. 95-96.

praticantes dessa maneira de lazer encontram-se em busca de uma satisfação pessoal relacionada com o raciocínio ou o lúdico, por meio do descobrimento de novos horizontes.

Já as funções integrativas vêm a se assemelhar com o conteúdo do direito ao lazer na perspectiva social, haja vista que estão firmadas na existência de relacionamentos interpessoais em busca de interesses comuns, consagrando a sociabilidade no seio do indivíduo.

As funções recreativas e compensadoras, por sua vez, estão muito próximas do conteúdo do lazer como um todo. Isso se dá, pois as atividades recreativas e compensadoras trazem em sua essência a base da recuperação psicológica do indivíduo que se encontra em situação de estresse diário com obrigações e labor. Aqui, discorda-se do posicionamento de que as funções recreativas acabariam por incluir o descanso, afinal, pelo próprio significado da palavra, recreação não pode se confundir com descanso.

O descanso objetiva que o corpo humano recupere as forças despendidas com o labor diário e obrigações familiares, sociopolíticas e religiosas a partir de uma perspectiva negativa: durante o período de descanso, o corpo ficaria em repouso para que a recuperação fosse bem sucedida. Desse modo, o descanso atuaria como estabilizador das forças humanas, no sentido de recuperação física e psicológica por uma inatividade do indivíduo.

O lazer também atua na recuperação física e psicológica do indivíduo, mas tal atuação aparece de maneira ativa, relacionada ao desenvolvimento de uma atividade prazerosa. Assim, a recuperação da mente e do corpo dar-se-ia em razão da entrega do indivíduo ao lúdico, aos esportes, a interações sociais, a atividades intelectuais ou manuais, e não por uma postura de inatividade.

As funções culturais, por sua vez, relacionam-se perfeitamente com o conteúdo social de lazer, afinal, este se encontra vinculado a uma perspectiva de aproveitamento cultural em diversos níveis, seja através do mais simples ao mais sofisticado. Por conta disso, as funções culturais do lazer devem ser vistas a partir da perspectiva do conteúdo social do lazer em razão da perfeita identidade entre as mesmas.

Dito isto, faz-se necessário o apontamento de que tal classificação ainda não abarca todas as funções do lazer. Relata-se ainda a função de formação da personalidade em que o lazer:

exerce função regeneradora da força psíquica e física abaladas pelas tensões encontradas nas outras situações da vida, principalmente a de trabalho. Por outro lado, o divertimento leva à liberação do cansaço causado pela monotonia do processo de trabalho ou pelos comportamentos habituais reforçados pela automação do processo de produção moderno, protegendo, assim, o organismo da formação de comportamentos estereotipados301.

Neste sentido, o lazer atuaria a serviço da diferenciação dos indivíduos na sociedade por meio da liberação do cansaço e atividades de cunho prazeroso, de maneira que estes poderiam se desenvolver sem levar em consideração comportamentos estereotipados.

Destarte, o lazer, ao fomentar novas atitudes em face da sociedade, faz com que o indivíduo acabe por desenvolver sua personalidade individual. Participação em grupos esportivos ou em reuniões sociais leva aquele indivíduo a ter um senso de coletividade capaz de atuar na formação do seu ser. Ademais, uma fala de um personagem, um filme, peça de teatro ou viagem podem despertar no indivíduo um sentimento novo, capaz de fazer com que descubra algo que antes não sabia ou se identifique com tal situação. Nessa mesma direção, o indivíduo que experimenta novos lazeres acaba por se desenvolver, uma vez que vislumbra em seu ser um autoconhecimento302.

Diante de tais aspectos, fica notório que o lazer também possui a importante função de desenvolver a personalidade do indivíduo, na medida em que é capaz de exercer um poder de transformação sobre ele, através de uma tomada de consciência, prevenindo a utilização de estereótipos sociais.

Outra função não incluída na mencionada classificação é aquela que afirma que o lazer contribui para o desenvolvimento psicológico da consciência de poder dispor, como quiser, do seu tempo livre, exercendo a atividade de lazer que bem lhe aprouver em busca de uma satisfação pessoal303.

301

IWANOVICZ, Bárbara. Aspectos psicológicos do lazer In: BRRUNS, Heloisa Turini (org.). Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Unicamp, 1997, p. 96.

