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A autonomia privada como meio concretizador do direito ao lazer nas relações trabalhistas

DANO EXISTENCIAL JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA DIREITOS FUNDAMENTAIS O dano

5.4.3 A autonomia privada como meio concretizador do direito ao lazer nas relações trabalhistas

Uma das concepções mais difundidas do direito é aquela que o concebe como limitador da liberdade. Nesse sentido, ante sua estrutura relacional (direito como ordenador de condutas em caráter intersubjetivo), impor-se-ia que a limitação de liberdade de um sujeito corresponderia à oportunidade de outro sujeito exercitar essa liberdade.

No entanto, tal pensamento esquece que o direito não significa, muitas vezes, um limitador da liberdade. Consagrada no caput do art. 5ª da Constituição Federal de

1988, a liberdade é vista sob a perspectiva de direito fundamental, fazendo parte do chamado mínimo existencial garantido a todo cidadão.

Noutras palavras, ao invés de limitar, o direito é fomentador da concretização plena da liberdade humana. Isso acontece, por exemplo, diante da autonomia privada, quando a liberdade negocial das partes permite a autorregulação de suas relações sociais.

Nessa senda, revela-se a importância da autonomia privada no ordenamento jurídico brasileiro, como expressão de um direito fundamental de liberdade e livre iniciativa, consagrados no Texto constitucional em seu art. 5º, caput e art. 170.

Mas como compatibilizar essa liberdade negocial com os ramos do direito, onde há uma patente tutela protetiva? No campo do direito do trabalho, ramo considerado, em sua essência, protetivo, poder-se-ia pensar que a autonomia privada encontra-se mitigada ou mesmo inexistente. No entanto, não é isso que se defende aqui.

Verdadeiramente, acredita-se que a autonomia privada pode ser um instrumento de garantias ao trabalhador, em especial se aliada aos direitos fundamentais. Por isso, a autonomia privada pode ser utilizada como garantia do direito ao lazer, observando-se que o mesmo, como direito fundamental social com eficácia direta na relação de emprego, deve ser levado em consideração nas negociações entre os indivíduos.

Mas, finalmente, o que é essa autonomia privada?

Observa-se que o termo “autonomia” advém do grego autos, que significa “por si só”, mais nómos, que significa “regra de conduta”363. Assim, autonomia pode ser percebida como a faculdade de se governar por si mesmo, de tomar as próprias decisões como bem aprouver.

Autonomia, portanto, significa o poder de se autogovernar, ou seja, consubstancia a faculdade de traçar suas próprias normas de conduta, sem que se seja submetido a imposições de ordem estranha. Revela-se como contrária à heterotomia, que

363

CABRAL, Érico de Pina. A autonomia. Revista De Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.19, p. 83-129, jul. set., 2004, p. 84.

significa a sujeição a uma lei exterior ou à vontade de outrem, com ausência de autonomia364.

Também diferenciando autonomia de heterotomia, Paulo Luiz Neto Lôbo assevera que a primeira consiste no “campo da liberdade, porque os seres humanos podem exercer suas escolhas e estabelecerem regras para si mesmos, coletivamente ou interindividualmente. A heterotomia, por seu turno, é o campo da natureza cujas regras o homem não pode modificar e está sujeito a elas”365.

Aliada ao conceito de autonomia, tem-se a definição de vontade. Esta, derivada do termo latino voluntate, designa a faculdade do indivíduo de manifestar exteriormente um desejo, o propósito de realizar algo.

Nesses termos, a vontade é uma representação do querer do homem, que exercita certa faculdade em direção a um determinado fim ou objetivo. Nesse direcionamento da vontade a um determinado fim, vê-se que o instituto passa a interessar a diversos campos do conhecimento, como já mencionado outrora366.

No direito, a vontade assume papel de destaque na medida em que se constitui como um dos principais elementos do ato jurídico367. Mas isso não significa que a vontade não ganhe contornos em outros campos do conhecimento. Comparando direito e psicologia, tem-se que a psicologia estuda a vontade no campo do ser. Já o direito estuda a vontade no campo do dever ser, no campo da dogmática, de modo a reconhecê-la como fator de eficácia jurídica no ordenamento jurídico368.

Reconhece Roppo a importância que teve a vontade na configuração de direitos e obrigações, principalmente no desenvolvimento da teoria do negócio jurídico:

364

CABRAL, Érico de Pina. A autonomia. Revista De Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.19, p. 83-129, jul. set., 2004, p. 85.

365

LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v.722, p. 40-45, dez., 1995, p. 41.

366

CABRAL, Érico de Pina. A autonomia. Revista De Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.19, p. 83-129, jul. set., 2004, p. 91.

