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OUTRAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS ACERCA DA VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.6 OUTRAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS ACERCA DA VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No âmbito da interação entre direitos fundamentais e relações privadas, outras teorias surgiram para justificar a incidência desses direitos nos conflitos particulares. Nesse contexto, duas teorias foram desenvolvidas sobre o tema. A primeira delas, desenvolvida por Jüngen Schwabe, na Alemanha, em obra publicada no ano de 1971, denominada de “Teoria da convergência estatista”210. A outra teoria é sustentada por Robert Alexy, também na Alemanha, chamada de “Teoria integradora”.

3.6.1 Teoria de Schwabe

Jürgen Schwabe nega a relevância da discussão entre o uso da teoria da eficácia imediata ou mediata com referência a questões envolvendo direitos fundamentais e relações particulares. Para ele, o Estado sempre é o responsável último pelas lesões a direitos fundamentais que têm origem nas relações privadas, já que o exercício da autonomia privada é sempre oriundo de uma autorização estatal211.

Em outras palavras, a atividade dos particulares é sempre imputável ao Estado, pois decorre de uma prévia autorização explícita da ordem jurídica estatal ou de uma não proibição dessa conduta. Ora, se o Estado não proíbe certa conduta, seja por via administrativa, legal ou jurisdicional, é porque essa conduta é permitida. Se ela vier a lesar direito fundamental de outrem, a responsabilidade é estatal, haja vista que não houve proibição. O mesmo raciocínio pode ser feito em relação à autorização estatal explícita, já que, se o Estado confirma que determinada conduta é lícita e esta veio a lesionar direito fundamental de alguém, a responsabilidade será a ele imputada.

210

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Revista de Direito do Consumidor, n. 36, out./dez., 2000, p. 77.

211

SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras Complementares de Processo Civil. 7.ed, rev. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 174.

Para Schwabe, ao passo que o Estado tutela e disciplina as relações privadas, ele se torna responsável por possíveis atentados ou lesões a direitos fundamentais provenientes dessas relações entre particulares, uma vez que não impediu, através do legislador, atividade administrativa, ou pela prestação jurisdicional, a ocorrência daquele comportamento atentatório ou lesivo a direitos fundamentais212.

Note-se, portanto, que Schwabe retira as condutas lesivas ou atentatórias do âmbito das relações privadas, transferindo-as para uma relação entre Estado e particular. Por isso, essa teoria é alvo de uma série de críticas. Primeiramente, não se pode atribuir ao Poder Público toda e qualquer conduta simplesmente pelo fato de que ele não a impediu, uma vez que isso significaria que toda ação não vedada por lei seria de responsabilidade do Poder Público.213

Afora isso, a teoria da convergência estatista não percebe que seria impossível que o Poder Público pudesse prever todas as condutas que resultassem em violação a direitos fundamentais. Ainda mais, Schwabe não previu que muitas condutas normalmente consideradas lícitas poderiam resultar em violação a direitos fundamentais, a depender do caso concreto, bem como condutas postas como violadoras de direitos fundamentais poderiam não ter efeito algum. Dessa maneira, seria impossível que o Estado pudesse autorizar ou não certa atividade, pois ela poderia resultar ou não em uma ameaça ou violação a direitos fundamentais, a depender do caso concreto.

O legislador, em verdade, para escapar do fator responsabilidade, atribuiria o caráter de proibição às mais variadas condutas, resultando em uma overdose de normas proibitivas no tocante aos direitos fundamentais e entes privados.

Critica-se ainda essa teoria em razão de uma possível irresponsabilidade do ente privado pela violação a direitos fundamentais. Nas hipóteses não subsumíveis a mandamento de proibição, os particulares, se praticassem intervenção no direito fundamental de outrem, não poderiam ser responsabilizados juridicamente. A responsabilização recairia sobre o Estado somente214.

212

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 176.

213

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 175.

214

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 177.

3.6.2 Teoria integradora de Alexy

A teoria de Robert Alexy é chamada de teoria integradora em razão da reunião de três correntes aparentemente divergentes: teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, teoria da eficácia direta e imediata e a teoria dos deveres de proteção estatais. Para Alexy, as três teorias podem levar a resultados equivalentes, pois conduziriam a uma imagem correta dos efeitos dos direitos fundamentais, embora possuam premissas diferentes215.

Para ele, essas correntes possuem em comum o fato de que, diferentemente do que ocorre na relação entre Estado-particular, nas relações entre particulares ambos são titulares de direitos fundamentais. Ademais, as três teorias reconhecem que a gradação da eficácia de um direito fundamental em uma relação privada decorre de uma ponderação de interesses.

Em razão disso, Alexy conjuga essas três teorias, dividindo-as em três níveis de efeito: o nível de deveres do Estado, o nível dos direitos frente ao Estado e o nível da relação entre sujeitos privados216.

A teoria da eficácia mediata está situada no primeiro nível. Segundo Alexy, “el hecho de que las normas jusfundamentales, en tanto principios objetivos (orden objetivo de los valores), valgan para todos los ambitos del derecho implica que el Estado esta obligado a tenerlas en cuenta tanto en la legislacion civil como en la jurisprudencia civil”.217 Dessa maneira, estariam o Judiciário e o Legislativo obrigados a levar em consideração os direitos fundamentais no processo jurisdicional e no processo legislativo, afinal, a incidência desses decorre de uma ordem objetiva de valores. No segundo nível, encontra-se a teoria dos deveres de proteção, em que se prega que o Judiciário, ao dirimir conflitos entre particulares, deve levar em consideração os direitos fundamentais. Se isto não é observado, ele viola um direito fundamental

215

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993, p. 515.