302

REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC, 1980, p. 48-49.

303

IWANOVICZ, Bárbara. Aspectos psicológicos do lazer. In: BRRUNS, Heloisa Turini (org.). Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Unicamp, 1997, p. 96.

O lazer, então, estaria funcionando como meio de promoção da liberdade por garantir que o indivíduo seja livre para escolher o desenvolvimento de suas atividades, sejam elas relacionadas ao físico, social, artístico, manual ou intelectual. Entretanto, sabe-se que a função do lazer mais explorada é a função de recuperação psicossomática ou função reparadora. É através dela que o indivíduo poderá gozar atividades que o levem à recuperação física ou mental. Tal função acaba por ser aliada do labor, na medida em que consagra o lazer que culminará em um indivíduo mais produtivo e mais satisfeito com as atividades desenvolvidas. Não é errada tal função do lazer, visto que há no indivíduo a necessidade de labor para seu sustento e de sua família. Aqui, o que se almeja é que tal função do lazer seja respeitada independentemente dos resultados obtidos dentro do trabalho desempenhado. O desejo é que a função reparadora reflita no labor, de maneira interessante ao desenvolvimento da atividade, sem precisar estar atrelada a ele. Renato Requixa, comentando uma pesquisa feita pelo SESC junto à população comerciária da capital de São Paulo, constatou que as horas de lazer eram fruídas, basicamente, aos finais de semana:

Pesquisa realizada pelo SESC, junto à população comerciária da capital de São Paulo, revelou que, além das horas dedicadas ao trabalho nos dias úteis, 34,4% dos entrevistas dedicavam até duas horas por dia a outras obrigações; 17,5%, de duas a três horas; e 17,8% gastavam de três a quatro horas em outras obrigações que não as de trabalho propriamente dito. Portanto, apenas 34,3% despendem um tempo relativamente curto com as demais obrigações; o restante despende mais de duas horas nos dias úteis. A mesma pesquisa confirmou que o tempo ideal para o lazer ainda é o fim de semana, em que o acúmulo de horas livres permite programações mais tranquilas e de maior duração304.

A pesquisa, embora seja da década de 80, revela uma situação que ocorre ainda nos dias atuais: os momentos de lazer acabam por se restringir, essencialmente, aos finais de semana, em que a possibilidade de tempo livre é maior.

Todavia, tal situação não deveria ser a realidade, afinal, o lazer do indivíduo traz consigo a ideia de recuperação psicossomática, de libertação do estresse vivido em razão das obrigações e trabalho, por meio de atitudes, repise-se, ativas, relacionadas com o gozo de atividades lúdicas, sociais, intelectuais, físicas ou práticas.

304

REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC, 1980, p. 44-45.

Neste mesmo sentido, o lazer deve explorar a função de recuperação na medida em que se constata que, cada vez mais, o trabalho exercido é considerado monótono, repetitivo e frustrante.

Não se nega que as condições de trabalho melhoraram muito desde os períodos da Revolução Industrial. Naquela época, não havia condições mínimas de dignidade. No entanto, com o aumento de maquinário e a automatização da produção, cada vez mais se tem exercício de trabalho monótono, sem o uso da criatividade.

E, nos dias atuais, pautados em demandas massificadas, cada vez mais o labor se torna algo frustrante e desestimulante, uma vez que não há diversificação daquilo que se realiza, tampouco real desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos. Isso, contudo, não é uma realidade absoluta. Certas empresas contribuem para que o lazer possa influenciar a vida do trabalhador de maneira que ele consiga, realmente, usufruir a função de recuperação que possui305.

Infelizmente, no entanto, tal realidade não é vivenciada por todos os indivíduos. Muitos acabam por laborar em locais que não oferecem uma qualidade criativa e intelectual. Tal situação deveria ser a exceção, e não a regra, sob pena de corrupção do indivíduo pela situação desestimuladora.

Tal corrupção tanto pode ser vista pelo âmbito do desleixo ou descaso com o labor, como pela ocupação do tempo livre com atividades ilícitas ou imorais, dada a frustração que ronda a vida do indivíduo.

