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1. A UTILIZAÇÃO DO APARATO MILITAR BRASILEIRO NA SEGURANÇA

1.2. A utilização desvirtuada das Forças Armadas na segurança pública nos anos 2010 por

1.2.1. As insuficiências do modelo de segurança pública adotado em 1988

A organização da segurança pública brasileira nos moldes atuais não começou em 1988, mas durante os primeiros anos do regime ditatorial. O primeiro episódio dessa configuração deu-se por meio do Decreto-Lei n. 200/1967, que designou as polícias militares como forças auxiliares e reservas do Exército (art. 46, parágrafo único) e determinou ao Poder Executivo dispor sobre tais entidades. Dois anos depois, a influência da caserna sobre a segurança pública foi intensificada com o Decreto-Lei n. 667/1969, que atribuiu às polícias militares a execução exclusiva, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, do policiamento ostensivo, fardado e planejado pela autoridade competente a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem e o exercício dos poderes constituídos (art. 3º, a). Por fim, o Decreto-Lei n. 1.072/1969 extinguiu as antigas guardas-civis locais e incorporou os seus integrantes às polícias militares (art. 2º).

A próxima norma mais significativa responsável por modificar a estrutura organizacional das polícias militares foi o Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983, que aprovou o regulamento de tais órgãos junto com os corpos de bombeiros militares. Tal normativa restou carregada de ambiguidades, uma vez que, embora almejasse “democratizar” o aparato policial por meio de sua descentralização com respectivas subordinações aos governos estaduais, manteve intacta a vinculação original com o Exército (art. 3º do anexo). Guerra (2016) sustenta que, ao não mexer nas competências ligadas à repressão política, o regulamento não tinha por objetivos reduzir a violência ou ampliar o controle da sociedade civil sobre as polícias militares.

Essa associação entre as Forças Armadas e as polícias militares serviu para a implementação da doutrina da segurança nacional – filosofia-base do regime que chegou ao poder em 1964 formada na Escola Superior de Guerra a partir da interação com os Estados Unidos da América25 – para dentro das atividades da segurança pública. Conforme lembra

Fagundes (2014), podem-se destacar como características dessa doutrina, dentre outras que não interessam diretamente ao presente trabalho, pensamentos como os de que o indivíduo só tem valor por aquilo que realiza em conjunto e em benefício do coletivo (i), de que o bem coletivo possui uma função moral mais elevada que o individual (ii), de que o Estado é o centro irradiador do bem comum e a lealdade para com ele deve ter precedência sobre qualquer outra (iii), de que a centralização do poder é indispensável à garantia da unidade nacional (iv) e de que a função da elite dirigente é educativa para o restante da população e a ela cabe a definição dos interesses coletivos, já que os indivíduos, por si só, não possuem os meios necessários para realizarem tal descoberta (v).

A infiltração de ideologia dessa natureza dentro do aparato formacional da carreira policial tem o efeito de transformar uma atividade que deveria ser de segurança da população para a de caçada aos inimigos. No clima da Guerra Fria que se viveu entre 1964-1985, o chamado “inimigo comunista” era alguém a ser combatido por meio das mais variadas táticas, o que justificava todo um planejamento construído a partir da lógica maniqueísta dos “mocinhos” contra os “bandidos”, racionalidade sufragada por vários setores da sociedade civil, como a OAB, que, num primeiro momento, apoiou o movimento “revolucionário” e só depois lhe direcionou uma posição crítica (PEREIRA, 2017).

A maior oportunidade para se discutir o modelo de segurança brasileiro na esfera pública veio com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que desenvolveu os seus trabalhos entre 1987-1988. Este objeto foi abordado na Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Não houve, contudo, debate sobre possível desmilitarização das forças policiais. No máximo, questionou-se na constituinte a possibilidade de as polícias militares serem desvinculadas do Exército.