367

Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias: “Em sentido lato, os atos jurídicos derivam, necessariamente, de uma atuação do ser humano ou de sua exteriorização de vontade, produzindo efeitos reconhecidos para o direito. Nesse sentido, é lícito extrair como elementos caracterizadores do ato jurídico, em sentido amplo, o ato humano de vontade, a exteriorização da vontade pretendida, a consciência dessa exteriorização de vontade e que esta vontade exteriorizada dirija-se à obtenção de resultado permitido (não proibido) pela ordem jurídica”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 8. ed. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 507-508.

368

VIEIRA, Iacyr de Aguilar. A autonomia da vontade no Código Civil Brasileiro e no Código de Defesa do Consumidor. Revista Dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v.791, p. 31-64, setembro, 2001, p. 35.

Na base desta, está a ideia, já acolhida pelo pensamento jusnaturalista e iluminista, da vontade humana como fonte de qualquer transformação operada no mundo do direito, como força criadora de direitos e de obrigações, como motor primeiro de toda a dinâmica jurídica. Tão exacerbada que desemboca numa verdadeira e própria mística da vontade ou que se cristaliza na rigidez de um dogma da vontade, esta posição de princípio vem a reflectir-se no modo como é construída a disciplina concreta dos negócios jurídicos, determinando uma série de regras (em matéria de erro, de dolo, de coacção, de simulação, etc.) destinadas a tutelar, do modo mais intransigente, a liberdade e a espontaneidade do querer de quem realiza o negócio, e a desobrigá-lo do vínculo negocial, sempre que a sua vontade resulte de qualquer modo perturbada369.

Nesse caminho, a vontade deve ser vista como esse querer humano exteriorizado, capaz de atuar nos mais diversos ramos do conhecimento e tendo importância primordial no desenvolvimento do direito privado, principalmente no que tange à disciplina dos negócios jurídicos.

Como fora visto alhures, o termo “vontade”, embora admita diversas percepções em outros ramos do conhecimento, é visto no direito como a manifestação de um querer humano para um determinado objetivo.

O direito privado prima pela liberdade do indivíduo e esta deve ter em seu bojo a concepção de um aspecto psicológico, ainda que mínimo. Fala-se aqui do querer humano370. Quando esse querer humano alia-se à realização de um negócio jurídico, tem-se a manifestação da autonomia da vontade, no sentido de união de desejos em prol da persecução de um negócio jurídico.

Com o passar dos anos, no entanto, percebeu-se que não teria como haver uma vontade contratual plena em uma sociedade onde a desigualdade era predominante. Haveria, sim, uma desigualdade contratual latente, de maneira que algum sujeito daquele negócio jurídico sairia prejudicado, pois não conseguiria exprimir sua vontade livre e desembaraçada, característica de uma posição contratual igualitária. Assim:

Não levou muito tempo para que se atentasse para o fato de que a liberdade plena na declaração de vontades, em meio a uma sociedade desigual, importava um desequilíbrio contratual. Começa-se a rechaçar, a partir de então, a estrutura sobre a qual se alicerçou a autonomia da vontade no século XIX: a igualdade formal. O contrato passa a sofrer restrições no momento em que é retirado do plano da abstração e inserido

369

ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 49-50.

370

BALLALAI, Augusto Luppi. A vontade como elemento primordial no direito privado. Revista De Direito Privado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.8, n.32, p. 21-31, out. / dez. 2007, p. 24.

na concretude de desigualdades em que vivem os contratantes, sobretudo porque se visa à função social que o orienta371.

Nesses termos, a autonomia da vontade, como um dogma supremo do direito civil, passa a ser relativizada diante das inovações trazidas pela intervenção estatal e constitucionalização do direito privado.

Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, esse princípio da autonomia da vontade não é absoluto, nem reflete a realidade social em sua plenitude. Por isso, dois aspectos de sua incidência devem ser encarados seriamente: um diz respeito às restrições trazidas pela sobrelevância da ordem pública e outro vai recair no dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado na economia do contrato372. A ordem pública deve ser analisada sob a perspectiva de amparar a proteção da parte hipossuficiente e vulnerável nos contratos, como visto com as figuras inclusas no Código de Defesa do Consumidor brasileiro e leis trabalhistas, e ainda deve estar ligada ao dirigismo econômico, que trata de orientar, em certa direção, a economia nacional, eliminando os contratos contrários a ela373.

Em suma, a autonomia da vontade em sua versão clássica acaba por ser desprestigiada no direito privado. Contudo, isso não significa que a autonomia da vontade deixou de existir. Acredita-se que a relativização dessa autonomia dá ensejo a uma mudança de concepção, que se exprime da melhor maneira na autonomia privada.

A autonomia privada, por outro lado, não se baseia somente na autodeterminação e liberdade dos sujeitos para a formação de negócios jurídicos. Na sua teoria, não bastaria o puro consenso suficiente para criar direito. É imprescindível que esse consenso seja previsto como legítimo pelo ordenamento jurídico, ou, ao menos, não seja proscrito pelo ordenamento jurídico.