216

Ibidem, p. 516.

217

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993, p. 516.

do cidadão em razão da não observância do dever de proteção que exerce sobre os direitos fundamentais nas relações particulares.

Por fim, no terceiro nível, incide a teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações particulares. Aqui, Alexy reconhece que os direitos fundamentais incidem diretamente nas relações entre particulares, fazendo-se valer do caso Blinkfüer218 para embasar seu posicionamento.

Alexy ainda rejeita o argumento de que a eficácia direta nas relações privadas exterminaria a autonomia privada, pois não se trata de desaparecer com ela do ordenamento jurídico, mas sim ponderá-la diante de um direito fundamental. O autor ainda critica o argumento de que o direito privado, com a eficácia imediata, tornar- se-ia inócuo. Para ele, as normas de direito fundamental trazem diversas soluções para dirimir conflitos particulares, de modo que o legislador, ao editar norma de direito privado, tem a opção por qualquer dessas, sendo esta opção vinculativa para o juiz. Assim, o direito privado continuaria sendo necessário para a resolução de conflitos em razão de suas normas vincularem a atividade jurisdicional. Caso o legislador desejasse o afastamento de norma de direito privado para a resolução de um caso, tal atitude seria possível, desde que fundamentada, pautando-se no fato

218

Blinkfüer era um semanário pró-comunista. Em 1961, a Springer-Verlag, distribuidora de publicações periódicas, pressionou outras empresas para instalar um boicote às publicações que versassem sobre os programas de radiodifusão das emissoras da República da Alemanha Oriental. O editor da Blinkfüer ajuizou ação contra o grupo Springer, alegando concorrência desleal e pedindo indenização, que foi rejeitada pelo Tribunal Superior Federal. Recorreu Blinkfüer ao Tribunal Constitucional Federal invocando o direito à liberdade de expressão, de modo a possibilitar uma não adesão ao boicote. Entendeu o Tribunal Constitucional que se deve proteger a instituição da livre imprensa e da independência dos seus órgãos em face às pressões econômicas. Para Alexy, esse caso revelaria seu modelo integrador na medida em que Tribunal Constitucional Federal “comienza con la constatación de que el orden objetivo de valores que subyace a la sección de derechos fundamentales influye en la cuestión de saber qué es contrario a derecho en el sentido del § 823 párrafo 1 BGB. Esto responde a la teoría del efecto mediato en terceros. La Corte de Justicia Federal había llegado a la conclusión de que el llamado a boycot de la Editorial Springer no era contrario a derecho. Esto significaba que El editor de "Blinkfüer" no tenía frente a la Editorial Springer ningún derecho a que ésta omitiera su llamado a boycot. Como se ha mostrado más arriba, este no- derecho del 'editor de "Blinkfüer" a la omisión es equivalente a una permisión de la Editorial Springer a llevar a cabo el llamado a boycot. De acuerdo con el Tribunal Constitucional Federal, los principios iusfundamentales exigen justamente el resultado opuesto.” Alexy, então, reconhece que o Judiciário, ao solucionar conflitos entre particulares, deve levar em consideração os direitos fundamentais, sob pena de ofendê-los, como ocorreu com a decisão da Corte Federal de Justiça. Verificando a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, diz Alexy “Por lo tanto, los principios iusfundamentales conducen a derechos y deberes en relaciones entre iguales que, debido a la vigencia de estos principios relativa a la Constitución, son necesarios pero que, sin su vigencia no lo serían. Este es un efecto inmediato en terceros. ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993, p. 521-522.

de que a norma idealizada pelo legislador não respeitou devidamente a fundamentabilidade daquele direito219.

Defende-se, por fim, que a teoria integradora de Robert Alexy pode ser enquadrada na teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações particulares, uma vez que cada nível de eficácia defendido pelo autor se refere a um aspecto da mesma coisa, conduzindo a um mesmo resultado, quer seja, a eficácia imediata. Segundo Daniel Sarmento:

O fato de ele não excluir a eficácia indireta dos direitos fundamentais na esfera privada, nem tampouco a existência de deveres de proteção do Estado, em relação às ameaças a tais direitos provenientes de terceiros, não nos parece, nesse sentido, de maior relevância. Com efeito, a teoria da eficácia direta e imediata, como já se destacou acima, não é incompatível com os efeitos decorrentes das outras duas teorias, mas apenas agrega àqueles efeitos um outro, de indiscutível valor prático: permite-se – seja-nos consentido repetir – a aplicação direta das normas constitucionais consagradoras de direitos fundamentais sobre as relações privadas, independentemente da mediação do legislador ou da atividade de qualquer outro poder estatal220.

Observe-se, portanto, que uma compatibilização entre essas teorias é possível, já que podem atuar nos diversos níveis da relação entre particulares. Contudo, repise- se, o efeito almejado será sempre o mesmo, consagrando o fato de que as normas de direito fundamental podem ser aplicadas diretamente nas relações privadas.

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