Defendendo essa última possibilidade, o constituinte Roberto Brant (à época filiado ao MDB-MG) arguiu as diferenças de natureza da atuação das Forças Armadas e das polícias. Enquanto cabe à atividade militar em sentido estrito o planejamento e a execução de táticas de

25 A análise de Santos Júnior (2017) demonstra que o modelo de segurança instalado no Brasil bebe de uma fonte

norte-americana. Seus ingredientes básicos são: fetichização/espetacularização da violência e das incursões policiais, uso excessivo da força, construção simbólica da imagem de que a “guerra” contra o inimigo é justificada pelo “bem maior”, criação artificial de um inimigo (pertencente às classes alheias à “alta sociedade”) etc. Apresenta o autor uma proposta de superação desse modelo pautada na perspectiva descolonial.

combate ao inimigo externo, as polícias devem ser preparadas para afiançar a segurança das pessoas e das propriedades em solo nacional, o que requer interação contínua com os cidadãos. A lógica do “inimigo externo”, se aplicada domesticamente, inevitavelmente gerará violações de direitos humanos26. Márcio Thomaz Bastos, falando em nome do Conselho Federal da OAB,

referendou a posição de desvinculação entre as polícias militares e as Forças Armadas, mas alegou que, dadas as características do Brasil, tais órgãos estaduais deveriam continuar militarizados27.

Tais opiniões não lograram êxito em fazerem-se normas. A Constituição Federal de 1988 nasceu e permanece mantendo as polícias militares e os corpos de bombeiros militares como forças auxiliares e reservas do Exército (art. 144, § 6º). A dupla subordinação às Forças Armadas e aos governos estaduais causa estranheza no perfil operacional destes órgãos. Na academia, encontram-se opiniões no sentido de que, embora se tenha reunido toda uma subcomissão para tratar da segurança pública na Assembleia Nacional Constituinte, o modelo adotado praticamente reproduziu o que já existia (GUERRA, 2016; ZAVERUCHA, 2008a): dualidade de polícias, militarização do policiamento ostensivo e repartição pouco federativa.

É possível que pelo menos parte das razões que levaram à opção constitucional – e o respectivo desenvolvimento legal a ser analisado na próxima subseção – pela manutenção do elo entre as Forças Armadas e a gestão da segurança pública resida na situação privilegiada

26 “Acho que a segurança do indivíduo é um bem essencial que o Estado deve prover aos seus cidadãos. Sob certos

aspectos a segurança dos indivíduos e dos grupos individuais é mais importante do ponto de vista do cidadão do que a própria segurança das instituições tomadas em abstrato. Acho que o papel de assegurar nos respectivos territórios a segurança pública, ou seja, segurança do indivíduo, cabe às Polícias Militares. Gostaria que a nova Constituição lhes reservasse um papel claro, um papel explícito, que reservasse aos Estados o poder de reorganizá- las livremente e determinar os seus objetivos em função da prioridade que cada população estadual atribui à segurança dos seus indivíduos. Porque o papel primordial da Polícia Militar é a ordem interna, é a segurança dos direitos da propriedade e da vida dos indivíduos. É por esse motivo mesmo que acho esdrúxula a solução adotada no passado de se dar a essas forças o comando de um Oficial do Exército. Por quê? Porque o Exército é adestrado para finalidades inteiramente diferentes; o equipamento, a cultura da instituição militar é exatamente voltada para a guerra externa e não para as tarefas da segurança individual do dia a dia, do policiamento ostensivo das ruas, do combate a traficantes, a assassinos. Então, acho que é uma distorção extremamente grave. Nós estamos tentando ingressar numa nova ordem constitucional; creio que seria o momento adequado de darmos à Polícia Militar o seu papel primordial de assegurar a segurança do indivíduo. E, apenas em casos especialíssimos, quando de convocação ou mobilização que na História não se registrou até hoje nenhum caso – é que só nesse caso elas passam a ser tuteladas, controladas pelas Forças Armadas, porque então é o caso.” (ANC, 1987, pp. 43-44).