371

ARAÚJO, Maria Angélica Benetti. Autonomia da Vontade no Direito Contratual. Revista De Direito Privado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.7, n.27, p. 279-292, jul./set. 2006., p. 282.

372

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 12. ed. Atual: Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 25.

373

GOMES, J. Miguel Lobato. Livre iniciativa, autonomia privada e liberdade de contratar. In: NALIM, Paulo (org.) Autonomia Privada na Legalidade Constitucional: contrato e sociedade, volume III. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2005, p. 255-256.

Noutras palavras, não bastaria a manifestação de vontade para que os sujeitos se obrigassem, senão seria necessária a observância de certos pressupostos de validade374.

Sendo o negócio jurídico forma de expressão da vontade, ele pode ser visto sob a perspectiva estatal. A vontade privada não é fonte direta e imediata de efeitos jurídicos, mas tem sua eficácia subordinada à mediatização da lei, de sorte que o Estado pode atuar conformando essa vontade, mediante um limite positivo ou lhe negando eficácia, por meio de um limite negativo375.

Assim, não há uma necessária coincidência entre a vontade e a autonomia privada. Elas só irão coincidir na medida em que a vontade se consubstancie dentro dos ditames do ordenamento jurídico.

Nas palavras de Enzo Roppo:

Entre dogma da vontade e tutela da autonomia privada não há, de facto, coincidência necessária: nem sempre é verdade que, para garantir o respeito substancial da autonomia, da liberdade e, portanto, dos interesses dos contraentes, seja preciso prestar absoluto e incondicionado obséquio às suas tomadas de posição psíquicas. Muitas vezes, inversamente, é verdade o contrário: isto é, acontece que a lógica da operação econômica levada a cabo pelas partes só possa ser salvaguardada, evitando dar excessiva relevância à sua vontade, entendida, no sentido restrito, como momento psicológico da iniciativa tomada376.

Entende-se, assim, que a autonomia privada ganha espaço dentro de um ordenamento jurídico organizado, pois os particulares só podem configurar relações jurídicas que sejam reconhecidas pelo ordenamento jurídico, que estejam em conformidade com o mesmo. Sem um ordenamento jurídico que consagre o mínimo de liberdade entre as pessoas, não se pode falar em autonomia privada377, que é expressão do direito maior de liberdade.

E este ordenamento jurídico pode consagrar maior ou menor liberdade negocial, sem que isso aniquile a autonomia privada. Pelo contrário, quando um ordenamento conforma a autonomia privada com princípios outros, como eticidade, boa-fé contratual, função social etc., está, em verdade, reforçando a autonomia privada,

374

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007,p.52-53.

375

PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Lisboa: Almedina. 1982, p. 42-43.

376

ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 143.

377

CABRAL, Érico de Pina. A autonomia. Revista De Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n.19, p. 83-129, jul. set., 2004, p. 96.

afinal, para que ela possa ser exercida em sua plenitude é preciso o respeito aos princípios constitucionais e legais, além dos trazidos pela doutrina e jurisprudência civilista.

Por fim, é importante ressaltar que a autonomia privada encontra respaldo em diversos ramos do ordenamento jurídico, e não só no direito civil. Com a pluralidade de relações existentes, vê-se que a liberdade negocial prospecta-se por diversos ramos do ordenamento, inclusive ramos considerados protecionistas e, consequentemente, de difícil acesso da autonomia privada.

Exemplo deste é o direito do trabalho, ramo marcado na individualidade pela relação entre o hipossuficiente e o empregador. Ainda com tais características, a autonomia privada encontra respaldo em certos casos. Ademais, no direito coletivo do trabalho, ela assume papel de protagonista na negociação coletiva.

Nesse sentido, essa autonomia acaba por auxiliar a concretização de direitos fundamentais dentro da relação de emprego. Em uma negociação entre sujeitos de direito do trabalho, os direitos fundamentais vinculam os particulares, de sorte que devem ser observados diante da autonomia privada das partes.

Ademais, como a autonomia privada apenas existe dentro dos conformes do ordenamento jurídico, seu exercício deve estar pautado nos ditames dos direitos fundamentais. E, sendo o lazer direito fundamental, repita-se, deve ser concretizado diante da liberdade contratual dos sujeitos protagonistas da relação de emprego.

5.4.3.1 Autonomia privada individual, relações de emprego e a concretização do direito ao lazer

Partindo-se do pressuposto de que a autonomia privada consiste em uma liberdade de negociação dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, cabe agora analisá-la dentro da relação de emprego e sua interação com o direito fundamental social ao lazer.

Primeiramente, tem-se que se ter em mente que os direitos incidentes nas relações de emprego são direitos fundamentais sociais, passíveis de proteção estatal. Tal

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