Desse jeito:

o lazer impõe-se, então, como uma contingência, uma necessidade de diversificação, a fim de que o indivíduo possa liberar ou recuperar energias perdidas ou contidas. A ruptura pode caminhar ou em direção a atividades antissociais, como infrações morais ou legais, ou pode ser dirigida para ocupações de lazer chamadas compensatórias. Estas podem ser atividades reais, através do esporte, jogos, viagens, com mudança de ritmo, de estilo e de paisagem, ou atividades fictícias, sob a forma de projeção e identificação, através do cinema, do teatro e da leitura. São estes os fatores que ajudam a suportar a disciplina e as imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo livre em atividades equilibradoras, socialmente aceitas e moralmente corretas306.

Tal função que o lazer exerce na vida das pessoas, por meio de um aspecto de prevenção e correção do indivíduo que acabou desvirtuado dos comportamentos

305

Exemplos encontram-se no item 5.4.2 desta pesquisa.

306

REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC, 1980, p. 47.

sociais aceitáveis, pode ser chamada de função psicocorretiva do lazer, através de uma perspectiva psicológica.

A psicocorreção auxilia a diminuição ou eliminação da intensidade ou frequência de comportamentos tidos como indesejáveis para o indivíduo. Este setor da psicologia pode ser exercido por meio de psicoterapias leves, trabalhos de reabilitação, de organização do divertimento etc307.

No tocante ao lazer, a psicocorreção é realizada através de ocupações e recreações capazes de diminuir ou evitar tais comportamentos conflitantes, orientadas no sentido de recuperação devido aos desgastes sofridos com o labor e obrigações diárias, e também pelo desenvolvimento do indivíduo. Assim, a psicocorreção acaba por passar pela função de recuperação do indivíduo, pois, o ser humano, para desenvolver bem suas potencialidades, precisa estar motivado por meio do lazer. Ademais, o lazer é muito visto sob a percepção da função recreativa, de divertimento e entretenimento do indivíduo. Como ele é associado ao desenvolvimento de atividades prazerosas, que tragam satisfação ao indivíduo, a função recreativa ou de divertimento acaba por ganhar importância especial.

Uma pessoa que desenvolve atividades que lhe proporcionem felicidade por meio de lazer é uma pessoa protegida dos males da fadiga e estresse mental, tendo menores chances de desenvolver comportamentos considerados pela sociedade como reprováveis.

Nessa direção, a função recreativa – de divertimento ou entretenimento –

307

IWANOVICZ, Bárbara. Aspectos psicológicos do lazer In: BRRUNS, Heloisa Turini (org.). Introdução aos estudos do lazer. Campinas: Unicamp, 1997, p. 99.

acha-se diretamente ligada à função de recuperação, desenvolvimento da personalidade e à função de psicocorreção exposta anteriormente. Um indivíduo que realiza atividades divertidas recupera-se mais facilmente dos problemas do dia a dia e também apresenta tendência menor aos comportamentos antissociais decorrentes de um desvio da personalidade, por exemplo.

Infere-se de tal entendimento que a função de recreação que o lazer possui demonstra sua grande importância na sociedade, possuindo ligação com outras funções tão importantes quanto as do lazer com referência à proteção do indivíduo. Tal objetivo da recreação é visualizado por meio das atividades tidas como conteúdo do lazer, já que resultam na satisfação individual. Ante o exposto, atividades relacionadas a viagens, esportes, cinema, mostras de artes etc. são consideradas exemplificativas diante da gama de atividades que o lazer pode assumir no divertimento do indivíduo. Nesse sentido:

A exemplificação apresentada engloba diversas atividades ligadas a várias formas de comportamento humano, alargando as possibilidades de lazer para o indivíduo, como, por exemplo, viagens, esportes, atividades físicas ou, ainda, cultura no sentido amplo, acobertando as representações de massa, como cinema, televisão e, também, apresentações culturais ligadas às artes plásticas, literatura308.

O que se percebe de tal pensamento é que a função de recreação acaba-se ligando a qualquer atividade de lazer, haja vista que se destina à proteção do indivíduo contra as pressões sociais diárias referentes ao labor e questões obrigacionais, bem como promovem seu desenvolvimento por meio de um culto ao lazer.

Nesse campo, as funções do lazer refletem a promoção pelo bem-estar do indivíduo em diversos níveis por se tratarem de ações que concretizam o conteúdo do direito ao lazer, de sorte a contribuir com a tão cara dignidade humana.

5 A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER NAS

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