27 “Penso mais, neste primeiro momento em que tenho a honra de falar perante esta Subcomissão, que o importante

é que a política de segurança, na medida em que se desmonte o arcabouço constitucional da ideologia da segurança nacional é alguma coisa que tem que ficar sob a responsabilidade e a execução, não apenas do Executivo, mas de todos os poderes, acredito que uma questão polêmica, como é a questão da manutenção ou não das Polícias Militares deva ser resolvidas afirmativamente, no sentido que a Polícia Militar é um organismo que merece sobrevivência, nas circunstâncias concretas do Brasil, desde que se lhe dêem os instrumentos para que não seja manipulada e usada. Ela deve perder a vinculação que tem com o Exército de modo que, efetivamente, possa ter condições de ser uma Polícia que não seja uma força auxiliar nem dos governadores, nem do Ministro do Exército, mas que seja efetivamente aquela polícia que funciona modelarmente na maioria dos Estados.” (ANC, 1987, pp. 53).

ostentada pelo Brasil no cenário geopolítico regional e mundial. Enquanto a União mantém investimentos na área militar, o país detém fronteiras estabelecidas que há vários anos não são objeto de contestação por quaisquer dos vizinhos, o que demonstra a pacificidade em eventuais conflitos interestatais no aspecto regional. No âmbito global, Proença Júnior (2011) aponta no pertencimento do Brasil ao hemisfério ocidental e nas satisfatórias relações mantidas com os Estados Unidos da América os motivos pelos quais dificilmente um governo alheio ao continente americano apresente oposição armada à soberania nacional.

Tais circunstâncias ocasionam a carência de um debate na esfera pública brasileira sobre o papel da instituição militar. Já que as pessoas não têm interesse em discutir o tema porque o país não atravessa cenários significativos de conflitos regionais/globais, os agentes políticos também não lhe emprestam maior atenção, o que enseja a repetição dos ciclos e práticas vivenciados a partir de uma tradição autoritária. Esta lógica pode ser resumida da seguinte forma: se não há interesse político na produção de um debate qualificado acerca do modo como serão utilizadas/regulamentadas as Forças Armadas com, p. ex., o colhimento de experiências existentes em outras democracias, é mais simples reproduzir o modelo até então adotado, ainda que contenha inconsistências.

A dissociação qualitativa das atividades das Forças Armadas e das polícias reverbera continuamente nas palavras dos especialistas em gestão da segurança pública. Soares (2012) argumenta que as instituições policiais nada têm a ver com exércitos, uma vez que são destinadas a garantir direitos e liberdades dos cidadãos por meios pacíficos e com uso moderado da força numa estratégia de gestão de conflitos nos marcos da legalidade e com observância rigorosa dos direitos humanos28. Segundo esse autor, qualquer projeto consequente de reforma

das polícias militares no sentido de transformar os seus métodos de gestão/racionalização do sistema operacional no tripé diagnóstico-planejamento-avaliação deve começar pelo rompimento da sua relação com o Exército e caminhar para a desmilitarização.

Tudo indica que o modelo adotado no Brasil para o tratamento da segurança pública não surte o desejado efeito da mitigação da insegurança e da violência. Relatórios de organizações da sociedade civil domésticas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017) e internacionais (WORLD JUSTICE PROJECT, 2018) mostram a escalada

28 Esse posicionamento compactua com a análise de Zaverucha (2000, pp. 42): “Quando se dá a transição para a

democracia, há uma preocupação dos novos governantes em tirar a polícia do controle das Forças Armadas. O objetivo é tornar nítida a separação de suas funções: a polícia é responsável pela ordem interna, ou seja, pelos problemas de segurança pública, enquanto os militares federais se encarregam dos problemas externos, leia-se, da guerra. A Constituição de 1988 não procurou fazer essa separação. Ao contrário, dificultou-a. Pela primeira vez na história republicana, uma Constituição concedeu aos membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros o status de servidor público militar, idêntico ao usufruído pelos integrantes das Forças Armadas.”

das hostilidades entre os agentes responsáveis pela proteção da incolumidade das pessoas e os criminosos, o que redunda na carência do almejado binômio ordem-segurança. Cada vez mais o Brasil se destaca negativamente como um país em que execuções extrajudiciais viraram regra por parte da polícia e, em contrapartida, não há instrumentos jurídicos ou administrativos capazes de conter a matança contra os policiais29.

Esse cenário facilita a propagação de discursos populistas da classe política pautados no jargão da “guerra à criminalidade”. Reforça-se no país uma imagem de que existe um conflito armado interno justificador da suspensão dos direitos humanos de determinados atores sociais, comumente aqueles inseridos nos bolsões da pobreza e da exclusão. Na crítica de Peterke (2016), apesar dos altos índices de criminalidade e de mortes, o cenário doméstico não configura formalmente um conflito armado instaurador das normas de direito internacional humanitário. Ao caso brasileiro, são inderrogáveis as obrigações do direito internacional dos direitos humanos e do direito constitucional aplicáveis ao Estado30.

O fato é que, a despeito da redemocratização construída de 1985 a 1988, a ideia-motriz da doutrina da segurança nacional permanece em vigor na segurança pública (SANTOS, 2015). A administração excessivamente hierarquizada e a lógica bélica na atuação das polícias militares dificultam a assimilação das lógicas protetivas dos direitos humanos e do devido processo legal. Some-se a isso a percepção de que os policiais não são servidores que prestam um serviço público em prol da população, mas sim agentes encarregados da defesa do Estado. Os membros da sociedade, na condição de potenciais infratores da ordem pública, são potenciais criminosos que devem ser vigiados e, se for o caso, punidos (ainda que ao arrepio da lei).

29 Para uma análise empírico-comparativa entre Brasil, Argentina e Uruguai acerca da existência de uma regra

informal ínsita ao comportamento das autoridades que permite aos agentes de Estado encarregados da segurança pública agir com força letal conscientes de que não responderão pelos seus atos, situação naturalizada por boa parte da população brasileira, cf. BRINKS, 2007.

30 Apostar no discurso fácil da “guerra às drogas” justificador do recrudescimento das práticas policiais é fechar

os olhos para a raiz dos problemas: “[...] esse quadro escandaloso, ainda que tenha provocado reações indignadas e torrentes caudalosas de votos, tem servido mais ao populismo penal e à renovação de mandatos eletivos dos demagogos (sempre à espreita, à espera de uma crise, de um crime espetacular, para propor penas mais duras, punições mais severas) do que à difusão da consciência de que mudanças estruturais são necessárias e inadiáveis. Diante de cada manchete banhada em sangue, autoridades reafirmam a correção dos rumos que escolheram e prometem mais do mesmo. Não se furtam a acobertar malfeitos das corporações pelas quais respondem, em nome da suposta importância de incentivar a disposição bélica dos comandados - para o que contam com a cumplicidade de setores das instituições cujo papel seria realizar o controle externo da atividade policial e julgar os acusados de ilegalidades. Sem a proteção superior e interinstitucional, a abjeta enxurrada de execuções extrajudiciais, edulcoradas por títulos nobres, como autos-de-resistência, teria sido obstada há décadas. Pior de tudo é o falso entendimento de que estamos em uma guerra. O corolário implica uma redefinição do papel das forças policiais, na contramão do mandato que a Constituição Federal lhes atribui.” (SOARES, 2012, pp. 38)

E a solução encontrada pelos governos civis para a escalada do binômio violência- insegurança não poderia ser outra: usar diretamente as Forças Armadas na segurança pública. A próxima subseção demonstrará os arranjos jurídico-estruturais que autorizam esse expediente e alguns exemplos do seu emprego.